quinta-feira, 2 de outubro de 2014


BLACKBIRD

 

 

 

(UMA RELAÇÃO BEM DELICADA.)

 

 


 

 

 

            É muito gratificante, MUITO MESMO, assistir a um espetáculo que não conta com nenhum patrocínio e que, por sua excelente qualidade, só na base da divulgação de boca em boca, desde sua estreia, vem mantendo o Teatro Gláucio Gill, em Copacabana, com LOTAÇÃO ESGOTADA.  Sim, aquele cartazinho, afixado ao vidro da bilheteria, que causa frustração a quem deseja assistir à peça e uma enorme alegria a toda a equipe de produção do espetáculo.

            É o que vem ocorrendo com BLACKBIRD, um ótimo texto, do escocês DAVID HARROWER, inédito no Brasil, mas muitas vezes premiado no exterior, montado em mais de 40 países, mais de 90 vezes, traduzido por ALEXANDRE J. NEGREIROS, dirigido por BRUCE GOMLEVSKY, contado com as interpretações de VIVIANI RAYES, YASHAR ZAMBUZZI e LORENA COMPARATO, esta em brevíssima, mas não menos importante, participação.

 

 

 


Frustração para uns, alegria para outros.

 

 

            O espetáculo não é para entreter, mas para se ter entre um dos principais assuntos de discussão do dia a dia e, principalmente, da atualidade: a questão da pedofilia, sem dúvida alguma, um dos mais abjetos crimes que alguém possa cometer.

            A dramaturgia se debruça sobre um caso real de pedofilia, que se deu em 2003, quando um ex-fuzileiro, de 32 anos, passando-se por 23, encontra-se com uma jovem, que se dizia ter 19 anos, porém não passava dos 12, sendo que ambos se apaixonaram e fugiram, para viver um intenso amor, o que rendeu ao pedófilo uma pena criminal.  Na adaptação para ao palco, a ação se passa 15 anos após o “tal encontro”, depois de o criminoso ter pagado por seu crime e já estar em liberdade.

 

 
            Numa muito simples sinopse, que sirva de base para maiores comentários sobre a peça, pode-se dizer que o espetáculo conta o reencontro entre duas pessoas, quinze anos depois de terem vivido uma história de amor.  O que será que eles têm a dizer um ao outro?
 

 

            Realmente, essa sinopse é quase nada.

 

Por que o reencontro?  Deu-se por acaso ou foi provocado?  Por quem?  Com que intenção?  Foi uma história de amor como qualquer outra?  Quem foram os protagonistas dessa história de amor?  Quem são e como estão agora?  Que consequências essa história de amor gerou?  E por que...?   E o que...?  E quando...?   E...?   E...?   E...?

 

            Os protagonistas dessa história de amor são RAY (YASHAR ZAMBUZZI) e UNA (VIVIANI RAYES).  Não viveram um relacionamento amoroso dentro dos padrões sociais da “normalidade”, uma vez que, na peça, quando o sentimento passou a existir, ela tinha apenas 12 anos e ele 41.  O “incômodo”, para os outros, na relação, não era, evidentemente, a diferença de idade, 29 anos, e sim o fato de a menina ter apenas 12, o que caracteriza o crime hediondo de pedofilia.

 

 

 

Blackbird no Teatro Gláucio Gill

Yashar Zambuzzi e Viviani Rayes.

 

 

            O encontro não se deu por acaso.  Foi UNA quem descobriu o paradeiro de RAY e foi encontrá-lo, em seu local de trabalho, com o objetivo de culpá-lo por toda a sorte de sofrimento, de humilhação por que passara, após o romance ter-se tornado público. 

Seria um encontro para um acerto de contas. 

Mas não é bem por esse trilho que o trem corre, quando nos deparamos com um final aberto, daqueles que fazem a plateia sair do teatro, discutindo se há ou não culpados, se é ou não possível a existência de um verdadeiro sentimento de amor por parte de uma “criança” de 12 anos, se é “normal” que um homem experiente, de 41 anos, possa mesmo acreditar na possibilidade de compartilhar um sentimento amoroso, mais do que um impróprio desejo carnal, com uma “mulher” muito ainda em formação...  E mais... e mais... e mais...

Perguntado do que a peça tratava, o autor apenas limitou-se a responder: “Eu tenho consciência de que estamos diante de um terreno minado e perigoso, pois todos nós sabemos que esse tipo de relacionamento não deve acontecer.  Mas foi muito importante, para mim, deixar esses dois personagens numa sala, juntos e sozinhos, para dizer qualquer coisa que quisessem um ao outro, sem censurá-los.  E eles podem e têm esse direito.  Porque são as duas únicas pessoas que sabiam exatamente como se sentiam e o que eles de fato queriam”.



 


 


 


 




 




Para o diretor, BRUCE GOMLEVSKY, “O autor nos confronta com RAY e UNA, de alguma maneira, pedindo que não os julguemos.  Simplesmente nos pede que os escutemos e que esgotem todo o dito e o não dito.  O que precisa vir à tona.  Os próprios personagens não conseguem entender e dar conta de sentimentos tão complexos.”

Na verdade, a pedofilia é apenas um pretexto, habilmente encontrado pelo dramaturgo, para contar a história de um amor não-convencional, vivido por protagonistas “gauches”, “tortos”, “pervertidos”, que merecem a “reprovação” dos que vivem dentro de uma “correta” ordem social, política, religiosa, praticantes, convictos, dos valores éticos e morais.  

