“ABSOLVIÇÃO”
ou
(CHAGAS QUE NÃO CICATRIZAM
DE TODO.)
ou
(DORES QUE NÃO PODEM SER VARRIDAS PARA DEBAIXO
DO TAPETE.)
ou
(BELÍSSIMO TEATRO-DENÚNCIA!)
Depois de
ter estreado, com sucesso, no famoso “Edimburg Fringe Festival”, de Edimburgo, capital da Escócia,
tendo sido recebido com aclamação pela crítica especializada, e de ter sido
apresentado, também, em palcos de Nova
York e Londres, com igual aceitação, chegou a vez de o Brasil, mais propriamente o público
carioca, poder assistir ao premiado monólogo “ABSOLVIÇÃO” (“Absolution”, no original) e
aplaudi-lo com entusiasmo, como eu fiz na sua noite de estreia, anteontem (7 de
março de 2025), no Espaço Abu, o acanhado, porém
simpaticíssimo, teatro de Copacabana, voltado para montagens intimistas,
como esta.
SINOPSE:
“ABSOLVIÇÃO” traz as
confissões de um homem movido por um propósito obsessivo: caçar padres abusadores de crianças e
fazer justiça com as próprias mãos.
Com um enredo instigante, reviravoltas
e revelações, além de um final surpreendente, totalmente inesperado, o texto
levanta questões profundas sobre
ética e justiça, provocando o público a refletir: ele é um anjo vingador em uma missão
divina, “com o aval da Virgem Maria”, ou, simplesmente, um assassino?
Pela SINOPSE supra, já se pode entender que o espetáculo não se
propõe a levar um mero entretenimento ao público, e sim fazer com que o
espectador se reporte a um antigo programa de TV, chamado “Você Decide”, tornando-se, assim,
uma espécie de juiz, a julgar os atos de pessoas que, por um gravíssimo desvio
de conduta ou por uma patologia, se prestam a violentar, sexualmente, outrem,
principalmente crianças, indefesas, e também outros indivíduos que se investem
da condição de “justiceiros”,
para vingar esses crimes. No caso específico, aqui, os pedófilos são religiosos, padres da Igreja Católica, embora saibamos que isso também ocorre, porém,
ao que parece, com menor frequência, praticado por religiosos que professam
outro tipo de fé – pastores e pais de santo -, atendo-nos apenas a religiões.
Pelo parágrafo acima, percebe-se que nem sempre o TEATRO é um vetor, no sentido figurado, que conduz ao riso,
embora a maioria das pessoas procurem as salas de espetáculo com tal disposição
e propósito. Se é o seu caso, passe pela outra calçada do Espaço Abu, visto que o solo em tela
é provocativo, triste e visceral, abordando uma temática, infelizmente, universal e atemporal, que mexe,
significativamente, com as nossas emoções e nos provoca diferentes sentimentos,
todos transitando entre o ódio e a vingança, os quais devem ser esquecidos,
assim como também é preciso que seja sepultado nosso “pendor” para a prática do “olho por olho, dente por dente”, transferindo à Justiça, isso sim, a tarefa de agir
e punir os infratores criminosos. É uma pena que, nem sempre, essa justiça não
seja efetivada, ou, pelo menos, com o peso com que um crime de tal ordem
merecia ser julgado.
Em “ABSOLVIÇÃO”, o TEATRO nos chega como um elemento
que “tem o poder
de nos confrontar com verdades incômodas e, às vezes, nos deixar sem respostas
definitivas”. Por ser um espetáculo tão perturbador, não se preocupe, portanto, se
você não conseguir chegar a um juízo de valor definitivo sobre o personagem,
tão bem defendido por ANDRIU FREITAS, um ator de múltiplas possibilidades, cujo trabalho eu ainda não
conhecia, a despeito de ter atuado no TEATRO,
no cinema e na televisão, em algumas produções, como atesta o “release” que recebi de RODOLFO
ABREU (Interativa Doc), responsável
pela assessoria de imprensa da
peça. Nunca é tarde para se conhecer, e reverenciar, um talento, como o de ANDRIU,
que passo a apreciar e aplaudir com entusiasmo. Certamente, em montagens
futuras, sua presença num elenco será um dos fatores a me fazer interessado
no espetáculo.
Facilita muito, para o ator
e a direção, um texto duplamente original como este, por apresentar originalidade
e por ser a primeira vez em que é levado à cena no Brasil, escrito pelo
irlandês contemporâneo OWEN O’NEILL, também ator e que carrega um
grande peso positivo e “responsabilidade” no sobrenome (Quem
não se lembra do grande dramaturgo norte-americano, anarquista e socialista, Eugene O’Neill?). Tive a grata oportunidade de ter acesso
a uma entrevista do autor deste monólogo a RODOLFO
ABREU, na qual afirma ter sido inspirado
por um documentário australiano, assistido por ele, em 2002, no qual um homem,
já na casa dos sessenta anos, relatava abusos sofridos na infância. A maneira
como a vítima revivia a dor de sua juventude, como se fosse ainda aquele menino de nove
anos, comoveu o dramaturgo, que decidiu
transformar essa dor em uma narrativa potente, com uma reviravolta
de vingança e justiça. Para escrever “ABSOLVIÇÃO”, O’NEILL entrevistou várias vítimas de abuso, “que
não apenas expressaram revolta contra a Igreja, mas também contra uma sociedade
que, ciente das violações, se calava”. Essa impunidade, muito bem
expressa na peça, é o que põe o público numa posição desconfortável: “seria
possível justificar um ato extremo diante de tamanha impunidade?”.
