sexta-feira, 9 de outubro de 2015


ELECTRA

(DILEMA NA VINGANÇA
(ou)
MODERNIDADE NA TRAGÉDIA.)






            Apesar da importância que representam, para a cultura moderna, ocidental e oriental, as clássicas tragédias gregas e os que as escreveram, devemos admitir que, em função da dinâmica dos dias de hoje, com o domínio da tecnologia e das mais variadas mídias, com a diversidade de apelos e de oferta de fontes de lazer, nem sempre culturais e edificantes, é bastante difícil, que SÓFOCLES, Ésquilo, Aristófanes, Eurípedes ou “Édipo Rei”, “ELECTRA”, “Medeia” ou “Antígona”, por exemplo, sejam motivos suficientes para tirar alguém de casa e fazê-lo se deslocar a um teatro, a não ser os aficionados por esta arte maior, como eu. Mas um clássico nunca deixará de ser um CLÁSSICO!

            Digo-lhes, porém, que quem confiar em mim e se dispuser a ir à Arena do Espaço SESC (Copacabana), até o dia 25 de outubro, a fim de assistir a “ELECTRA”, de SÓFOCLES, na leitura de JOÃO FONSECA, sairá de lá com a certeza de ter assistido a um belíssimo espetáculo, clássico e moderno, ao mesmo tempo, no qual o espírito do texto clássico é mantido, a essência da trágica história não se perdeu, tudo contrabalançado com as pitadas de contemporaneidades, adicionadas pelo diretor do espetáculo.

            Certamente, representar a protagonista deste clássico da tragédia grega, e da dramaturgia universal, é um dos sonhos de consumo de qualquer boa atriz, embora nem todas sejam talhadas para fazê-lo.  Vários nomes já tiveram a oportunidade de representar a personagem, mas poucas deixaram boas e eternas lembranças.  Vi algumas, porém, infelizmente, a não ser em curtas cenas em vídeo, não consegui, por causa da pouca idade, à época, ver aquela que, sem dúvida alguma, foi a grande ELECTRA brasileira, segundo várias vozes, a inesquecível e saudosa GLAUCE ROCHA, dirigida por Antônio Abujamra, há 50 anos (1965). Aliás, a atual montagem é uma homenagem aos dois grandes ícones do TEATRO BRASILEIRO e também serve para comemorar os 20 anos de uma profícua parceria, JOÃO FONSECA/RAFAELA AMADO, iniciada com a fundação da Companhia “Os Fodidos Privilegiados”, dirigida por Abujamra e, depois, por JOÃO FONSECA. O texto da montagem atual é uma adaptação do próprio Abu.

literatura dramática grega apresenta mais de uma versão da história de ELECTRA, sendo as mais famosas as de Eurípides e a de SÓFOCLES, a que foi utilizada nesta montagem.



Camila e Rafaela (Amado).



SINOPSE:

A peça conta a história da vingança de ELECTRA (RAFAELA AMADO) pela morte de seu pai, Agamêmnon, assassinado por CLITEMNESTRA (CAMILLA AMADO), mulher dele, e o amante desta, EGISTO (ALEXANDRE MOFATI).

Ansiosa por vingar a morte do pai, a furiosa ELECTRA leva seu irmão, ORESTES (RICARDO TOZZI) a matar a própria mãe. Pouco antes de expirar, a rainha confessou que sempre amara a filha, a qual não se deixa convencer disso, mas não podia assumir seus sentimentos, pois tinha de protegê-la das intenções assassinas do amante.


Nesta versão, a rainha se une a EGISTO, sobrinho de seu marido, porque não suportava a ideia de ter perdido a filha, Ifigênia, sacrificada a Artemis, por conta de uma atitude desrespeitosa do rei, que se gabara de caçar um cervo, reservado à deusa da caça e da lua. Desesperada, ela trai Agamêmnon, irmão de Menelau, e, cúmplice do amante, mata-o, após seu retorno da Guerra de Troia.


ELECTRA é preservada pela mãe, mas, depois de salvar o irmão, deixando-o nas mãos de um antigo mestre PRECEPTOR (FRANCISCO CUOCO), bem distante de Micenas, é tratada, no castelo, como uma mera escrava. Amargurada pela morte do pai, ela espera o dia da vingança, que chegaria quando o filho do rei voltasse para a cidade natal.

