quarta-feira, 30 de dezembro de 2015


AUTO

DA COMPADECIDA

 

(OBRA-PRIMA

DE UM GRANDE MESTRE, DIGNAMENTE REPRESENTADA

EM GRANDE ESTILO!)

 

 


 

 

            Escrever sobre a obra, o texto teatral, “AUTO DA COMPADECIDA”, considerado por Bárbara Heliodora, segundo consta, “O” clássico da dramaturgia brasileira, opinião da qual compartilho, é um desafio para qualquer crítico ou estudioso de TEATRO. Por mais que se deseje ser original, é impossível escrever algo diferente de tudo o que já foi dito sobre a obra máxima de um dos mais ilustres e inteligentes pensadores brasileiros de todos os tempos: o gênio, o mestre ARIANO SUASSUNA.

 

O que se pode fazer, e, sempre, será diferente, é uma análise que se aplique à apreciação técnica das dezenas (Ou seriam centenas, milhares...?) de montagens, ao longo de quase 60 anos de exibições, desde que estreou, em Recife, em 1956, e 60 anos exatos de quando foi escrito o texto, um ano antes, em 1955.

 

            É difícil encontrar um(a) ator/atriz que não tenha feito, nem que seja no “teatrinho da escola”, essa peça. Eu mesmo, antes de me tornar profissional, tive a honra, o prazer e o privilégio de interpretar os dois protagonistas, JOÃO GRILO e CHICÓ, em montagens distintas, é claro.

 

            Para quem ainda não sabe, um “auto” é um gênero dramático, geralmente com elementos cômicos e moralizantes; ou seja, é aquilo que se pode chamar de uma comédia dramática com ensinamentos e lições.

 

 


Gláucia Rodrigues e Edmundo Lippi.

 

 

            A montagem que motivou esta crítica é a melhor a que já assisti, em toda a minha vida de “rato de TEATRO”.

 

E não foram poucas. Esta é de responsabilidade, produção, da CIA. LIMITE 151 e estreou em abril de 2012, no Rio de Janeiro. Assisti a ela no Teatro Fashion Mall. De lá para cá, o elenco sofreu algumas modificações, mantendo, sempre, a mesma qualidade. O espetáculo, sucesso de crítica e de público, já viajou pelo Brasil e passou por vários outros teatros cariocas, como o Teatro do Leblon e o Teatro Maison de France, onde iniciou a temporada 2015.

 

Com muita alegria pude rever a peça no último dia, 19 de dezembro de 2015, da mais recente temporada, no Teatro Eva Herz, dentro da Livraria Cultura, no Centro do Rio de Janeiro. Digo “a mais recente temporada”, porque tenho certeza de que haverá outras mais, pois esta obra é atemporal e imortal e, como já disse, a montagem aqui analisada é digna de todos os elogios e merece, ainda, uma longa carreira.

 

            Trata-se de um espetáculo sempre atual e didático, motivo pelo qual deveria ser apresentado a todos os jovens estudantes brasileiros, quase que como uma atividade obrigatória nos currículos escolares. Conhecer ARIANO SUASSUNA e sua obra-prima é dever de todo cidadão brasileiro. Vê-la representada pelos atores da CIA. LIMITE 151 é melhor ainda.

 

 


Tentando convencer o Padre.

 

 

 

 
SINOPSE:
 
A peça é narrada pelo PALHAÇO (nesta versão, são dois: ROBSON SANTOS e KAKAU BERREDO) e a história se inicia quando CHICÓ (RAFAEL CANEDO) e JOÃO GRILO (GLÁUCIA RODRIGUES) tentam convencer PADRE JOÃO (EDMUNDO LIPPI) a benzer o cachorro da patroa de JOÃO, a MULHER DO PADEIRO (JANAÍNA PRADO).
 
Como o PADRE se nega a fazê-lo e o cachorro morre, O PADEIRO (BRUNO GANEM) e sua esposa exigem que o PADRE faça o enterro do animal. JOÃO GRILO diz ao PADRE que o cachorro tinha um testamento e que lhe deixara dez contos de réis e três para o sacristão, caso fizessem o enterro em latim.
 
Quando o BISPO (ARNALDO MARQUES), em visita à paróquia local, descobre o “descalabro”, JOÃO GRILO, usando de um eufemismo, inventa que, na verdade, seis contos iriam para a “arquidiocese” e apenas quatro para a “paróquia”, a fim de que o bispo não arrumasse problemas. 
 
