domingo, 6 de dezembro de 2015


SATÃ

UM SHOW PARA MADAME

 

 

 

(E UM “SHOW” DE INTERPRETAÇÃO.)

 

 

 

 


 

 

 

 

            Você conhece, ou melhor, conheceu João Francisco dos Santos? Nem ouviu falar dele? Mas, certamente, o nome de MADAME SATÃ, a alcunha pela qual era conhecido, lhe é familiar.

 

            Quem nunca ouviu falar do malandro, pobre, nordestino, negro, homossexual, arruaceiro, um ás na capoeira e na navalha, que brigava contra muitos adversários, ao mesmo tempo, o terror da Lapa, capaz, segundo as lendas, de levar para a cama o homem que desejasse, sob a ameaça de deixar-lhe marcas de navalhadas no rosto, caso se recusasse a realizar os seus caprichos sexuais? Um marginal do/no seu tempo.

 

            João foi nascido e criado numa família de dezessete irmãos. Reza outra lenda (Ou seria uma cruel verdade?) que, ainda criança, fora trocado, por uma égua.

 

Pernambucano, ainda jovem, transferiu-se de sua cidadezinha para o Recife, onde viveu de pequenos serviços (domésticos) prestados. Posteriormente, mudou-se para o Rio de Janeiro, indo morar na Lapa.

 

Analfabeto, o melhor emprego que conseguiu foi o de entregador de marmitas, embora houvesse o boato de que era um cozinheiro de mão-cheia.

 


 


O admirador de Satã ou o próprio?

 

 

Segundo seus biógrafos, era dotado de uma índole irônica e extrovertida. Demonstra isso, na peça, quando narra, com detalhes, seus feitos contra os inimigos. Encantou-se pelo carnaval carioca e foi assim que, em 1942, ao desfilar no bloco de rua Caçador de Veados”, surgiu seu apelido, por se vestir com a fantasia Madame Satã, inspirada em filme homônimo, de Cecil B. DeMille.

 

Era frequentador assíduo do bairro onde morava, conhecido como reduto carioca da malandragem e da boemia, na década de 1930, onde, muitas vezes, trabalhou como segurança de casas noturnas, onde ficava atento para que as meretrizes não fossem vítimas de estupro ou agressão.

 

Foi preso, várias vezes, chegando a ficar confinado ao temido presídio da Ilha Grande, já desativado. Respondeu a cerca de 20 processos, dentre os quais muitos por desacato à autoridade, agressão e homicídio (foi acusado de três) e cumpriu 27 anos de condenação.

 

Dizem que muitas de suas prisões foram injustas, já que não havia sido ele o autor dos delitos. Três coisas, porém, faziam com que sempre estivesse cara a cara com um delegado: a fama que criou, de valentão, que o levou à condição de “bode expiatório”; as más companhias com as quais andava (cometiam delitos e a culpa recaía sobre ele); e a perseguição, por parte da polícia, sempre disposta a “mostrar serviço”, especialmente, de um famoso delegado Padilha.

 

 


 

 

Padilha fora nomeado para “moralizar a cidade”, combatendo a prostituição e a malandragem. Era truculento, severo e intransigente. Não era adepto de conversar e averiguar; com ele, tudo se resolvia na violência: tapas, cacetadas, pescoções, “telefones” (golpes aplicados, com as mãos em concha, nas orelhas da vítima), acabando tudo na cadeia. Parecia ter o dom da ubiquidade, pois dava a impressão de estar, ao mesmo tempo, em vários bairros da cidade, de norte a sul, com sua equipe, sendo o terror das prostitutas, dos homossexuais e, também, dos casais de namorados, já que confundia “namoro” com “prostituição”. Bastava um casal estar abraçado e namorando, na rua, para isso ser considerado “imoral”.

 

Ele era tão intransigente que, com o advento da moda de calças compridas muito justas, quando dava com alguém usando uma delas, pegava a pessoa e tentava fazer com que uma laranja, uma maçã ou, até mesmo, um limão passasse pela perna da calça, entrando pelo cós e saindo pela bainha. Se isso não acontecesse, o resultado seria a cadeia ou, no mínimo, a calça cortada a tesouradas.