Apesar de tantas dificuldades e sofrimentos, ELECTRA nunca deixou de acreditar em que a justiça se faria um dia, rogando, diariamente, aos deuses, punições para os assassinos de Agamêmnon, apesar dos insistentes pedidos da outra irmã, CRISÓTEMIS (PAULA SANDRONI), para que ela abandonasse o desejo de vingança, visto que isso poderia causar a ira dos deuses.


Afastado de casa, durante anos, ORESTES, volta, acompanhado de seu PRECEPTOR, em busca da irmã, a quem encontra vivendo como escrava, e se une a ela, para vingar o pai.

O PRECEPTOR, a pedido de ORESTES, como parte de um embuste, traçado por este, apresenta-se a ELECTRA e CLITEMNESTRA, como o arauto da notícia da morte de ORESTES.  Conta-lhes, com detalhes, a suposta trágica morte do rapaz, numa disputa esportiva. 

ELECTRA, sabedora da notícia da morte do irmão, sua única esperança para pôr em prática seu plano de revanche, sentiu-se perdida, vendo seu desejo desfazer-se. A rainha, por sua vez, ficou muito feliz com a notícia, uma vez que o filho era o único que representava o perigo de afastá-la, e ao marido, do trono.  Convida, então, o PRECEPTOR a entrar no palácio, com o objetivo de festejar tão auspiciosa notícia.

ELECTRA, desesperada, insta a irmã a servir-lhe de cúmplice, na sua vingança, mas esta não aceita o convite. ORESTES, conforme combinara com o PRECEPTOR, aparece, logo depois, diante de ELECTRA, sem se fazer reconhecido e sem reconhecê-la, e apresenta-se como o detentor dos restos mortais dele mesmo, trazendo as "cinzas" numa pequena urna. Ela se desespera mais ainda, porém o rapaz, diante de tal transtorno, reconhece a irmã e conta-lhe sobre o plano. Ela só acredita ser ele mesmo, quando este lhe mostra o anel do pai, colocado num cordão, trazido ao pescoço, que a irmã lhe dera, quando dele se separou. 

ELECTRA fica muito feliz ao vê-lo. Depois de algum tempo, o PRECEPTOR volta e avisa a ORESTES que sua mãe estava sozinha no palácio. Então, o rapaz entra lá e mata a mãe. Em seguida, EGISTO, que estava viajando, volta ao palácio e fica radiante, ao saber que ORESTES, o seu grande rival, estaria morto, tendo-lhe sido apresentado, como o cadáver do rapaz, na verdade, o de sua mulher, CLITEMNESTRA, coberto por um manto. Ele pede que a cobertura seja retirada, para admirar o seu “troféu”, e teve a grande surpresa.

Vendo-se perdido, EGISTO não esboçou muita reação, quando ELECTRA convence ORESTES a matar o traidor também, que é o que acontece. 

Assim, ELECTRA teve a sua vingança consumada e ela, o irmão e a irmã voltam a viver, em harmonia, no palácio.






Electra e Orestes, vitoriosos, diante do cadáver de Clitemnestra.
Na esfera da psicanálise, a expressão “complexo de Electra” está relacionada ao desejo que a filha nutre pelo próprio pai, contrapondo-se ao chamado “complexo de Édipo”, que seria o mesmo, tomando-se o filho, em relação à mãe.

Extraído do “release”, enviado pela assessoria de imprensa (JSPontes Comunicação): ‘ELECTRA’, uma das tragédias clássicas mais montadas no século XX, mostra o ser humano frente a um dilema insolúvel - a honra reclama a vingança do crime de sangue cometido contra o pai, e essa vingança aponta para o matricídio, já que a mãe é cúmplice desse crime. Como agir? Que forças impulsionarão, decisivamente, a ação? O dilema se impõe, revolvendo valores e emoções universais, que ultrapassaram gerações, ao longo dos milênios, e chegaram até aqui, vivos, no século vinte e um.”
            A direção de JOÃO FONSECA é excelente, mais uma, no currículo do encenador. JOÃO ousou montar uma tragédia grega, cuja escrita está estimada entre os anos 410 e 420 a.C., aproximando-a, ao máximo, de um público moderno, sem ultrajar a memória das tradições culturais gregas e daqueles que a construíram.
Optou pela simplicidade, compactando as ações, privilegiando o que deveria ser pontual, para que a história fosse contada com clareza e objetividade, mesmo utilizando um português mais castiço, com tratamento na 2ª pessoa do plural, e, até mesmo, mantendo jargões da tragédia grega, como o universalmente consagrado, em qualquer língua, “Ai de mim!”, sem o tornar “cafona”, “demodê”.
A geografia da Arena, do Espaço SESC, facilitou, ou inspirou, em muito, o diretor. A peça merece novas temporadas, em outros espaços, preferencialmente arenas, entretanto tende a perder um pouco o brilho atual (ou não), já que foi concebida, especialmente, em função de um determinado espaço físico, como acontecia nos anfiteatros gregos. Mas, certamente, o talento de JOÃO saberá compensar esse detalhe com outros coelhos, tirados de sua mágica cartola.
No plano espacial, todas as cenas se passam num único lugar físico, que ora pode ser a porta de entrada do palácio, ora outros, sem exigir nenhum esforço do público, para aceitar essas mudanças físicas.
Segundo o diretor, “o texto original é uma disputa de poder. Para SÓFOCLES, o que importa é que ninguém pode usurpar um poder que não é seu ou abusar disso, para acabar com a liberdade de seus opositores”.
Podemos dizer, então, que o texto é bastante atual.  E como!!! 
“'ELECTRA' é uma peça a favor dessa liberdade e contra a opressão”, acrescenta JOÃO. O texto flui, por meio da excelente leitura que JOÃO FONSECA fez do clássico, tornando-o “moderno”.
            O elenco, de uma maneira geral, comporta-se bem e cada um demonstra estar bastante confortável, numa relação harmoniosa com seu personagem.