Depois de toda a confusão sobre o enterro do cachorro, JOÃO GRILO, contando com a cumplicidade de CHICÓ, articula um plano, para, também, tirarem vantagem da situação e se vingar do casal de patrões de GRILO. Manda CHICÓ enfiar moedas no “fiofó” de um gato e esconder uma bexiga, contendo sangue, por baixo da camisa, para o caso de o primeiro plano falhar. 
 
Como a MULHER DO PADEIRO havia perdido seu animal de estimação e também era interesseira, JOÃO GRILO resolveu vender o gato que “descomia” (“comia, ao contrário”) dinheiro à mulher, o tal gato no qual CHICÓ havia introduzido as moedas.
 
Quando o PADEIRO descobre o logro, volta à igreja, para brigar com JOÃO. Nesse momento, estão reunidos todos, na igreja, pois JOÃO estava entregando o dinheiro prometido ao PADRE, ao BISPO e ao SACRISTÃO (DIEGO BRAGA). 
 
Ouvem-se tiros e uma gritaria do lado de fora. Era o cangaceiro SEVERINO DE ARACAJU (MÁRCIO RICCIARDI), invadindo o povoado, acompanhado de um CANGACEIRO (LUIZ MACHADO). Ele entra na igreja, rouba o dinheiro e mata o BISPO, o PADRE, o SACRISTÃO, o PADEIRO e a MULHER DO PADEIRO.
 
Na hora de matar JOÃO GRILO, este lhe dá, de presente, uma gaita “abençoada” pelo Padrinho Padre Cícero, a qual teria o poder de ressuscitar as pessoas. 
 
Para o bandido acreditar nessa história, JOÃO dá uma facada em CHICÓ e estoura a bexiga com sangue. O “esfaqueado” cai e JOÃO GRILO toca a gaita, ao som da qual o amigo se levanta, dançando, no ritmo da música. 
 
SEVERINO, desejoso de ver o “santo padim”, ordena, então, a seu capanga, que lhe dê um tiro, para que ele possa ir encontrar Padre Cícero e conversar com ele, e, em seguida, que tocasse a gaita “santa”, para, então, voltar.
 
CANGACEIRO (LUIZ MACHADO) obedece, atira, mas, quando toca a gaita, nada acontece. CHICÓ e JOÃO GRILO se atracam com ele e este leva uma facada. Quando os dois estão fugindo com o dinheiro que pegam do defunto SEVERINO, o capanga, que não estava morto, reage e atira em JOÃO GRILO, matando-o e, também, morrendo em seguida. 
 
No céu, todos se encontram para o juízo final. O diabo, ENCOURADO (KACAU BERREDO) e Jesus, MANUEL (ROBSON SANTOS) apresentam as acusações e defesas.
 
JOÃO, então, chama por Nossa Senhora, a COMPADECIDA (JACQUELINE BRANDÃO), para interceder por eles. E é o que ela faz.
 
O PADRE, o BISPO, o SACRISTÃO, o PADEIRO e sua MULHER são mandados para o purgatório. SEVERINO e o seu capanga são absolvidos e enviados ao paraíso, pois foram considerados “vitimas”. JOÃO GRILO, simplesmente, retorna a seu corpo, “revive”. 
 
Quando “volta da morte”, vê CHICÓ, que se preparava para enterrar seu corpo. Levanta e dá um susto no amigo. Depois de conseguir fazer CHICÓ acreditar que está vivo, os dois se animam e fazem planos para o dinheiro do enterro, até que CHICÓ se lembra da promessa que fez a Nossa Senhora, que doaria todo dinheiro a ela, caso JOÃO sobrevivesse, o que acaba acontecendo.
 
Após uma breve discussão, com tentativas de “negociações”, ambos doam o dinheiro à Igreja.
 
JOÃO GRILO: “Ah, promessa desgraçada! Ah, promessa sem jeito!”
 

 

 

 


A falsa coragem de João Grilo

e a declarada covardia de Chicó.

 

 

            No original, o texto é escrito em três atos e um prólogo, mas, em todas as montagens a que tive a oportunidade de assistir, optou-se por um ato único, o que eu também faria, se ousasse dirigir o espetáculo. Também foram suprimidos, nesta encenação, dois personagens, o Demônio (secretário do ENCOURADO) e o Frade, que acompanha o BISPO, o que, em nada, compromete a peça.