 

Dizem alguns que, apesar de toda a repressão exercida contra os "gays" (nem se sonhava com o termo, naquela época), muitos deles morriam de paixão pelo delegado, por ter sido ele um homem muito bonito e, a despeito de toda a violência, sempre deixava transparecer uma certa sensualidade. MADAME SATÃ, em suas memórias, chegou a elogiá-lo, deixando clara a sua simpatia por ele (Teria ficado só na “simpatia”?).

 

 


(Foto: Arquivo Pessoal)

 

 


Frequentemente, SATÃ enfrentava a polícia e acabava detido, por desacato à autoridade. Considerado exímio capoeirista, lutou, por diversas vezes, contra mais de um policial, vários, geralmente em resposta a insultos que tivessem como alvo mendigos, prostitutas, travestis e negros. Era, por assim dizer uma espécie de Dom Quixote Tupiniquim, protetor dos fracos e oprimidos.

 

É considerado uma referência na cultura marginal urbana do século XX. Em maio de 1971, SATÃ concedeu uma polêmica entrevista ao, não menos polêmico, jornal “O Pasquim”, entrevistado por Sérgio Cabral, Paulo Francis, Millôr Fernandes, Chico Júnior, Paulo Garcez, Jaguar e Fortuna, a partir da qual passou a ter o foco voltado para si, porém de outra forma, tornando-se o que, hoje, se chama de “celebridade”, não mais como o estigmatizado “bandidão”. Participou, então, de algumas entrevistas na TV, fez participações em “shows” de boates e “night clubs”, até em teatro, porém isso foi bastante efêmero e acabou no ostracismo.

 

Faleceu, logo após a sua última saída da prisão, em abril de 1976, no Rio de Janeiro, e só não foi enterrado como indigente, graças ao jornalista Jaguar, que o ajudou bastante, no final de sua vida, tendo-lhe garantido um tratamento médico e financiado o traslado de seu corpo para a Ilha Grande, onde ele queria ser enterrado. No lugar da modesta casinha onde morou, naquela paradisíaca, (hoje, nem tanto) ilha, funciona, atualmente, um “camping”.

 

Em 2002, sua conturbada vida foi transformada num excelente filme, dirigido por Karim Aïnouz, tendo sido o personagem brilhantemente interpretado por Lázaro Ramos.

 

Pois, agora, não é que um jovem e talentoso ator/cantor/bailarino, LEANDRO MELO, teve a ótima ideia de levar aos palcos a atormentada vida, e recheada de surpresas, dessa figura do Rio Antigo?!... E o fez na forma de um monólogo-musical.

 

Quero aqui, fazer uma correção quanto à postagem anterior a esta, neste blogue. Lá, eu dizia que o último monólogo a que assisti, neste ano, quando tantos foram encenados, foi “Se Vivêssemos em um Lugar Melhor”, com Roberto Rodrigues. Na verdade, o último que tive a oportunidade e o prazer de ver, pelo menos até o presente momento, este ano, foi “SATÃ...”.

 

 


“A coroa do rei não é de ouro nem de prata /

Eu também já fui rei e sei que ela é de lata...”

(Haroldo Lobo)


 

 

 
SINOPSE:

Um homem, um artista, descobre a história de Madame Satã, apaixona-se pelo personagem, e sai em busca de sua trajetória de vida.
 
Encontra, na Lapa, um lugar abandonado, onde, com coisas antigas de MADAME SATÃ, como livros e jornais,  começa a pesquisar, mais a fundo, para fazer um “show” em homenagem a SATÃ.
 
Não o consegue, porém, e começa a enlouquecer, achando que é o próprio MADAME SATÃ.

No final, ele "faz o 'show'”, que não se sabe, ao certo, se aconteceu, realmente, ou se existiu apenas em seu imaginário.
 



 




 

Segundo o “release” da peça, enviado pela assessoria de imprensa (Gabriel Mello), “O espetáculo é livremente inspirado nas histórias de MADAME SATÃ, personagem emblemático da vida noturna e marginal carioca do século XX,  ícone da malandragem e da história do Rio, e traça uma profunda análise do humano e seu meio social. A obra retrata a história não só do personagem icônico, mas também da Lapa e do Rio. Conhecido como o malandro mais temido da Lapa, MADAME SATÃ possui uma trajetória de vida tortuosa, que reflete as transformações da malandragem. Na peça, das mais diferentes formas, as histórias da Lapa e as do personagem se misturam  e criam um retrato do afamado transformista e da cidade de seu tempo. Procurando balancear uma experiência mental profunda com a leveza de desfechos positivos, “SATÃ, UM SHOW PARA MADAME” é, sobretudo, uma reflexão a respeito de sentimentos como autoestima, felicidade e realizações pessoais.”


