quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016


ALICE MANDOU UM BEIJO

 

 

 

(EU AGRADEÇO

E O RETRIBUO,

DO MEU JEITO.)

 

 

 

 


 

 

 

                Inicio estes meus comentários sobre o espetáculo “ALICE MANDOU UM BEIJO” de uma forma diferente, agradecendo, de coração, ao(à) pauteiro(a) do Espaço SESC, quem quer que seja, responsável pela vinda desse espetáculo ao Rio de Janeiro, dando, aos cariocas, a oportunidade de assistir a uma excelente peça teatral, o verdadeiro TEATRO, uma das melhores a que assisti, até o presente momento, neste ano de 2016.

 

            A encenação dessa peça serve para que todos se conscientizem, de uma vez por todas, de que não é só no Rio e em São Paulo, ou, quando muito, nas grandes capitais, que se faz TEATRO com todas as maiúsculas. Em Três Rios, cidade do interior do Rio de Janeiro, há uma excelente companhia teatral, a CIA. CORTEJO, que já nos brindou com outras grandes montagens, como “A HISTÓRIA OFICIAL” e “ANTES DA CHUVA”, ambas indicadas a prêmios, e que, agora ocupa o Mezanino do Espaço SESC (VER SERVIÇO.)

 

 

Todos falam de Alice todo o tempo, vestem suas roupas, executam suas tarefas e tentam assumir o seu lugar (Foto: Divulgação/Renato Mangolin)

 

 

 

 
SINOPSE 1:
 
Após a morte da filha caçula, ALICE, uma família disfuncional, pode-se assim dizer, se vê diante de uma inesperada instabilidade.
 
A ausência dela acaba por disparar uma série de acontecimentos, que revelam a fragilidade das relações que se estabeleceram durante toda uma vida, dentro daquela casa.
 
Quando a peça começa, ALICE já está morta, mas, paradoxalmente, ela está viva dentro da casa. Ela é onipresente. 
 
Todos falam dela, todo o tempo, vestem suas roupas, executam suas tarefas, tentam assumir o seu lugar.
 
ALICE é quem dava sentido àquela convivência.
 
A protagonista era jovem e morava com o pai, o marido, duas irmãs e um sobrinho autista. Após sua morte, o pai exige a saída de seu marido da casa, entretanto é contrariado pelas outras duas filhas, as quais, apaixonadas pelo cunhado, sem que uma soubesse dos sentimentos da outra, tentam demover o velho de sua intenção.
 
Como consequência da morte de ALICE, as relações familiares se refazem, transformam-se em instáveis e, até mesmo, impossíveis.
 

 

 

 

Apesar de jovem, Jandira, a filha do meio, é quem segura a barra de cuidar de toda a família (Foto: Divulgação/Renato Mangolin)

 

 

 


 

 

 

 

 
SINOPSE 2:
 
Apesar de jovem, JANDIRA (BRUNA PORTELLA), a filha do meio, é quem assume a responsabilidade de cuidar de toda a família.
Com a morte da irmã, ela se esforça por conseguir manter tudo como antes, a estabilidade do lar, da qual o público não toma conhecimento, na prática, uma vez que o espetáculo inicia já com a protagonista morta e enterrada. Haveria mesmo, antes, tal estabilidade?
Com o passar do tempo, porém, os relacionamentos interpessoais, naquele que deve ter sido, um dia, um “lar”, começam a tomar rumos diferentes e perigosos, e JANDIRA perde completamente o controle da situação e não consegue administrar os conflitos domésticos, até porque ela também está envolvida neles.
ALICE, por indícios encontrados no texto e nas ações dos personagens, parece ter sido, durante anos, o ponto de equilíbrio daquela família.
No passado, após a morte da matriarca, o pai, ARAÚJO, (JOSÉ EDUARDO ARCURI), surdo e senil, sobrevive da troca de mimos com ALICE, sua filha predileta.
ROBÉRIO (LUAN VIEIRA), o filho, autista, de JANDIRA, tinha, na tia falecida, a única porta de comunicação com o mundo real. Parece que era a única que o compreendia e sabia lidar com suas limitações.
ONEIDA (VIVIAN SOBRINO), a irmã mais velha, que sempre alimentou um ressentimento em relação à preferência do pai pela caçula, resolve investir em OSVALDO (TAIRONE VALE), o cunhado viúvo. Seu desejo é vender a casa e ir embora com ele, para uma cidade maior, sem se importar com o resto dos parentes.
Isso afeta, terrivelmente, JANDIRA, que, além de ter mantido a vida inteira um amor platônico por OSVALDO, se vê, agora, diante da possibilidade de ficar sozinha, cuidando de seu pai e de ROBÉRIO, a quem ela se dedica, até com boas intenções, entretanto com muito pouca habilidade. Ela carregaria dois pesados fardos.