 

A grande importância deste texto é que, nele, encontramos, além de críticas abertas, as mais diversas, principalmente ao ser humano e à Igreja Católica, como instituição, que prega o que não cumpre, elementos puros da cultura brasileira, principalmente a nordestina, baseado que é em três romances populares daquela região, todos anônimos, “O Enterro do Cachorro”, A História do Cavalo que Defecava Dinheiro” e O Castigo da Soberba”, com bastantes traços da linguagem oral regional, tipicamente nordestina, com muitos regionalismos e erros gramaticais, refletindo a classe social dos personagens locais, em contraste com os de maior ascensão social e cultural, como o PADRE e o BISPO, por exemplo, e os “fabulosos” (MANUEL, COMPADECIDA e ENCOURADO).

 

            De tão representativo do melhor TEATRO BRASILEIRO, o texto já foi adaptado para o cinema e para a TV, marcando um sucesso retumbante.

 

 


A hora do aperto.

 

 

De acordo com o “release”, enviado pela CIA. LIMITE 151 (EDMUNDO LIPPI), “A história serve como pano de fundo para mostrar problemas sérios encontrados no nordeste brasileiro, como o coronelismo, a pobreza extrema em que algumas pessoas se encontram e várias figuras populares na região, como o cangaceiro”.

 

Ainda diz o “release”: “O espetáculo, dirigido por SIDNEI CRUZ, potencializa as linhas matriciais contidas na dramaturgia de ARIANO SUASSUNA. O espaço cênico lembra um picadeiro de teatro de circo, e o jogo de cena dos atores é inspirado nos brincantes dos folguedos populares. As embrulhadas de JOÃO GRILO, sempre acompanhado pelo fiel escudeiro CHICÓ, o levam ao céu, para enfrentar o juízo final, onde o diabo faz de tudo para pegá-lo e ele faz de tudo para escapar. (...) As peripécias são narradas e pontuadas por palhaços e caretas, que aparecem em diversas situações, em forma de coro ou jogral. A comicidade popular e irreverente dos autos populares nordestinos e do teatro de mamulengos são as referências para o ritmo, a movimentação e os desenhos coreográficos da encenação. Pequenas arquibancadas móveis, cortinas, figurinos coloridos e rústicos dão o tom carnavalizado de comicidade bruta de feira e praça pública”.

 

Nesta montagem, dois nomes merecem destaque: GLÁUCIA RODRIGUES e RAFAEL CANEDO. Não por representarem os protagonistas da história, mas por outros motivos.

 

 



Gláucia Rodrigues (João Grilo) e Rafael Canedo (Chicó).

 

 


GLÁUCIA, pelo inusitado de ser a primeira atriz, que eu tenha conhecimento, a representar JOÃO GRILO, personagem masculino. E o faz brilhantemente, não se preocupando em travestir-se de homem nem falar como tal. Simplesmente, apresenta-se como um “amarelo safado”, nada mais que um ser humano, “assexuado”. Como diz o diretor, SIDNEI CRUZ, “esperto, malandro, sem caráter, palhaço, pobre, astuto e criativo”.

 

Considero uma excelente ideia da direção, confiar a GLÁUCIA RODRIGUES o papel, por sua competência, tantas vezes demonstrada, nos 25 anos de vida da CIA. LIMITE 151, da qual é uma das fundadoras, ao lado de EDMUNDO LIPPI e WAGNER CAMPOS. Ela domina o “timing” da comédia, sabe fazer humor, coloca pequenos “cacos”, discretos e na hora exata, sem excessos, e arranca deliciosas gargalhadas da plateia.

 

Quanto a RAFAEL CANEDO, o ator só faz provar, a cada trabalho, seu amadurecimento profissional e que veio para ocupar o seu espaço. Este era o único trabalho dele que eu não havia visto e foi mais um que me agradou sobremaneira. Na primeira temporada, o papel de CHICÓ, que já foi feito por outros atores, durante o tempo em que a peça vem sendo encenada pela CIA. LIMITE 151, era feito por MARCO PIGOSSI, que também é um excelente ator e, para a minha surpresa, pois não o tinha visto, ainda, no palco, superou todas as minhas expectativas, num excelente desempenho. Isso valoriza, mais ainda, o ótimo trabalho de RAFAEL CANEDO, pois substituir, num elenco, alguém que está bem no papel exige, no mínimo, uma “performance” no mesmo nível. Foi exatamente o que vi. Se gostei muito da atuação de PIGOSSI, não foi menor o meu encanto pelo trabalho de RAFAEL. O jovem ator se sai bem no drama e na comédia e, nesta, consegue explorar bastante a sua máscara facial e uma ótima expressão corporal, compondo um CHICÓ ímpar.

