segunda-feira, 14 de dezembro de 2015


MARCO ZERO

 

 

 

(A RESPOSTA DE UM ARTISTA

AO TERRORISMO E À TRAGÉDIA.)

 

 

 

 


 

 

 

            É impressionante como um artista consegue, partindo de um fato que abalou, profundamente, a humanidade e deixou marcas indeléveis na vida de milhares e milhares de pessoas, acionar o seu potencial criativo, para escrever uma peça, uma obra de arte, com tanta originalidade e atingindo, em cheio, um público, ávido de boas histórias, e bem contadas.

 

            NEIL LABUTE é o nome desse artista, um importante e conceituado dramaturgo, roteirista e cineasta norte-americano, de 52 anos, tantas vezes premiado, no cinema e no TEATRO, já bastante conhecido dos amantes do bom TEATRO, no Brasil, onde já teve alguns de seus textos montados, como “Restos”, “Baque”, “Gorda”, Aquelas Mulheres”, “A Forma das Coisas” e Razões para ser bonita”. O ofício de dramaturgo precede o de cineasta.

 

 

 


Diante do caos.

 

 

            Seus personagens, via de regra, são cínicos e, até mesmo, cruéis, fiéis ao lado feio da natureza humana, segundo alguns estudiosos de seu trabalho, e o casal desta peça não é diferente de outros de sua galeria. Abordando esse lado torto do ser humano, LABUTE se arvora a viver o papel de uma espécie de juiz da humanidade. Quanto a esse aspecto, pode-se observar uma estreita semelhança entre os seus textos e os de David Mamet, outro gênio da dramaturgia norte-americana e ferrenho crítico da “humanidade”, em cuja fonte LABUTE parece ter bebido.

 

Não se trata de moralismo ou falso moralismo; é, apenas, uma questão de pintar o ser humano com todas as cores, das mais alegres e coloridas às mais fechadas e tristes, com realce para estas.   

 

            “MARCO ZERO” é um texto inédito, no Brasil, e, pela primeira vez, traduzido para a língua portuguesa, por GUSTAVO KLEIN, que, já há algum tempo, vem se dedicando a fazer excelentes traduções e versões de textos de TEATRO

 


Tárik Puggina e Letícia Isnard.

 

O título original da peça é “The Mercy Seat”, que pode apresentar várias traduções, todas elas dizendo muito pouco do que trata a trama. Talvez a mais literal seria “Confessionário” ou “Banco de Misericórdia”. Os dicionários também registram “Propiciatório”, querendo dizer "o lugar onde a propiciação é feita".

“Propiciação” significa “apaziguar ou aplacar a ira de alguém”. Pelos elementos estruturais do vocábulo “propiciatório”, entende-se que é “o lugar (-tório) propício a”. A quê?

A escolha livre do título, “MARCO ZERO” foi um verdadeiro “achado”, pois, no contexto, a expressão é metafórica e, por isso mesmo, ambígua, remetendo a algumas simbologias: é como ficou conhecido o local onde, antes, se localizavam, em New York, as Torres Gêmeas, simbolizando a superação americana. É o momento da vida pessoal no qual cada personagem se encontra; afinal, suas vidas estão em vias de tomar um novo rumo. Também é o “marco zero” da relação do casal, que é passada a limpo, às vistas de uma plateia.   

            É bom lembrar que a expressão “marco zero”, ao pé da letra, significa, com relação a uma cidade, o seu “centro geográfico, a partir do qual todas as medições de distância relativas a ela são estabelecidas”. Além disso, frequentemente, essa referência marca o local onde a cidade teve origem. Em suma, sempre há uma ligação com a “origem”, o “gênesis” de alguma coisa, o ponto inicial, onde tudo (?) começou, ou pode começar.

 

 

 

Marco Zero

Antes do 11 de setembro?

 

 


Depois do 11 de setembro.

 

 

 

 
SINOPSE:
 
               A peça, escrita em 2002, foi uma das primeiras respostas artísticas ao ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center (WTC), em 11 de setembro de 2001, dia em que o espetáculo se desenrola, tendo o trágico episódio como pano de fundo da trama. Na verdade, o diálogo entre o casal se dá na madrugada do dia 12 de setembro,  menos de 24h após a tragédia que abalou o mundo. Toda a ação se dá num apartamento, com vista para o famoso duplo arranha-céu. 
 