 

 


 

 


 

 

 

A peça, cujo texto, de RODRIGO PORTELLA, que também é o diretor do espetáculo, é ótimo, é baseada nas memórias de infância do autor.

 

RODRIGO, indicado ao Prêmio Shell/RJ 2013, nas categorias de Melhor Diretor, por “Uma História Oficial”, e Melhor Autor, por “Antes da Chuva”, dois outros grandes trabalhos, em “ALICE MANDOU UM BEIJO”, mergulha no universo das contradições familiares, criando uma trama em que a reconstrução da memória é o eixo central. Mergulha fundo, muito fundo mesmo!

 

Considero interessante e oportuno este depoimento de PORTELLA, que justifica, de certa forma, o que se vê no seu texto: Quando eu era criança, minha mãe era só a minha mãe. Todos, daquela família, encharcada de tios e primos, de variados graus, pareciam, aos meus olhos, tipos bem definidos: o tio bonachão; o primo esperto; a avó, mais ou menos, afetuosa; o pai, um pouco ausente, que me roubava a mãe, nas madrugadas; o irmão meu avesso; o padrinho e seus extraordinários presentes de aniversário; a prima gostosa, a quem todos os primos fingiam namorar… Tudo parecia estável, eterno, definitivo. Só mais tarde, bem mais tarde mesmo, fui perceber que aquelas pessoas eram muito mais complexas. Me dei conta de que o que eu enxergava, antes, era só uma pontinha de um volumoso e assustador ‘iceberg’. ‘ALICE MANDOU UM BEIJO’ é um resgate ficcional das minhas memórias de infância. Acredito que, só agora, aos 38 anos, é que começo a entender que o sentido de HUMANIDADE está, potencialmente, relacionado à palavra ‘CONTRADIÇÃO’”.

 

 


 

 

O resultado dessas reflexões gerou um texto digno de prêmios, no qual se percebem boas pinceladas, aromas e sabores do universo rodriguiano, em cuja fonte PORTELLA parece ter buscado alívio para sua sede, traços facilmente perceptíveis, em todo o texto, e, acrescento, até de melhor qualidade que muita coisa que escreveu Nélson Rodrigues.

 

Pode-se dizer que a semente deste texto surgiu quando, aos onze anos de idade, o dramaturgo vivenciou duas grandes perdas, seguidas: primeiro a de um tio e, depois, a da avó. Além da dor natural e do sofrimento irreversível da morte de entes queridos, o menino presenciou uma série de brigas acaloradas, que se seguiram, após os enterros, constantes desavenças, entre os da “família”, por conta das heranças deixadas pelos finados. Com tão pouca idade, o menino não conseguia entender e digerir aquilo tudo, um tsunâmi de emoções e vibrações negativas, mas, certamente, aqueles fatos marcaram, sobremaneira, uma fase de sua vida e precisaram vir à tona, na idade adulta, na forma de uma peça de TEATRO, talvez como uma catarse, para se livrar daqueles fantasmas da infância. Que bom que tenha sido assim, pelo belo espetáculo que vi! 

 

 

Alice mandou um beijo © Renato Mangolin 167

 

 

É oportuno dizer que a peça não e autobiográfica, que os personagens, em cena, não são os parentes do autor. É uma ficção, baseada numa realidade, aliás muito mais frequente, nas famílias do mundo inteiro, do que se possa imaginar.

 

O espetáculo, que está atraindo um grande público e despertando as melhores críticas, é uma produção da CIA. CORTEJO, de Três Rios, fundada por RODRIGO PORTELLA e que reúne excelentes talentos locais, como os atores que formam o elenco desta peça: BRUNA PORTELA, JOSÉ EDUARDO ARCURI, LUAN VIEIRA, TAIRONE VALE e VIVIAN SOBRINO, cujas formações profissionais não sei onde foram feitas, mas posso assegurar que todos foram alunos muito aplicados.

 

São, todos, excelentes atores!

