terça-feira, 27 de setembro de 2016

PARADINHA CEREBRAL


(NEM MELHOR, NEM PIOR;
APENAS UM ESPETÁCULO TEATRAL “DIFERENTE”
E DE EXCELENTE QUALIDADE.)





Para início de conversa, que fique bem claro que o “diferente”, a que se refere o subtítulo, foi empregado com o melhor sentido, unicamente denotativo. É diferente, porque o protagonista (CASSIANO FERNANDEZ – CACÁ) - porque também há uma protagonista (MIRNA RUBIM – MADALENA / MADÁ) - não é um ator profissional (é a primeira vez que atua), embora se saia muito bem no palco, dentro de suas limitações, já que, ao nascer, sofreu uma paralisia cerebral, que o atingiu nos movimentos, “compensando-o” com uma inteligência prodigiosa e uma alegria e força para viver, que servem de exemplo a muitas pessoas ditas “normais”. Por falar nisso, CACÁ é uma das pessoas mais NORMAIS (sem aspas e com todas as maiúsculas) que eu conheço.

Ninguém foi mais crítico do que eu, com relação à infeliz ideia de o Rio de Janeiro, com tantas carências, no campo da educação, da saúde, dos transportes públicos, do saneamento, das moradias, além de outras, sediar e bancar as Olimpíadas e, na garupa, as ParaOlimpíadas. Não posso, entretanto, me omitir e não dizer que, se houve viabilidade, para que “PARADINHA CEREBRAL” fosse encenada, garantindo seu sucesso, tanto de público quanto de crítica, isso só ocorreu graças à condição de o projeto ter sido vencedor de um edital especial, o “Cidade Olímpica”, lançado pela Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro. Tal escolha, além da qualidade do texto e da importância do projeto, deve estar relacionada ao fato de a peça tratar de um tema ligado às limitações físicas e/ou mentais do ser humano. O espetáculo foi programado, cumprindo o já citado edital, para ser encenado, paralelamente, durante a realização dos dois eventos esportivos já citados. E acabou se estendendo até o dia 29 de setembro / 2016.

E digo isso muito feliz, pois valeu muito a pena ter ido, no dia 14, próximo passado, quase ao final, infelizmente, da temporada, à sala 2 do Teatro Fashion Mall, para aplaudir os talentos de CASSIANO e MIRNA.

O texto e a direção da peça são assinados por IURI SARAIVA, um jovem ator, que também joga bem em outras posições.



SINOPSE:

Preocupados com uma curva de baixa audiência, os produtores do “talk show” “Show da Madá” resolvem trazer um convidado inusitado ao programa: o jornalista, cantor lírico, cadeirante e paralisado cerebral CASSIANO FERNANDEZ (CACÁ).

A apresentadora MARIA MADALENA, interpretada pela cantora lírica e preparadora vocal MIRNA RUBIM, que, na vida real, também é professora de canto de CASSIANO, é tomada de surpresa, por um entrevistado livre de neuroses e com um humor peculiar.

Nesse encontro, regado a muita música, rivalidade e recalque, MADÁ terá que encarar seu sonho frustrado de ser cantora lírica e CACÁ lhe dará lições ácidas e divertidas, encorajando-a a realizar o seu tão almejado sonho.







A história de “PARADINHA CEREBRAL” se desenvolve a partir de uma entrevista fictícia, em que o entrevistado não representa uma pessoa sequelada, alguém que sofreu uma paralisia cerebral; é o contrário: uma pessoa com comprometimentos de mobilidade, por conta de ter sofrido uma lesão cerebral, faz um trabalho de ator, representando um personagem sagaz, irônico, perspicaz, mordaz, ferino, cáustico... e, TAMBÉM MUITO ENGRAÇADO.

Com a maior naturalidade, mais para o desinibido, e “exibido”, entrevistado do que para a embaraçada entrevistadora, fala-se de tudo, durante o programa, desde questões ligadas a preconceitos e trabalho, passando por uma invasão na privacidade sexual do entrevistado, não deixando de valorizar – é claro – a discussão sobre o relacionamento das pessoas com quem é portador de alguma necessidade especial e a tão falada inclusão social, muito discutida e pouco praticada.

Gostei muito do formato da peça. Além dos diálogos, durante a “entrevista”, com boa dramaturgia, os dois personagens ainda conversam durante os intervalos de gravação do programa, sem falar nos excelentes vídeos que são projetados, mostrando depoimentos dos pais de CACÁ, bem como cenas do cotidiano do rapaz, em casa, vestindo-se, tentando entrar num ônibus e em ação no trabalho. Sim! CASSIANO é jornalista e publicitário, e trabalha numa das maiores agências de publicidade mundiais, a NBS, o quinto maior grupo de comunicação do mundo, com escritórios espalhados por cento e dez países e nos cinco continentes. Além disso, é o idealizador e administrador da página Código da Ópera, manifestação artística da qual é um grande admirador e conhecedor. Foi editor da coluna sobre ópera do informativo quinzenal do Instituto Brasileiro de Defesa da Pessoa com Deficiência. É, também, um grande fã de novelas e palestrante em eventos sobre pedagogia inclusiva.