BEN HARCOURT (TÁRIK PUGGINA) trabalha próximo ao WTC, ou no próprio (ficou meio confuso, para mim – não captei bem - este detalhe, mas isso não faz a menor diferença), mas falta ao trabalho, no dia da tragédia, porque está mantendo relações sexuais, com sua amante, no apartamento desta, ABBY PRESCOTT (LETÍCIA ISNARD), que é também sua chefe e mora a uma pequena distância do WTC. Salvou-se, portanto, da morte.
 
Na televisão, imagens do dia caótico dominam todos os canais. O telefone de BEN não para de tocar, e ele não consegue se decidir se atende ou não à chamada de sua esposa. 
 
Sem tirar os olhos da tela da TV, vai articulando um plano sinistro de se passar por morto, na tragédia, e fugir, na companhia da amante, para uma nova vida, a partir de um “marco zero”.
 
Ele se vale dos efeitos do ataque terrorista, como uma oportunidade para começar uma nova vida com sua amante e para fazer sua esposa e filhos acreditarem que ele morreu, como um herói, nos ataques às Torres Gêmeas.
 
Em um momento de tragédia internacional, o mundo muda em uma simples manhã. Um homem e uma mulher exploram as opções, agora, disponíveis para eles, em uma existência diferente da que eles tinham vivido no dia anterior.
 
É possível ser oportunista em um momento de altruísmo universal? O mundo pede a misericórdia dos terroristas e ambos buscam a misericórdia e a compaixão um do outro.
 
                

 
 
 
Aparente calma.
 
 
               “Segundo o próprio autor, que pensou no texto, logo após a tragédia do 11 de setembro, quando teve seu voo, de Chicago para Nova York, cancelado e teve que fazer uma viagem de trem, que durou 21 horas, ele queria ‘examinar o marco zero de nossas vidas’, aquele buraco em nós, que tentamos tapar, com roupas da GAP, com colônia Ralph Lauren, com bolsas da Kate Spade. Por que estamos tão dispostos a correr cem quilômetros, para fugir de, simplesmente, dizer a alguém, ‘eu não sei se te amo mais’? Porque Nikes são baratos, correr é fácil, e honestidade é a moeda mais dura e fria do planeta.”. (Extraído do excelente “release” – um dos melhores que recebi até hoje -, enviado pela assessoria de imprensa – Daniella Cavalcanti).

 

“De acordo com TÁRIK PUGGINA, que descobriu esse texto, ao acaso, e cuja ironia crítica de LABUTE sobre os próprios americanos e sua cultura individualista e consumista, que tão bem poderia retratar a realidade brasileira, despertou seu interesse em fazer essa montagem aqui, NEIL retrata personagens amorais, que destorcem a realidade, para atingir seus próprios objetivos. Como ator, eu me questiono até que ponto somos capazes de ir, em busca de nossos objetivos de vida, de nossos sonhos? Até onde vale a pena trilhar? Quais os limites do personagem? E os meus? O que será que me faria mais feliz: um imenso sucesso profissional ou uma casa simples, à beira-mar, em algum lugar escondido desse grande caos 'des-civilizatório' que vivemos nas grandes cidades?. (Idem)

 

“‘MARCO ZERO’ traz-se a discussão sobre um egoísmo latente, mesmo em uma situação que deveria ser de altruísmo mundial. No meio de uma ameaça de guerra iminente, os personagens entram em uma discussão acalorada sobre seu relacionamento amoroso”. (Ibidem)

 

 

 

 Na história, um casal de amantes decide o que fazer com a vida a partir daquele momento

 Ben e Abby.

 

 

Em “MARCO ZERO”, NEIL LABUTE “questiona o ‘momento oportuno’, aquele quando, definitivamente, se pode decidir sobre um novo rumo para a vida. Diálogos entre os sexos, sobre quem tem o poder, quem controla a relação, o que significa a relação sexual e o amor. Os personagens questionam: se, neste momento, você pudesse dar um novo rumo à sua vida e qual seria ele? A peça leva os personagens ao limite desse questionamento. Sem meios-termos, os personagens se veem obrigados a revelar sua verdadeira face, provavelmente eclipsados pelo desastre que os rodeia!. (Ainda extraído do “release” já mencionado).

 

 



A tragédia pela TV.

 

 

Foto: Dalton Valerio/Divulgação

Tão perto...