 

 

 A trama se desenrola a partir das decisões dos personagens diante da ausência de Alice

 

 

Gosto muito do que escreve RODRIGO PORTELLA, que trilhou um caminho interessante em sua carreira, uma vez que, nascido no interior do Rio de Janeiro (Três Rios), veio, para a capital, a fim de estudar TEATRO (Direção Teatral, na UNIRIO) e, ao contrário do que fazem 99,9% dos que procedem como ele, não se fixou, e passou a trabalhar profissionalmente, aqui, decidindo retornar à sua pequena cidade natal, com o objetivo de compartilhar seus conhecimentos com seus conterrâneos e fomentar o TEATRO local, fundando a já citada, e premiada, CIA. CORTEJO.

 

            Agradam-me os seus textos, e, em especial, este “ALICE...”, porque ele sabe economizar palavras, não as desperdiça; sabe manter um equilíbrio constante, durante todo o tempo de duração da peça, alternando suavidade e agressividade, pondo, na boca de cada personagem, o indispensável e o necessário para que eles se mostrem ao público, para que se desnudem, como verdadeiramente são. Quem quiser, como eu, que faça suas elucubrações, mas o texto, em si, é muito claro, ainda que ofereça motivos e “pistas” para as referidas divagações. Embarca na viagem quem tiver a passagem na mão e o passaporte em dia. Eu sempre os tenho, ou procuro tê-los.

 

Nesta peça, o eixo dramático está nas delicadas decisões dos personagens, diante da “ausência” de ALICE, uma espécie de representação da coerência familiar. RODRIGO, uma “aranha-dramaturga”, tece uma teia, entrelaça os fatos, os desejos reprimidos e os explícitos, as frustrações, as intenções, de tal forma, que prende a atenção do espectador, da primeira à última cena.

 

 

 A peça é baseada nas memórias de infância do autor, Rodrigo Portella

 

 

Os personagens, obviamente, guardadas as devidas proporções, aqui, parecem brotar das páginas das peças de Nélson Rodrigues, com suas poucas qualidades, seus desvios de conduta, seus caracteres duvidosos, suas verdades ocultas (ONEIDA, por exemplo, é dançarina, numa boate, e faz programas com clientes), seus interesses escusos, suas neuroses...

           

A personagem central, que dá título à peça, não aparece em cena (Ou aparece o tempo todo?), uma vez que já está morta, quando se inicia a ação, como já foi dito. O público não a conhece pelo que ela é, mas pelo que falam dela. Paradoxalmente, ALICE está viva, dentro daquela casa, e morta, sepultada num cemitério qualquer. Embora não materializada, parece-nos ver o seu fantasma, passeando pela casa. É difícil explicar, mas eu cheguei a conceber uma forma física para ALICE. Visualizei seu rosto, seu corpo; quase ouvi sua voz. Apenas um detalhe: acho que não sou louco; é “excesso de sensibilidade” (Momento descontração.) 

 

            Quanto ao harmonioso elenco, encantaram-me todas as atuações. Cada um dá o seu recado da forma mais correta possível, entretanto, seria uma injustiça não destacar o trabalho do jovem e talentoso LUAN VIEIRA, que já havia mexido comigo, quando de sua atuação em “Antes da Chuva”. LUAN interpreta um jovem autista, com a mesma perfeição como se comportou, brilhantemente, outro grande jovem destaque de ator, Rafael Canedo, em papel semelhante, na peça “O Estranho Caso do Cachorro Morto”, ou seja, com muita verdade, sem exageros e nada de estereótipos. Tudo com muita naturalidade. Acrescente-se que, além da doença neurológica, o personagem ROBÉRIO ainda apresenta deformidades físicas, que exigem um esforço intenso do ator, para se deslocar em cena, assim como muita atenção e total entrega ao personagem. Senti-me bastante gratificado por seu trabalho.

 

 

 Quando a peça começa, Alice já está morta

 

 

            RENATO MACHADO faz um bom trabalho de iluminação, excelente, em vários momentos, assim como são corretos os figurinos, de DANIELE GEAMMAL, e a cenografia, de RAYMUNDO PESINE, o elemento que mais me chamou a atenção, na parte estética do espetáculo, com muitos armários (alguns com portas espelhadas) cristaleiras vazias, cadeiras e uma velha vitrola, que também ajuda a trazer ALICE para a cena, por meio das canções de que ela gostava ou que marcaram algum importante momento na vida daquela família (Ou seria, agora, apenas, um agrupamento de pessoas?). Tudo, no cenário é preto, a cor do luto, na nossa cultura.

 

            Quanto à direção do espetáculo, considero-a excelente. Torna-se mais fácil dirigir uma peça, quando o diretor é, também, o autor do texto, creio eu. O diálogo consigo mesmo faz com que ele atinja, com um grau maior de verdade e perfeição, o seu objetivo. E quem sai ganhando é o público. As mudanças de tempo são feitas de forma genial, às vezes confundindo o espectador menos atento. Mas isso é muito bom!