 


 


Chicó, o mentiroso covarde,

e João Grilo, o esperto trapalhão.

 

 


O elenco é excelente, todos nivelados por cima. Cada um consegue dar, ao seu personagem, a linha descrita e criada nas rubricas do autor:

 

JOÃO GRILO (GLÁUCIA RODRIGUES) é um homem pobre e franzino, o verdadeiro protagonista da história, que vive arranjando confusões. Trabalha para o PADEIRO e é o melhor amigo de CHICÓ. Sente-se explorado pelos patrões e alimenta o desejo de se vingar da dupla. É astucioso e de uma inteligência invejável, que usa para sobreviver. É esperto, quase um anti-herói, um “macunaíma” do sertão nordestino, um “herói sem caráter”, tirando a preguiça do personagem criado por Mário de Andrade. Para as suas “armações”, tem, como justificativa, sua pobreza absoluta. A sua “má sorte na vida”, para ele, o absolve de suas trapaças.

 




















A gaitinha “santa”.

 









CHICÓ (RAFAEL CANEDO) é um homem medroso, chegando a ser covarde, que gosta de contar “causos”, deslavadas mentiras, histórias fantasiosas, sobre as quais, quando é solicitado a explicar os absurdos narrados, responde sempre: “Não sei; só sei que foi assim”. Ninguém é capaz de não gargalhar com a história do “cavalo bento”, que lhe fora venndido por uma velha, no qual ele cavalgou, da Ribeira do Taperoá, na Paraíba, até Propriá, em Sergipe, inclusive cruzando o Rio São Francisco, “sem perceber”. Ou com o episódio da pesca do pirarucu, em que “o pescador é que foi pescado pelo peixe”, o qual nadou três dias, rio acima, arrastando o pescador com as mãos amarradas. Sem falar da história da assombração do cachorro, que mergulhou no rio, para resgatar uma moeda perdida por CHICÓ. Fiel escudeiro de JOÃO GRILO, também trabalha para o PADEIRO. Se houvesse a classificação, poderia ser considerado o “subprotagonista” da trama.

 





Rafel Canedo e Edmundo Lippi.

 



O PADEIRO (BRUNO GANEM) é um homem avarento, dono da padaria de Taperoá, casado com uma mulher infiel. Explora seus funcionários, embora “muito católico”, sendo até Presidente da Irmandade das Almas e fornecedor de víveres para a paróquia (pães e uma vaca, pada dar leite), além de financiador das obras da pequena igreja local. É um típico representante da burguesia, interessada apenas em acumular capital, à custa da exploração alheia, e tem acordos escusos com as autoridades da Igreja. Vive seguindo as opiniões da mulher.
 

A MULHER DO PADEIRO (JANAÍNA PRADO) é uma mulher infiel, devassa, adúltera, mas que se diz “santa”. Também vive maltratando os funcionários, é muito avarenta e tem uma fascinação por animais de estimação. Tem amplo somínio sobre o marido.

 




Gláucia Rodrigues, Bruno Ganem e Janaína Prado.

 



PADRE JOÃO (EDMUNDO LIPPI), o pároco de Taperoá, é racista, avarento e hipócrita. Age conforme os interesses dos mais poderosos e os seus próprios, além de usar de sua autoridade religiosa para obter lucro material, visando à sua aposentadoria. Ao saber do “testamento do cachorro”, muda o seu discurso anterior: “Que cachorro inteligente! Que sentimento nobre!”.



O BISPO (ARNALDO MARQUES) apresenta os mesmos defeitos do PADRE, com o agravante de sua graduação na hierarquia da Igreja Católica. Assim como o PADRE, utiliza-se do cargo para obter lucro. É um personagem medíocre, profundamente vaidoso, arrogante, presunçoso, um nefasto representante de uma Igreja corrompida. Sua hipocrisia também o faz mudar de discurso, ao tomar conhecimento de que era beneficiário no “testamento do cachorro”: Que animal interessante! Que sentimento nobre!” .



O SACRISTÃO da paróquia (DIEGO BRAGA), aparentemente um homem de bem, desconfiado e conservador, também cede à chantagem de JOÃO GRILO, na tentativa de enterrar o cachorro, quando descobre que ficaria com três contos de réis, do “testamento”. Interesseiro e subserviente ao extremo. Pernóstico e pedante, é mais um péssimo representante da Igreja Católica.