Conheci CASSIANO, quando vi a peça, e já o considero meu amigo, por se tratar de uma criatura adorável, extremamente alegre, nos seus 29 anos. Ele se considera – e é mesmo – uma pessoa “descolada”, a despeito de sua condição física. Extremamente inteligente e independente, fala quatro idiomas e frequenta, há cinco anos, as aulas de canto de MIRNA RUBIM. Afirma que é quase impossível alguém o ofender com questões de deficiência e que a ideia de “alfinetar” a personagem MADÁ, em cena, é muito intencional, com o objetivo de “acordar o público”.

CACÁ, de forma muito linda e carinhosa, faz, em cena, um agradecimento a seus pais, os quais ele considera os arquitetos da maneira como ele enxerga, hoje, o mundo, uma vez que era muito comum, quando ele nasceu, e ainda ocorre, com menos intensidade, nos dias de hoje, que os pais evitassem a exposição de um filho deficiente, mantendo-o, quase sempre recluso, em casa, para que não passassem, pais e filhos, por situações “constrangedoras”. Ao contrário disso, seus pais sempre o trataram como qualquer criança, levando-o ao clube, aos “shoppings” e a reuniões sociais, o que lhe possibilitou ter uma visão diferente da sua condição. “Eu sou tão em paz comigo, que, quando eu vejo pessoas que se lamentam por serem deficientes, fico um pouco chateado” — diz CACÁ.

A simples ideia da realização do espetáculo é digna de todos os aplausos, até mesmo se ele não fosse de boa qualidade, o que não é o caso, pois é uma oportunidade ímpar de mostrar que qualquer tipo de deficiência, nas pessoas, não deve ser “desculpa” para fracassos e acomodação. Elas têm seu espaço, no universo cultural, e abordar o tema pode ser é uma tentativa de conclamar a população a respeitar e reconhecer o valor daquelas pessoas. Essa é a intenção maior da peça.

            O espetáculo, do ponto de vista técnico, é simples, modesto, mas nem por isso é de qualidade duvidosa. Muito pelo contrário! É mais uma prova de que se pode montar um grande espetáculo de TEATRO com limitados recursos de cenografia, figurino e iluminação, por sinal, três ótimos elementos na peça, desde que sejam colocados a alma e o amor ao TEATRO em primeiro plano.






A propósito, o cenário, assinado por JOÃO DE FREITAS, é formado apenas por um piano de cauda (falso, cenográfico; na verdade, um piano elétrico, acoplado a uma carcaça de um piano de cauda) e uma tela, para projeções, limitada por uma bela moldura de um quadro. Não há necessidade de nada mais.

JOÃO também assina os figurinos, completamente integrados às exigências da peça e condições dos personagens. MIRNA, como a apresentadora de um programa de TV, veste um traje mais sofisticado e CACÁ se apresenta num estilo “casual”, como um jovem classe média de sua idade.

É correta a iluminação, de RAFAEL ANDRADE e também me agradou a trilha sonora da peça, cujo nome do responsável não encontrei, na ficha técnica. Talvez seja de MIRNA RUBIM, que assina a direção musical da peça.

Um crédito especial deve ser atribuído a DANIEL GONÇALVES, responsável pelos vídeos e por toda a parte relacionada à videografia. Esse destaque é merecido por dois motivos; primeiro, pela ótima qualidade do material e do trabalho e, segundo, pelo fato de que ele também sofreu paralisia cerebral.

Depois de tanto ter falado do talento de CASSIANO, preciso, também, destacar a excelente atuação de MIRNA RUBIM, que não é novidade, para quem já a conhece, e uma gratíssima surpresa, para os que nunca tiveram a oportunidade de vê-la, em outros trabalhos, tanto como cantora lírica quanto como atriz, em, por exemplo, “A Noviça Rebelde”, como a Madre Superiora, e em “A Gaiola das Loucas”, como Mme. Renauld, Mme. Dindon, além de ter sido a supervisora vocal do musical. Na televisão, é meio bissexta, embora já tenha atuado em novelas e seriados. É uma das mais requisitadas preparadoras vocais dos espetáculos musicais do Rio de Janeiro e Coordenadora do Núcleo de Teatro Musical da CAL - Centro de Artes de Laranjeiras.