 

            Dentre vários detalhes e cenas que mais me chamaram a atenção, destaco:

 

            - Os focos de luz, sobre duas gavetas abertas e um sobre a vitrola, no início da peça. São detalhes instigantes que, com o decorrer da peça, serão compreendidos.

 

            - As duas obstinações de ROBÉRIO: sempre abrir as gavetas, após terem sido fechadas por algum dos outros personagens, e o eterno riscar, com giz branco, tudo o que existe em cena – chão, móveis, objetos...

 

A primeira pareceu-me a maneira de o autor expressar a necessidade de expurgar todas as sujeiras, expor o oculto, tocar nas feridas, talvez a única maneira de se atingir um equilíbrio naquela casa. E o curioso é que tal intenção brota, exatamente, daquele que, “tecnicamente”, seria o menos indicado a fazê-lo, enquanto os outros parecem estar sempre querendo varrer algo para debaixo do tapete.

 

A segunda, confesso que pensei ter atingido a intenção do diretor, mas só “vi sentido” em alguns momentos, quando, por exemplo, o menino circula o espaço ocupado por alguns personagens e traça linhas, ligando-os.

 

 


 

 

            - A participação dos personagens na organização da festa de aniversário de ROBÉRIO é das coisas mais patéticas que já vi em cena. Tudo parece uma obrigação, ninguém sente alegria e interesse em festejar o aniversário do menino. Tudo parece funcionar no “piloto automático”, sem sentimentos, sem emoção.

 

            - A cena de surto, de ROBÉRIO, é fantástica, comovente, de fazer perder o fôlego. O espectador sofre, com o menino, “participa” da cena. Eu chorei, por dentro. De pena, de dor, pela minha impotência, por não poder livrá-lo daquele sofrimento...

 

A participação do tio OSVALDO, na referida cena, o único a conseguir acalmá-lo, e da forma, firme e, ao mesmo tempo, carinhosa, como o faz, me fez “viajar”, achando que, como não se faz menção à paternidade do menino, poderia ele ter sido fruto de um romance clandestino, proibido, entre sua mãe e o tio (Será?).   

 

            - A cena de humor patético, em que OSVALDO conta três piadas, engraçadas, para despertar o riso do sogro. Um grande momento de interpretação de TAIRONE VALE e JOSÉ EDUARDO ARCURI, que, aos olhos do público leigo, passa apenas como uma cena engraçada.

 

            - Todas as cenas de embate entre as duas irmãs, ricas em agressividade, ironia e sarcasmo. Muito contribui para a excelência das cenas os talentos de BRUNA PORTELLA e VIVIAN SOBRINO.

 

            - A interessante metáfora que o autor estabelece entre os “humanos” e as zebras.

 

            - A cena da frustração, pelo fato de os convidados para a festa de aniversário de ROBÉRIO não terem comparecido, “por causa da chuva” (Seria a verdadeira causa?).    

 

 

         Não vejo a hora de rever o espetáculo, que não me canso de recomendar!!!

 

 

 


 

 

 

 
FICHA TÉCNICA:
 
Autor e Diretor: Rodrigo Portella
Codireção e Trilha Sonora: Leo Marvet

Elenco: Cia Cortejo: Bruna Portella, José Eduardo Arcuri, Luan Vieira, Tairone Vale e Vivian Sobrino

Iluminação: Renato Machado
Figurinos: Daniele Geammal
Cenografia: Raymundo Pesine
Projeto Gráfico: Raul Taborda
Fotos de Divulgação: Renato Mangolin
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Produção: Cia Cortejo
Realização: Sesc Rio
 

 

 


 

 

 

 




 

 

 
SERVIÇO:

Local: Espaço Sesc (Mezanino) – Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, Rio de Janeiro.
Tel. (21) 2548-1088.
Temporada: De 13 de fevereiro a 13 de março.
Dias e Horários: De 5ª feira a sábado, às 21h; domingo, às 20h.
Valor do Ingresso: R$20,00 (inteira), R$10,00 (meia-entrada) e R$5,00 (associado Sesc)
Classificação Etária: 14 anos
Duração: 75 minutos
Gênero: Drama
 

 

 

 


(FOTOS: RENATO MANGOLIN.)

 

 

Um comentário:

  1. Muito obrigada pelo lindo texto, pelo recorte muito carinhoso da história de nossa companhia, pela presença e por sua atenção Gilberto. Estamos todos muito felizes!!!

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