ANTÔNIO MORAIS (LUIZ MACHADO) é o representante do “coronelismo”, um “major” ignorante e autoritário, que usa seu poder para amedrontar os mais pobres. É um típico senhor de terras, dono de minas, truculento e poderoso, que se impõe pelo medo, pelo dinheiro e pela força. Compra o que, e a quem, quiser.




SEVERINO DE ARACAJU (MÁRCIO RICCIARDI), assim como Lampião, o “rei do cangaço”, é um cangaceiro, que encontrou, no crime, uma forma de sobrevivência, já que seus pais foram mortos pela polícia. Não precisasria nem dizer que se trata de um homem rude, ignorante e extremamente violento, que se acha no direito de roubar, para sobreviver e se vingar, de tudo e de todos.















 


O padeiro e a mulher tentam se livrar das garras do Encourado.

 










O CANGACEIRO (LUIZ MACHADO) é um dos capangas de SEVERINO. Vive fazendo de tudo para agradar seu chefe, a quem idolatra. Embora seu papel seja, notadamente, o de um coadjuvante, cuja função seria apenas puxar o gatilho e executar outros personagens, não devemos nos esquecer de que foi ele quem matou JOÃO GRILO. Sem este defunto, não haveria julgamento.



O PALHAÇO (ROBSON SANTOS e KAKAU BERREDO), como a peça é escrita para ser encenada em forma de teatro de rua, atua como um apresentador, entrando e saindo da trama e conversando com o público. É o anunciador da peça e, também, o grande comentador das situações. É como se fosse o próprio autor do texto falando. Não seria inconveniente nem exagerado dizer que pode ser considerado um digno representante brechtiano, a estimular o “distanciamento”, com a plateia, entre a realidade e a ficção.
















O ENCOURADO (KAKAU BERREDO) é a própria encarnação do Diabo. Vive tentando imitar MANUEL, por isso exige reverências pelos lugares onde passa. É o justo promotor do julgamento, mas, diferentemente de MANUEL e da COMPADECIDA, não possui misericórdia. Segundo uma crença nordestina, o diabo utiliza roupas de couro e veste-se como um boiadeiro. Funciona como uma espécie de promotor, antagonista direto de JOÃO GRILO. Como este, também é demasiadamente astuto, mas acaba sendo derrotado pelo herói.















 


Kakau Berredo, o Encourado.

 







MANUEL (ROBSON SANTOS), nome adaptado (Emanuel), é o próprio Jesus Cristo e, também, o juiz do povo, julgando, sempre, com sabedoria e imparcialidade, com o dom da misericórdia. É um personagem que simboliza o bem. No texto de ARIANO SUASSUNA, é representado por um ator negro, a fim de que isso produza um efeito de estranhamento no público, como a surpresa que causa nos personagens.












A COMPADECIDA (JACQUELINE BRANDÃO) é a própria Nossa Senhora. Bondosa e cândida, ela se compadece (de) e intercede por todos, no julgamento. É a heroína da peça, funcionando como uma advogada de JOÃO GRILO e de seus “amigos de infortúnio”, derrotando, com seus argumentos, cheios de misericórdia e não muita consistência, os planos do ENCOURADO, de levar todos para o inferno.

 












João Grilo, alertando o Major Antônio Moraes (Luiz Machado) acerca das “maluquices” do Padre.


 

A linha de direção adotada por SIDNEI CRUZ foi extremamente acertada. Esta peça não admite que o diretor queira “aparecer” mais que os outros elementos da montagem. Numa prova de inteligência e competência profissional, o diretor procurou seguir as orientações e sugestões do autor na peça, contidas nas rubricas, e apostou no talento de seu elenco. E deu muito certo. A encenação prima pela simplicidade, dentro do espírito em que foi concebido e realizado o texto, não abrindo mão do bom gosto e da criatividade, também dosada, para não fugir à proposta e à expectativa do autor.

 




A contenda entre o bem (Manuel – Robson Santos) e o mal (Encourado – Kakau Berredo).

 

 

            Com relação ao ótimo cenário, de JOSÉ DIAS, transcrevo uma das falas do PALHAÇO, no prólogo:

 

            PALHAÇO: “(...) O distinto público imagine à sua direita uma igreja, da qual o centro do palco será o pátio. A saída para a rua é à sua esquerda.