 


Talvez em função do relacionamento profissional e afetivo entre os dois, na vida real, em cena, tudo é muito natural, mérito também para a direção, que, de forma inteligente, procurou não interferir nesse aspecto, fazendo com que o público ganhasse com isso. IURI SARAIVA, além de bom autor de TEATRO, também se apresenta, aqui, como um diretor que demonstra conhecer bem os limites e o potencial interpretativo de seus atores e sabe, e forma perfeita, explorar tais aspectos.


Algumas cenas e detalhes da peça que mais me agradaram:

1)      A exímia atuação, também, ao piano, de MIRNA RUBIM.
2)  A brilhante interpretação de MIRNA, para a canção “Cry Me A River”, de Arthur Hamilton, uma das minhas preferidas.
3)    O tom didático e simples como CACÁ conta a história de Maria Callas, a diva do canto lírico.
4)     A cena em que CACÁ fala sobre a ignorância das pessoas, em geral, acerca do que é a paralisia cerebral, explicando, de forma bem simples, os vários níveis de comprometimento causados pela doença.
5)     A cena em que CACÁ e MIRNA cantam, juntos, um trecho de uma ópera. Ela, com a técnica; ele, com o coração.
6)      O momento em que CACÁ passa da posição de entrevistado a entrevistador, causando um “constrangimento” na apresentadora do programa, provocando as melhores gargalhadas que a peça nos proporciona.
7)    A cena em que MADÁ, incentivada por CACÁ, canta um trecho de “La Traviata”, de Verdi.
8)      A hilária cena em que CACÁ conta uma experiência sexual num motel.




Não se pode classificar o espetáculo como um musical, embora haja alguns bons números musicais da peça.

Segundo CACÁ, é polêmico falar sobre pessoas que vivem reclamando de sua condição de portadoras de necessidades especiais, que vivem maldizendo sua “sorte”,  colocando-se na condição de vítimas. Ele espera que a peça possa levar essas pessoas a esquecer essa vitimização e apostar numa vida “normal”.

Para encerrar esta crítica, por oportuno, deixo a fala final do personagem CACÁ, que é uma lição de vida e um recado muito importante para a conscientização de quem não é cadeirante, ou coisa parecida, e não sabe valorizar o que a vida lhe oferece:


 




ESTA CADEIRA DE RODAS É, PARA MIM, O QUE A MÃE DE CALLAS FOI PARA ELA. 
TODO DIA, A CADEIRA ME DIZ QUE NÃO VOU CONSEGUIR, QUE O MUNDO NÃO TEM ESPAÇO PARA MIM, QUE EU NÃO ME ENCAIXO. 
ÀS VEZES, DEMORA ALGUMAS HORAS, PARA EU PERCEBER QUE NÃO É ELA QUE ME LEMBRA DISSO. SOU EU. 
A CADEIRA DE RODAS É UM CONVITE DIÁRIO À SABOTAGEM. 
NÃO É UM CASTIGO, PUNIÇÃO, PROVAÇÃO. 
SIMPLESMENTE, ACONTECE E NINGUÉM ESTÁ A SALVO. 
ENTÃO, MEUS LINDOS, SE, UM DIA, VOCÊS ESTIVEREM DO LADO DE CÁ, NÃO SE LAMENTEM OU SE VITIMIZEM. 
O DIA SEGUINTE VIRÁ E VAI TE COBRAR, COM OU SEM CADEIRA. 
UM BEIJO DO CACAZINHO!








FICHA TÉCNICA:

Texto: Iuri Saraiva
Direção: Iuri Saraiva.

Elenco: Cassiano Fernandez e Mirna Rubim

Cenário: João de Freitas Henriques
Iluminação: Rafael Andrade
Figurino: João de Freitas Henriques
Videografia: Daniel Gonçalves
Direção Musical: Mirna Rubim
Fotografia: Fabrício Mota
Projeto Gráfico: Aline Carrer
Assessoria de Imprensa: Contexto e Comunicação
Conceoção e Produção: Lara Pozzobon.
Produção Executiva: Tiago Moreno
Patrocínio: Secretaria Municipal de Cultura / Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro










SERVIÇO:

Temporada: De 20 de julho a 29 de setembro.
Local: Teatro Fashion Mall – Teatro 2
Endereço: Estrada da Gávea, 899 – loja 213 – São Conrado – Rio de Janeiro
Telefone: (21) 2422-9800
Dias e Horários: Às 4ªs e 5ªs feiras, às 21h30min
Valor do Ingresso: R$60,00 (Com direito a meia-entrada a todos os que fizerem jus ao benefício.)
Indicação Etária: 12 anos




(FOTOS: FABRÍCIO MOTA
e DIVULGAÇÃO)

Cassiano Fernandez, Iuri Saraiva (autor do texto e diretor),
Mirna Rubim e a atriz Giulia Nadruz.



Cacá, Iuri Saraiva, Mirna Rubim e eu.
































































Nenhum comentário:

Postar um comentário