Owen O'Neill.
Owen O'Neill, interpretando em "Absolution".
A peça enfoca e explora os reais sentidos de moralidade, justiça e vingança. Questionado sobre como,
particularmente, via o protagonista fazendo justiça com suas próprias
mãos e se ele, o autor, tinha a intenção de criar uma “brain storm” na cabeça do espetador, com um possível debate sobre
a figura do “anjo vingador” e
o que tinha a dizer sobre o falho sistema
de justiça institucional, em qualquer país, OWEN O’NEILL respondeu
afirmativamente a tudo, com justificativas muito plausíveis.
Considerando-se
o fato de que o Brasil é o país com a maior população católica do mundo, o
autor disse acreditar que seu texto deve ser recebido, em nosso país, por
aquilo que ele trata, ou seja, “uma desgraça e uma abominação e eu espero
que todas as pessoas católicas decentes, não importa de que país venham, entendam
a pergunta que eu estava fazendo na peça. Eu tentei colocá-los na posição do
homem do documentário, que estava sendo abusado sexualmente, semanalmente.
Seria errado, neste caso, desobedecer ao sexto mandamento? Deixo a pergunta ‘O
que é justiça?’ na mente do público.”.
Um dos
vários motivos que me atraíram a assistir ao espetáculo foi saber que o
original foi traduzido por DIEGO TEZA, a quem reputo como um dos
nossos melhores tradutores de peças teatrais, sendo isso uma espécie de “hobby”
do tradutor.
DIEGO tem por hábito garimpar textos
estrangeiros de qualidade, inéditos por aqui, traduzi-los e guardá-los em seu
arquivo pessoal, para atender a algum produtor(a), diretor(a) ou ator/atriz que
o procura, pedindo-lhe um bom texto para ser montado, como fez ANDRIU FREITAS. Chamo a atenção de quem
ainda irá assistir à peça para que preste bastante atenção ao trabalho de corpo
e de expressões faciais do ator, e que nunca deixe passar sem registro nada do
texto. Tudo nele é importante e acaba sendo uma espécie de peças de um
quebra-cabeça, que, paulatinamente, vai sendo montado. E toda atenção é pouca e
se faz necessária para as duas últimas frases do personagem. Leva-nos ao “nocaute”.
É o “tiro
de misericórdia”.
Trata-se de um roteiro bastante realista e “cruel”, no sentido de mexer com a emoção do espectador, do início ao fim, provocando, em cada um dos que se mantêm fixados nas narrativas expostas, como fraturas inconsolidáveis, um sentimento de, no mínimo, raiva e desejo de justiça, quer pelas próprias mãos – a proposta - quer pela oficial, para quem está de fora da ação. Aos poucos, o personagem vai se apresentando como um homem atormentado e fixado num desejo, reprovável, de justiça pessoal, muito difícil de ser domado, é verdade. A dramaturgia “aposta em saltos temporais, que revelam, aos poucos, as camadas desse homem atormentado” (extraído do já referido “release”.). O ator vai dando seu texto sem revelar sua própria identidade, a qual vai sendo “sugerida” aos poucos. Na primeira cena, ele aparece vestido apenas com uma cueca “samba-canção” branca e uma camiseta idem; e descalço. Aos poucos, vai se compondo por fora: calça, meias, sapato e paletó, tudo na cor preta. Mas só isso não diz quem ele é, o que se constitui numa grande surpresa, ao final do espetáculo. É bom que se esclareça que o autor não é, explicitamente, favorável a se fazer justiça com as próprias mãos, mas, sim, "joga para o uiiverso" uma teoria assaz discutível.
Sem dúvida,
o texto prende, logo de início, a atenção do espectador, “por
sua intensidade discreta, quase casual”, como se manifestou um crítico do “The
New York Times”, de quem, nem em pensamento, me atrevo a discordar.
Trata-se de uma obra de ficção, inédita no Brasil, todavia, para chegar à forma final do
texto
dramático, o autor não poupou esforços para coletar informações reais,
que pudessem alicerçar sua obra teatral. A despeito de ter sido escrito há quase
20 anos, todos sabemos, assim como O'NEILL, que essa questão, vira e
mexe, toma conta dos noticiários do mundo inteiro, trazendo à tona chagas muito
difíceis de cicatrizar.
A direção, assinada por DANIEL HERZ, é mais um
de seus incontáveis acertos, revestida de muita inteligência, criatividade e
bom gosto, sabendo trabalhar e explorar a potência do ator, conduzindo o
espetáculo para fora do óbvio,
trazendo soluções e
movimentações cênicas que agregam uma bela plasticidade à peça, ao mesmo
tempo que nos fazem enxergar
as histórias narradas
pelo polêmico personagem. Realmente, conseguimos imaginar todas as cenas;
“enxergá-las”.