Elenco (da esquerda para a direita): Francisco Cuoco, Ricardo Tozzi, Mário Borges, Rafaela Amado, Camilla Amado, Paula Sandroni e Alexandre Mofati.

            Ser protagonista, muitas vezes, não é suficiente para garantir o brilho e o destaque para quem o/a representa. Já vi atores em papéis coadjuvantes merecerem mais aplausos que os principais. Não é o caso aqui. RAFAELA AMADO, que, nos últimos anos, vinha se dedicando mais à direção, assistência de direção e direção de movimento, estava nos devendo uma marcante volta aos palcos, como atriz, e o fez da melhor forma possível, interpretando uma ELECTRA visceral, intensa, determinada e determinante.  Confesso que me surpreendeu, positivamente. Não que eu achasse que RAFAELA não fosse capaz de conseguir um bom rendimento no palco, porém a surpresa positiva superou, em muito, as minhas expectativas, dada a força da personagem e o grau de dificuldade para interpretá-la. A dedicação da atriz é reconhecida, e recompensada, por calorosos e merecidos aplausos. Não penso duas vezes, para dizer que RAFAELA AMADO vive seu melhor momento como atriz, numa interpretação magnífica, que inspira, emociona, convence. À saída da Arena do Espaço SESC, fiquei extremamente feliz, ouvindo dezenas de comentários emocionados acerca da sua atuação, aos quais junto os meus. “O que é RAFAELA AMADO?!”  Que bela ELECTRA, RAFA!

            CAMILLA AMADO, uma de nossas damas do TEATRO, como a pérfida CLITEMNESTRA, tem uma excelente atuação, que parece tomar mais corpo ao contracenar com a filha, RAFAELA. A cena em que ambas discutem e a filha acusa a mãe da morte do pai, prometendo-lhe vingança, é antológica, nesta peça. Estamos diante de um grande momento do TEATRO BRASILEIRO.



Climnestra e Electra.


            É a primeira vez que tenho a oportunidade de ver RICARDO TOZZI no palco.  Até então, só o conhecia, e gostava de seu trabalho, como ator de TV, nos meus poucos momentos de espectador televisivo. Como, a meu juízo, é no palco que se conhece o bom ator, RICARDO, como ORESTES, deu-me a oportunidade de assim qualificá-lo.  Tem boa presença em cena e consegue expressar bem o dilema entre fazer justiça, matando a assassina de seu pai ou poupando a vida daquela que o gerara. Bom ator de TEATRO!

            FRANCISCO CUOCO dispensa qualquer comentário.  A despeito do peso da idade, continua sendo um excelente ator. E que timbre de voz!

            PAULA SANDRONI defende sua CRISÓTEMIS com garra e competência, aproveitando o máximo, para explorar a personagem, cuja participação, na trama, não é tão importante.

            ALEXANDRE MOFATI também, no pouco espaço que o texto lhe reserva, se bem que seu personagem seja, praticamente, o deflagrador de toda a tragédia, atua com desembaraço e competência.

            MÁRIO BORGES, um dos melhores atores brasileiros, de TEATRO, na minha avaliação, demonstra que um personagem secundário pode, por vezes, roubar a cena, se feito por alguém de seu gabarito. O coro de mulheres, no texto original, foi substituído pelo personagem de MÁRIO (CORO), quase que como um narrador, excelente ideia do adaptador ou da direção.