 

Também de acordo com as sugestões do autor, o cenário, segue a brilhante ideia do primeiro “ensaiador” (como dizia ARIANO) da peça, Clênio Wanderley, “como se fora um picadeiro de circo, com uma entrada de igreja à direita, uma pequena balaustrada ao fundo, uma vez que o centro do palco representa um desses pátios comuns nas igrejas das vilas do interior. A saída para a cidade é à esquerda e pode ser feita através de um arco. Nesse caso, seria conveniente que a igreja, na cena do julgamento, passasse a ser entrada do céu e do purgatório. O trono de MANUEL, ou seja, Nosso Senhor, Jesus Cristo, poderia ser colocado na balaustrada, erguida sobre um praticável servido por escadarias.”

 

 

 


A Mãe da Misericórdia intercede pelos seus filhos.

 

 

Não devemos nos esquecer de que SUASSUNA deixava sempre bem claro que seu teatro é mais aproximado dos espetáculos de circo e da tradição popular do que do teatro moderno. Assim, JOSÉ DIAS faz uso de três pequenas arquibancadas, uma central e duas laterais e a rotunda é ornamentada por belíssimos estandartes, daqueles utilizados em folguedos populares, como bumba-meu-boi, folia de reis, maracatu... Para a cena do julgamento, é utilizada uma cadeira simples, de espaldar alto, como trono.

 

Para a cena final, do julgamento, os elementos de cena são remanejados ou retirados, alguns, mudando, o cenário, para o céu, com o trono do Juiz, tudo operado pelos próprios atores.

 

            Os figurinos são assinados por uma pessoa que considero mais que um criador de figurinos, mas, antes, um grande artista plástico: SAMUEL ABRANTES. Os figurinos reúnem beleza, simplicidade e criatividade e geram um agradável deleite aos olhos, com detalhes muito interessantes.

 


 


Visão geral do cenário e dos figurinos.

 

 

            Funciona muito bem a iluminação, de AURÉLIO DE SIMONI, o mesmo podendo ser aplicado à direção musical, de WAGNER CAMPOS.

 

             

 


João Grilo tenta salvar a sua alma.

 

 

 

 

 
FICHA TÉCNICA:
 
Texto: Ariano Suassuna
Direção: Sidnei Cruz
 
ELENCO:
Gláucia Rodrigues (JOÃO GRILO)
Rafael Canedo (CHICÓ)
Edmundo Lippi (PADRE JOÃO)
Jacqueline Brandão (COMPADECIDA)
Janaína Prado (MULHER DO PADEIRO)
Kakau Berredo (ENCOURADO / PALHAÇO)
Robson Santos (MANUEL / PALHAÇO)
Bruno Ganem (PADEIRO)
Arnaldo Marques (BISPO)
Márcio Ricciardi (SEVERINO DE ARACAJU)
Diego Braga (SACRISTÃO)
Luiz Machado (CORONEL ANTÔNIO MORAES / CANGACEIRO)
André Frazzi (“stand-in”).
 
Cenário: José Dias
Figurinos: Samuel Abrantes
Iluminação: Aurélio De Simoni
Direção Musical: Wagner Campos
Programação Visual: João Guedes
Fotos: Guga Melgar
Produção Executiva: Valéria Meirelles
Realização – Cia. Limite 151 e Marco Pigossi
 

 

 

 

Para encerrar estes comentários, deixo-lhes duas falas interessantíssimas do PALHAÇO: a primeira eivada de ironia e de um tom professoral, moralizante; e a segunda, esperando o reconhecimento do público, pelo trabalho apresentado:

 

PALHAÇO: (...) Espero que todos os presentes aproveitem os ensinamentos desta peça e reformem suas vidas, se bem que eu tenha certeza de que todos os que estão aqui são uns verdadeiros santos, praticantes da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem maldade, sem mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros, generosos, sem avareza, ótimos patrões, excelentes empregados, sóbrios, castos e pacientes. E basta, se bem que seja pouco.

 

           PALHAÇO: A história da COMPADECIDA termina aqui. Para encerrá-la, nada melhor do que o verso com que acaba um dos romances populares em que ela se baseou: “Meu verso acabou-se agora, / Minha história verdadeira. / Toda vez que eu canto ele, / Vêm dez mil-réis pra a algibeira. / Hoje estou dando por cinco, / Talvez não ache quem queira.” E, se não há quem queira pagar, peço, pelo menos, uma recompensa, que não custa nada e é sempre eficiente: seu aplauso.

 




Auto-da-compadecida            

(Capa do livro, edição especial, comemorativa dos 50 anos de publicação da obra, e o autógrafo que tive a honra de ganhar, do mestre ARIANO, após uns quinze minutinhos de prosa, com ele e sua digníssima esposa, em evento organizado por Inez Viana.)

 

 

(FOTOS: GUGA MELGAR.)

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