Enganam-se, redondamente, aqueles que acham que LEANDRO MELO representa MADAME SATÃ, advindo, daí, algumas desmedidas críticas, pelo fato de o ator ser branco e “interpretar” um negro, e de cara branca, “nem, ao menos, pintado de preto”. Sinal puro de que não entenderam a peça. O personagem é um homem que ambiciona se tornar MADAME SATÃ, e não o próprio.

 


Um dos belos momentos do espetáculo.

 

Ao idealizar este projeto, LEANDRO procurou se cercar de bons profissionais, para que o resultado do processo fosse do agrado do público, como constatei, na sessão em que vi a peça, e como se manifesta a maioria das pessoas com as quais conversei sobre ela.

 

O texto é de JOÃO BATISTA LEITE, que, junto com LEANDRO MELO, mergulhou numa profunda pesquisa sobre o personagem, devendo ter tido um enorme trabalho para checar as informações, muitos distorcidas e imprecisas, como é de costume, num país sem, ou de pouca, memória. O resultado do texto-roteiro agrada, pois passa credibilidade quanto às informações que traz. A história contada é muito forte, densa, sufocante, por vezes, já que retrata o “bas-fond”, o universo “underground”, no qual não sobra espaço para o “glamour” e palminhas interrompendo as cenas, até mesmo após os números musicais. O texto vai num crescendo, reservando, para os últimos momentos, o melhor da peça.

 

JOÃO BATISTA já está acostumado a escrever peças biográficas, como “Lapinha”, grande sucesso recente, interpretado por Isabel Fillardis. Também escreveu “Quando a Gente Ama”, um musical delicioso, que caiu na graça do público, todo embalado por canções compostas por Arlindo Cruz, um ícone do bom samba.

 

Em “SATÃ...”, a dramaturgia não é o forte, como acontece em quase todos os musicais biográficos, mas não compromete o espetáculo.

 

 

 

(Foto: Arquivo Pessoal)

Momento de glória!

 

 

A direção ficou a cargo de ÉDIO NUNES, um nome completamente ligado à história dos musicais modernos, no Rio de Janeiro. Quer como ator, quer como dançarino e diretor, ÉDIO tem participado de inúmeros sucessos nos últimos anos, atualmente em cartaz, em “SAMBRA, O Musical – 100 Anos de Samba”. Acho que acertou nas medidas.

 

LEANDRO MELO é o grande nome do espetáculo.

 

Muitos meses antes da estreia da peça, por várias vezes, em encontros casuais, LEANDRO me falou desse projeto, e sempre com muito vigor, com brilho nos olhos. Sua paixão pelo personagem e sua entrega total ao trabalho são responsáveis por uma bela “performance” em cena, tanto nos momentos de lucidez, ao demonstrar o total encantamento de um homem, na faina de procurar saber sobre o seu ídolo, como ao se sentir SATÃ, nos momentos de “surto”.

 

O ator, com técnicas diferentes e muito atento ao que está fazendo, consegue dar pistas, ao espectador, de que está saindo de um personagem, para entrar em outro. Seu trabalho é digno de elogios, não só nos textos como na interpretação das canções, principalmente com relação a estas, não só cantadas, mas interpretadas, de acordo com o que dizem suas letras.

 

MARCELO MARQUES também tem um peso grande nesta produção, pois é responsável pela direção de arte (cenários e figurinos).

 

O cenário, que reproduz uma espécie de beco ou porão (fica a critério de cada um), na Lapa, onde, supostamente, teria morado SATÃ, simboliza, talvez, o caos que foi a vida do personagem-título da peça: muitos jornais, revistas e livros, velhos e amarelados, tomando toda a área cênica, espalhados, desordenadamente, pelo chão, mais muitos espelhos, inteiros e quebrados, aplicados nas paredes, além de muitos objetos cortantes, ferramentas, pendentes do teto, sem falar em objetos velhos e desgastados, espalhados em cena. Causa um certo mal-estar, ao espectador, assim que adentra o teatro, e, ao mesmo tempo, instiga a sua curiosidade.