O ator é mantido em cena, quase o tempo todo, participando dela, direta ou indiretamente, e isso não teria a menor importância, se fosse outro ator, contudo, quando este é MÁRIO BORGES, a coisa muda de figura. Sua forte presença em cena, “contracenando”, em silêncio e fora da luz, com os demais companheiros de cena é comovente, obra de um ator como ele. Sou eterno fã do teu trabalho, Mário!


Orestes e Electra.


            Como em 99,9% de seus trabalhos, agradou-me muito o cenário, de NELLO MARRESE. Via de regra, em montagens de tragédias gregas, não há a necessidade de cenários exuberantes. NELLO, mantendo essa ordem, utilizou a simplicidade de estrados de madeira, utilizados, originalmente, para movimentação de cargas, com aspecto envelhecido, forrados de cânhamo, ou algo parecido, uns na tonalidade original do tecido, outros mais claros, de diferentes alturas, que recriam vários ambientes – entrada do palácio, espaços ermos, escadas, colunas. O conjunto formado pela junção desses pequenos praticáveis cria algo que lembra um tabuleiro de xadrez, pronto para receber uma partida entre ferozes contendores. Revestindo todo o espaço que sobra, na arena, há terra sintética, uma marca registrada nos cenários assinados por NELLO MARRESE. Gol de placa!



O desespero de Electra.


A iluminação, de LUIZ PAULO NENEN, além de boa, ajuda a desenhar os diversos ambientes e varia de intensidade, de acordo com o maior ou menor impacto das cenas.
Outro detalhe que não pode, nem deve, se destacar, em exuberância, numa tragédia grega, é o figurino. Mesmo os reis e os mais nobres membros da Corte se vestiam com trajes simples, sem grandes ornamentos. MARÍLIA CARNEIRO e REINALDO ELIAS foram muito felizes na concepção dos figurinos, paleta de cores, mais para frias, e tipos de tecidos, fiéis às exigências da época. A simplicidade assume um belo efeito plástico em cena.

JOÃO BITTENCOURT, mais uma vez, acertou, na escolha da trilha sonora original, que valoriza determinadas cenas da peça.  Difícil é imaginá-las sem os sons que as embalam.

Quanto à direção de movimento, ANA BEVILAQUA realizou um ótimo trabalho, dinamizando o que, em montagens tradicionais de tragédias gregas, costuma ser muito parado. É excelente a movimentação dos atores em cena, principalmente os deslocamentos de RAFAELA AMADO. 


A tradicional “rodinha”.



FICHA TÉCNICA:
Texto: Sófocles
Adaptação: Antônio Abujamra
Supervisão do texto: Fernanda Schnoor
Direção: João Fonseca
Elenco / Personagem:
Rafaela Amado / Electra
Camilla Amado / Clitemnestra, mãe de Electra
Ricardo Tozzi / Orestes, irmão de Electra
Mario Borges / Coro  
Paula Sandroni / Crisótemis, Irmã de Electra
Alexandre Mofati / Egisto, amante de Clitemnestra
Francisco Cuoco (ator convidado) / Preceptor
Iluminação: Luiz Paulo Nenen
Cenário: Nello Marrese
Figurino: Marília Carneiro e Reinaldo Elias
Trilha Sonora Original: João Bittencourt
Direção de Movimento: Ana Bevilaqua
Assistência de Direção: Paula Sandroni e Alexandre Mofati
Direção de Produção: Carla Mullulo
Produção Executiva: Preta Adorno
Assistência de Produção: Patrícia Melo
Fotos: Renato Mangolin
Design Gráfico: André Coelho
Visagismo: Rosa Bandeira
Realização: SESC Rio
Idealização: Camilla Amado
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany



Encontro entre irmãos.



SERVIÇO:
Local: Espaço SESC (Copacabana) – Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana
Temporada: Até 25 de março
Valor do Ingresso: R$20,00 (inteira); R$10,00 (meia-entrada); R$5,00 (associado SESC)
Classificação Etária: Não recomendado a menores de 14 anos
Tempo de Duração: 80 minutos
Informações: (210 2547-0156



electra2
Aplausos
Mais aplausos!!!


Com Rafaela Amado.


Com Alexandre Mofati.



(FOTOS: DIVULGAÇÃO /
RENATO MANGOLIN /
LÉO LADEIRA)

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