 

 

“Acostumado a escrever peças que abordam assuntos amorais e inquietantes, cujo foco está no desespero, que, muitas vezes, está por trás de atos violentos e sádicos, que, todos os dias, enchem a primeira página dos jornais, o dramaturgo é motivado, em sua escrita, por um forte senso de moralidade. ‘O grande bem pode vir de mostrar uma grande maldade’”, afirma LABUTE(Idem)

 

Para a atriz LETÍCIA ISNARD, “MARCO ZERO” “é um ponto de mudança, de recomeço, o momento-chave em que a nossas escolhas definem todo o nosso futuro, quando o acaso gera oportunidades inesperadas, nos colocando diante de decisões absolutamente determinantes. ‘Sempre me interessei por esse segundo de suspensão antes da decisão que compromete toda a nossa vida. Quantas vidas temos em uma? Quantos futuros desperdiçamos a cada acaso que nos atravessa, a cada escolha que fazemos?’, afirma a atriz.

 




Coragem, Ben!

 

 

            Depois de tantas informações e comentários, interessantíssimos e completos, sobre o espetáculo, graças ao – repito – excelente “realease”, preparado pela produção/assessoria de imprensa do espetáculo, só me resta acrescentar comentários pessoais sobre o que me foi proporcionado ver na noite da última 3ª feira, 8 de dezembro (2015), no Teatro de Arena da Caixa Cultural Rio de Janeiro.

 

            Quanto ao texto, todos os elogios seriam insuficientes. Além da genial ideia, NEIL LABUTE escreve com uma fluidez (a tradução de GUSTAVO KLEIN contribui para isso), que é muito fácil, para o espectador, acompanhar todo o drama vivido pelo casal, aproveitando para tirar conclusões a respeito do caráter dos dois. Heróis ou vilões? Teriam eles o direito de levar adiante tão arrojado plano? O egoísmo não seria reprovável, naquela situação, mais ainda do que o é, em qualquer outra? O que se vê, em cena, é apenas a representação de uma DR (discutir a relação) ou não estaria em jogo o futuro de outras pessoas, totalmente inocentes, a esposa de BEN e suas filhas? Sem falar no universo de pessoas que cercam ABBY. Não seria um crime a concretização daquele plano, jamais perdoado? Como avaliar a falta de coragem de assumir uma situação tão absurda?

 

            Sou fã, incondicional, do talento de NEIL LABUTE. Se já o era, antes, reforcei, mais ainda, minha admiração por seu trabalho de dramaturgo.

 

 

 


Acomodação?

 

 

            O brilhante texto de LABUTE poderia não ter ganhado o destaque que merece, se a direção do espetáculo caísse no colo de um outro diretor. IVAN SUGAHARA, inteligente como é, percebeu que não deveria colocar, na peça, mais cores do que já o fizera LABUTE. Ou seja, parece que dirigiu o espetáculo apenas observando as possíveis rubricas do autor. Não inventou o que não estava escrito. Não foi além do que deveria ter ido e nos apresenta um espetáculo enxuto. Estou convencido de que o que é dito e representado em cena é o suficiente para passar, ao espectador, tudo o que seria do interesse do autor. Brilhante trabalho de direção!

 

 


Nossa vida é um/o caos!

 

 

            Gostei muito de ver a boa “performance” de TÁRIK PUGGINA e, mais ainda, a sensacional interpretação de LETÍCIA ISNARD, a quem a maternidade parece ter feito um grande bem. Como está excelente, na pele de ABBY!

 

TARIK também se apresenta com bastante correção, mantendo, durante todo o tempo de duração do espetáculo, a postura de subordinado, uma inferioridade que deve custar muito, ao personagem, por não poder (ou não ter coragem de) assumir o protagonismo numa decisão tão marcante em sua vida. Ele está numa posição de inferioridade, na relação e pela condição de subordinado à amante/chefe. Não pode dar as cartas, não pode conduzir a relação.

 

Por outro lado, a condição de superioridade, de chefe sobre o subordinado, talvez seja o que permite à LETÍCIA um destaque em cena. A personagem, consciente de que teria menos a perder do que BEN, com a execução do ardiloso plano, não pensa duas vezes, quando cobra dele a tão esperada e corajosa decisão, chegando ao requinte de humilhá-lo.

 

Aplausos para a dupla!

 

 

 

 O inidvidualismo humano é evidenciado no texto de Neil LaBute

Ben e Abby.