É impressionante o que DANIEL HERZ
faz com aquela meia dúzia de cadeiras, em estado de pouca ou quase nenhuma conservação,
como ele transforma cada uma daquelas peças em objetos, lugares, pessoas
inimagináveis para qualquer espectador. A cada nova cena, uma surpresa diferente.
Um trabalho digno de duradouros aplausos, que também, em muito, são devidos à
magistral interpretação de ANDRIU
FRIETAS, repito. Direção e ator criaram movimentos
milimetricamente pensados e testados, para explorar o que de melhor cada móvel
destroçado poderia representar, metaforicamente. O ator contracena com as
cadeiras.
É
claro que, depois do que foi exposto no parágrafo acima, tenho o dever e a
obrigação de render muitos “vivas” ao trabalho de cenografia,
de WANDERLEY GOMES, premiado artista,
que também é responsável pelo único figurino da peça. O valor do
belíssimo trabalho cenográfico de WANDERLEY
se torna mais robusto, se levarmos em consideração que criar um cenário
de um espetáculo a ser montado num espaço cênico tão mirrado e a menos de um
metro da primeira fila de espectadores, em ambos os lados da plateia, é um desafio,
para que um cenógrafo consiga dar o seu melhor e obter um fabuloso resultado. WANDERLEY
GOMES é desses.
Cumpre acrescentar que os preciosos detalhes
– são muitos – da cenografia e o que eles significam
são, por demais, valorizados pela irretocável iluminação, obra de um grande mestre: AURÉLIO DE SIMONI.
Também não posso omitir a grandeza da trilha
sonora, criada por PEDRO ARAÚJO, que sublinha, de forma
perfeita, todas as cenas.
FICHA
TÉCNICA:
Idealização:
Andriu Freitas
Texto: Owen
O’Neill
Tradução:
Diego Teza
Direção:
Daniel Herz
Assistência
de Direção: Carol Santaroni
Atuação:
Andriu Freitas
Cenário:
Wanderley Gomes
Figurino:
Wanderley Gomes
Iluminação: Aurélio
de Simoni
Trilha Sonora:
Pedro Araújo
Cenotécnica:
Beto de Almeida
“Design” Gráfico: Luiz Stein
Fotografia:
Victor Hugo Cecatto
Operador de
Luz: Marcelo de Simoni
Operador de
Som: Daniel Studart
Direção de
Produção: Bárbara Montes Claros
Assessoria
de Comunicação: Rodolfo Abreu / Interativa Doc
Apresentado
por: Pirata Produções
SERVIÇO:
Temporada: De 07 a 30 de março de 2025.
Local:
Espaço Abu.
Endereço:
Avenida Nossa Senhora de Copacabana, nº 249 – loja E – Copacabana – Rio de
Janeiro.
Dias e Horários:
6ª feira e sábado, às 20h; domingo, às 19h.
Valor dos
Ingressos: R$ 60 (inteira) e R$ 30 (meia-entrada).
Ingressos via Sympla: https://linktr.ee/absolvicao.peca
Classificação etária: 16
anos.
Duração: 60 minutos.
Gênero: Monólogo Dramático.
“ABSOLVIÇÃO” é um
espetáculo inquietante, que desafia o espectador a questionar ao limites
éticos alheios e os seus próprios. Até onde vai a sede por justiça? Quando a
vingança se torna indistinguível do crime que se pretende punir?
A questão da pedofilia,
no Brasil, é muito mais
absurda, profunda e inadmissível do que se possa imaginar e este espetáculo
pode, e vai, contribuir para o debate sobre o tema, ao jogar luz sobre os abusadores de crianças e suas redes de
proteção. “No Brasil, os
jornalistas Fábio Gusmão e
Giampaolo Braga fizeram um trabalho de reportagem que reuniu 108 casos reais, publicado no livro “Pedofilia na Igreja” (Editora
Máquina de Livros, 2023). O resultado do trabalho, que durou cerca de três anos,
é um minucioso retrato da
pedofilia na Igreja Católica no Brasil, com membros da igreja acusados,
indiciados, denunciados, condenados ou que se tornaram réus, por
envolvimento em abuso sexual de 148
crianças, adolescentes ou pessoas com deficiência intelectual, em 96 cidades de 23 estados.” E nunca devemos nos
esquecer de que vivemos num país de maioria católica.
FOTOS: VICTOR HUGO CECATTO
e RODOLFO ABREU.
GALERIA PARTICULAR
(Fotos: Rodolfo Abreu):
Com Andriu Freitas.
Com Andriu Freitas e Edmilson Barros.
Com Daniel Herz.
Com Rodolfo Abreu.
É
preciso ir ao TEATRO, ocupar todas as salas de espetáculo, visto que a arte educa e
constrói, sempre; e salva. Faz-se necessário resistir sempre mais. Compartilhem esta crítica,
para que, juntos, possamos divulgar o que há de melhor no TEATRO brasileiro
Nenhum comentário:
Postar um comentário