            É muito importante que fique bem claro que, sob qualquer hipótese, não há, em nenhum momento da peça, um mínimo resquício de um desejo, por parte do autor, de promover qualquer apologia à pedofilia.

 

O texto flui com muita naturalidade, ora mais leve, ora mais denso, obrigando os atores, em ótimas performances, a um permanente exercício de modulação da voz e equilíbrio emocional, para que as frases sejam ditas com a intensidade imaginada, e desejada, por quem as cunhou e por quem dirige o par de atores em cena.

 

 

 


 

 

 


 



 

 
 
FICHA TÉCNICA (comentada):
 
Elenco: VIVIANI RAYES = UNA, YASHAR ZAMBUZZI = RAY e LORENA COMPARATO = GAROTA
            O espetáculo conta com mais de um protagonista (no caso, dois) e, quando isso acontece, o ideal é que nenhum deles se sobreponha ao outro, em termos de potencial interpretativo, para que não ocorra um inevitável desequilíbrio de atuações, facilmente percebido pelo espectador mais atento.  Em BLACKBIRD, há uma estabilidade total, proporcionada pelos excelentes trabalhos de YASHAR e VIVIANI.  Ambos atuam com muita paixão pelo ofício e com muita verdade e maturidade profissional.  É um privilégio ver o casal em cena.  É muito gratificante assistir ao trabalho de dois atores que nos representam, que são motivo de orgulho para o TEATRO.  Ambos mergulham, bem fundo, no âmago de seus personagens e trazem à tona todas as consequências daquele tsunâmi do passado.   
Texto: DAVID HARROWER – Ótimo!  Os comentários já foram feitos anteriormente.

Tradução: ALEXANDRE J. NEGREIROS – Mesmo sem conhecer o texto original, pareceu-me de muito boa qualidade.
Direção: BRUCE GOMLEVSKY BRUCE, por tantos outros trabalhos já demonstrou sua grande competência como diretor, além do ótimo ator que é.  Em geral, escolhe textos densos, que permitam amplas discussões e que tocam nas feridas adormecidas ou quase cicatrizadas das pessoas.  Seus últimos trabalhos de direção, alguns merecidamente premiados, atestam este comentário.  Mais uma vez, merece meus aplausos, à frente da direção deste espetáculo, por erguer sua batuta à altura ideal, por saber levar os atores ao ponto certo de encontrar e gerar emoções, sem permitir que a peça pudesse se transformar num dramalhão de novela mexicana.
Direção de produção: VIVIANI RAYES
Produção executiva: YASHAR ZAMBUZZI
Coordenação de produção: RAFAEL FLEURY – Sempre atento aos mínimos detalhes, o que leva a um resultado excelente, em seus trabalhos, como neste BLACKBIRD.
Cenário: PATI FAEDO – Simplesmente, fantástico!  Brilhante a ideia de transformar um contâiner num local, uma espécie de “puxadinho”, da empresa onde YASHAR trabalha, no qual se desenvolve toda a ação.  O espaço fica, propositalmente, muito reduzido, ainda mais com os móveis e objetos de cena, quase claustrofóbico.  Ao fundo, um janelão, com todos os vidros quebrados, com marcas de pedradas (Seriam aquelas que, durante 15 anos, a sociedade atirou em YASHAR e UNA?)  Causa uma péssima impressão, à primeira vista, pelo lixo espalhado por todo o ambiente e que, vez por outra, é catado ou revirado.  É magistral a cena da guerra de lixo promovida entre os protagonistas, em que um tenta “soterrar” o outro com o lixo do ambiente, o lixo de suas vidas.  Paradoxalmente, é o lugar em que os funcionários da empresa fazem suas refeições.  É insalubre, é, simbolicamente, o reflexo do que vai na alma dos protagonistas.  RAY, parece que um pouco mais que UNA, tenta, de vez em quando, se livrar daquele lixo, mas a impressão que passa é de que ele, o lixo, como uma praga, se multiplica facilmente.
Figurinos: TICIANA PASSOS – São corretos, sem grandes destaques.
Iluminação: ELISA TANDETA – Muito boa.
Trilha original: MARCELO ALONSO NEVES – Também funciona bastante, para sublinhar algumas cenas.  Percebemos, no bom trabalho, a marca de MARCELO.
Assistência de direção: FRANCISCO HASHIGUCHI
Assistente de produção: ANTÔNIO BARBOZA
Assessoria de Imprensa: ALESSANDRA COSTA
Programação Visual e Fotografias: THIAGO RISTOW
Fotografias: THAISSA TRABALLI
 
Idealização: Te-Um TEATRO
Produção e Realização: RAYES PRODUÇÕES ARTÍSTICAS
 

 

 

 


Yashar Zambuzzi e Lorena Comparato.

 

 

 
SERVIÇO:
 
Temporada: até 13/10, de sábado a 2ª feira, sempre às 20h.
Local: TEATRO GLÁUCIO GILL – Praça Cardeal Arco Verde, S/nº – Copacabana

Duração: 90 min
Gênero: Drama
Classificação indicativa: 16 anos
 

 

 




Trabalho de equipe: Lorena Comparato, Antônio Barboza, Rafael Fleury, Yashar Zambuzzi e Viviani Rayes.

 

 








(FOTOS: THAISSA TRABALLI e THIAGO RISTOW)

 

 

 

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