 

 

 

            E o que dizer do fantástico cenário, de AURORA DOS CAMPOS, com certeza, um dos pontos altos desta montagem?! “Disseram” a ela, certamente, qual seria o local em que se passaria a ação e a localização desse espaço. AURORA, com sua genialidade, projetou um cenário como ele deveria ser. Apenas a sala de estar da casa de uma pessoa de classe média? Não! Não apenas isso! A proximidade do apartamento de ABBY com o local do atentado terrorista, combinada ao momento conturbado da relação entre o casal, fez com que a cenógrafa nos mostrasse um apartamento completamente fora dos padrões esperados. Tudo revirado, empoeirado, em estado de degradação, revelando o momento íntimo daquele casal de amantes. O ambiente é o caos exterior, revelando o interior. E, ainda por cima, o espaço cênico não fica totalmente à mostra do espectador, visto que toda a área de encenação, representando a sala do apartamento, é cercada por uma tela de proteção? Proteção? Ou isolamento? Trabalho digno de prêmios!

 

 

 


 

 


            E o que falar da fantástica luz, de PAULO CÉSAR MEDEIROS, revelando o pouco que merece ser visto e ocultando o muito que deve ser ocultado, entremeada com oscilações de intensidade e movimento?! Perfeita!

 

Ultimamente, tenho-me dedicado bastante a analisar a luz de um espetáculo teatral. Sempre admirei tal elemento, porém, de um tempo para cá, passei a valorizá-lo mais, graças aos excelentes profissionais de que dispomos, como o PAULINHO, e por me dar conta de quão importante é, para uma montagem, a iluminação, podendo agregar muitos valores a um espetáculo ou colaborar para a sua ruína.

 

Há, ainda, para compor a ambientação da peça, uma boa direção musical, de RODRIGO LIMA, reproduzindo o caos sonoro daquele momento e ajudando a criar o clima necessário para a observação de tudo o que se vê em cena.

 


 


Panorâmica do cenário.

 

 

O figurino da peça, de FLÁVIO SOUZA, é o que menos ocupará a minha atenção, não por motivos negativos; ao contrário: é pelo excesso de simplicidade e adequação à proposta. Nada que se destaque, além da sobriedade das roupas, ajustadas a cada personagem.

 

Outro detalhe, que, também, tem merecido a minha atenção, ultimamente, com relação ao TEATRO, é a qualidade das artes, criadas para divulgar as peças, em “banners”, em programas ou em qualquer outro veículo de divulgação. Gosto muito da arte criada para este espetáculo, creio que da autoria de LUCIANO CIAN, responsável, segundo a ficha técnica, pelo projeto gráfico. A imagem dos dois atores caindo, como se fossem vítimas daquela tragédia, pode ser entendida como uma metáfora, relativa à vida de cada um, projetando-se ao chão, ao mesmo tempo que representa dois corpos (e mentes) soltos no espaço, indo ao chão, ou para um buraco embaixo dele. Trabalho inteligentíssimo!

 

             O final deste ano de 2015 ficará marcado, na história do TEATRO BRASILEIRO, como um ano de grandes estreias, ao apagar dos refletores e ao fechar do pano. “MARCO ZERO”, sem dúvida, é um dos grandes espetáculos que encerram a temporada 2015. Espero que continue em cartaz em 2016!

 

 

 

 A peça se passa no dia seguinte ao atentado do 11 de setembro

Antes da tragédia.

 

 

 


FICHA TÉCNICA:
 
Texto: Neil LaBute
Tradução: Gustavo Klein
Direção: Ivan Sugahara
Co-direção: Simone Beghinni
 
Elenco: Leticia Isnard e Tárik Puggina
 
Direção de produção: Aline Mohamad
Produção executiva: Amora Xavier 
Cenário: Aurora dos Campos
Figurino: Flávio Souza
Direção musical: Rodrigo Lima
Iluminação: Paulo César Medeiros
Fotos: Dalton Valério
Marketing Digital: Laura Limp
Projeto Gráfico: Luciano Cian
Administração Financeira: Amanda Cezarina
Realização: Nevaxca Produções
Idealização: Tárik Puggina
 













SERVIÇO:
 
Temporada: Até 20 de dezembro (2015)
Local: Caixa Cultural Rio de Janeiro – Teatro de Arena (Av. Almirante Barroso, 25 – Centro – Rio de Janeiro)
Telefone: (21) 3980-3815
Dias e Horários: De 3ª feira a domingo, às 19h. Em dezembro, sessão extra, nos dias 12 e 19 (sábado), às 17h.
Ingressos: R$20,00 (meia-entrada a quem tiver o direito ao benefício)
Gênero: Drama
Duração: 75 minutos
Capacidade: 170 lugares
Classificação: 16 anos
Bilheteria: a partir das 10h
 

 

 

 

 

(FOTOS: DALTON VALÉRIO.)

 

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