 

Os figurinos, o forte do trabalho de MARCELO, também são bastante interessantes e criativos, principalmente a enorme saia vermelha, que fascina o público, na cena em que é utilizada.

 

A parte plástica do espetáculo e a movimentação de LEANDRO, em cena, são valorizadas por uma ótima luz, de RUSSINHO.

 

 


Um detalhe da ótima luz.

 

 

Uma banda, formada por CLÁUDIA ELISEU, RALPHEN ROCCA, PAULO TINTONELLI e SÉRGIO CONFORTO se encarrega de acompanhar o cantor/ator/bailarino, em canções antigas e atuais, que vão de Noel Rosa a Chico Buarque, passando por Ismael Silva, Ary Barroso, Francisco Alves, Luiz Peixoto e Paulo César Pinheiro, por exemplo, todas muito bem inseridas no roteiro da peça.

 

Essa parte musical funciona bastante, graças ao trabalho de direção musical, de WLADIMIR PINHEIRO.

 

A coreografia, de KIKO GUARABYRA, e a preparação corporal e o trabalho de “coach”, de WGNER BRANDÃO, são muito importantes na atuação de LEANDRO MELO.

 

O design gráfico é atribuído a ALEX VALENTE. Não sei se foi ele o criador da “arte” do espetáculo (cartaz e programa). Seja ele ou outra pessoa, é a quem deixo registrado o meu mais veemente elogio: uma das mais lindas que vi, nos últimos tempos, ao lado da que foi elaborada para o espetáculo “Uma Ilíada”, ainda em cartaz, no CCBB Rio de Janeiro

 



   

“Eu vim ao mundo junto com o século XX” – Madame Satã.

 



 
FICHA TÉCNICA: 

Texto: JOÃO BATISTA LEITE 

Atuação: LEANDRO MELO 

Direção: ÉDIO NUNES
Direção Musical: WLADIMIR PINHEIRO
Músicos: CLÁUDIA ELISEU, RALPHEN ROCCA, PAULO TINTONELLI e SÉRGIO CONFORTO
Direção de Arte (Cenário e Figurino): MARCELO MARQUES
Iluminação: RUSSINHO
Coreografia: KIKO GUARABYRA
Preparação Corporal e “Coach”: WAGNER BRANDI
Designer Gráfico: ALEX VALENTE
Produção Executiva: ALEX LEANDRO
Produtor Assistente: DOUGLAS TEIXEIRA
Estagiaria de Produção e Contrarregra: MARIANA
Consultoria Jurídica: NATÁLIA PAIM
Consultoria Religiosa: RENATO CHAVES DOS SANTOS
Direção de Produção: ALINA LYRA
Idealização: LEANDRO MELO
Produção e Realização: ALKAPARRA PRODUÇÕES
Assessoria de Imprensa: GABRIEL MELLO
 

 



            Em tempo: conheci MADAME SATÃ (Ou teria sido o João Francisco?), no iniciozinho da década de 70, por volta dos meus 20 anos, num final de semana, em férias, na Ilha Grande, na Vila do Abraão.

 

Já tendo cumprido sua última condenação, ele tinha receio de voltar ao Rio, com medo de vinganças. Mas acabou voltando. Num pequeno píer, à luz de um poste de luz fraca, desnecessário, já que a lua, no seu esplendor, iluminava aquela noite, ficamos, um grupo de cerca de dez amigos e SATÃ (Ou teria sido o João Francisco?), conversando, cantando, bebendo água de coco e ouvindo, até quase o raiar do dia, as histórias que ele nos contava, assegurando que muito do que se falava dele era mentira. E eu acredito nele.

 

            Era um homem doce, amargurado, sofrido e sem rancores, cuja única ambição, na vida, era ser um artista.

 

Sim, hoje, eu tenho certeza de que  foi, realmente, o João Francisco a pessoa que conheci naquela noite.

 

 

 


Apoteose! Bravo!

 

 

 

 

(FOTOS: DIVULGAÇÃO / PRODUÇÃO.)

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