2ª “MARATONA” TEATRAL
EM SÃO PAULO/2015
PARTE II
“A VOLTA
PARA CASA”
(SURREALISMO
DA MAIOR QUALIDADE
E
MUITO MATERIAL
PARA PROFUNDAS REFLEXÕES.)
Uma
das melhores surpresas que tive, numa segunda curta temporada em São Paulo,
este ano, para ver TEATRO, aconteceu
quando fui assistir ao excelente espetáculo “A VOLTA PARA CASA”, fruto de um projeto, iniciado pela atriz REGINA DUARTE, que dirige a peça.
Desde novembro de 2013, REGINA vem coordenando o Grupo
de Estudos de Dramaturgia e Interpretação de Textos, junto a diretores e
atores/pesquisadores, cujo desejo é criar um banco de textos de dramaturgia de
qualidade, já existente ou adaptado, promovendo, assim, novas e renovadas
formas de interpretação.
Em meio ao trabalho, o grupo descobriu um texto
fantástico, de MATÉI VISNIEC, dramaturgo
romeno-francês, além de poeta e jornalista, de 60 anos, que vive, atualmente,
em Paris. Em seu país, era bastante censurado e perseguido, até que, em 1987,
resolveu atender a um convite de uma fundação literária da França, quando pediu
asilo político a este país e lá se radicou, obtendo, tempos depois, a cidadania
francesa. A partir de então, tornou-se mundialmente considerado por sua arte.
Só passou a ser valorizado, e bastante encenado, em seu país, após a queda do
regime comunista na Romênia. Atualmente, trabalha como jornalista na Rádio
França Internacional.
SINOPSE:
A história se passa numa
atmosfera de fim de guerra, mostrando personagens, como um jovem soldado, que
aprende a observar seus “inimigos”, que vivem do outro lado da rua; uma
mulher, que tenta cruzar a fronteira, para retornar a seu país de origem; e um GENERAL, que percorre o campo de
batalha, convocando os soldados mortos a se levantarem, para a entrada
triunfal, de volta à terra natal, no desfile do Dia do Grande Perdão. Fazem parte deste grupo os mortos, os
desmemoriados, os mutilados, os desaparecidos e outros tantos; resumindo, os “proscritos”.
“A VOLTA PARA CASA” é uma peça em um ato, que trata de importantes
temas relacionados à condição humana, como o próprio sentido da vida e da
morte, o valor, material ou não, das coisas e das pessoas, a fragmentação,
pulverização e desintegração dos territórios e do convencionado conceito de “pátria”,
a tensão entre indivíduo e sociedade, entre o poder e a fragilidade do ser
humano.
A peça denuncia as feridas
da guerra e a condição alienada e fragmentada do homem contemporâneo, escravo
das situações para as quais ele próprio contribui.
Elenco e direção.
Não
há como não se apaixonar por este espetáculo.
A começar pelo estupendo texto,
de VISNIEC, surpreendente e
impactante, pela riqueza de imagens, pela inventividade, pelo inusitado das
situações, revelando um mundo real, mas que preferimos ignorar, para evitar
mais sofrimentos. O dramaturgo tomou por base as mazelas do longo e triste conflito
da Faixa de Gaza e todos os outros surtos de guerra de uma Europa vitimada pelo
terror. Trata-se de um texto que nos
faz sorrir, rir, gargalhar, ainda que acanhadamente, pelo tom patético das
falas e atitudes dos personagens. É daqueles textos que, num primeiro momento,
provocam o riso, para, depois, fazer o espectador mergulhar em profundas
reflexões: “Que mundo é este?” “O que eu posso fazer para melhorá-lo?” O
produto final do texto é o resultado
de um processo de discussão dentro do grupo, sem descaracterizar, é claro, o
original.
Os opressores.
Um dos oprimidos.
Alguns detalhes desta encenação
despertaram, em especial, a minha atenção. Alguns aqui vão lembrados:
- Fica no ar, e não há a menor necessidade de tornar explícito, o que venha a ser o chamado “Dia do Grande Perdão”. Cada um que assiste à peça tem a liberdade de entender da maneira que mais lhe convier, entretanto todas as decodificações, certamente, convergirão para algo bem comum a todas as hipóteses.
- A fala de um dos personagens, para tentar justificar um argumento: “Deus não pensa; age!”.
- Os argumentos utilizados pelos mortos, na disputa por um lugar de destaque no desfile, são de um requinte de vaidade e autovalorização, como se, no fundo, algum valor aquilo tivesse.
- Na citação anterior, destacam-se os que morreram com uma bala no coração, que se julgam mais importantes que os demais, pelo que este órgão representa, denotativa e conotativamente falando.
- Um dos pontos mais fantásticos, para mim, é quando os “desaparecidos” reivindicam um cadáver, para, também, participar do já referido desfile. Estes são representados pelos gigantescos manequins, já citados.
- Mais fantástica, ainda, é a argumentação dos militares, para justificar a “sorte” desses desaparecidos, em relação aos declarados mortos. Para estes, seu fim já está definido; para os desaparecidos, resta a “esperança de um dia voltarem”, para a alegria de seus familiares, num requintado misto de ironia e hipocrisia.
- Os argumentos que “justificam” a execução por alta traição beiram as raias do ridículo, o que leva o público às gargalhadas.
Para REGINA DUARTE
– e eu concordo plenamente com ela -, “MATÉI VISNIEC é um autor rico de humanidade
e impregnado do humor patético, próprio dos grandes dramaturgos. Ele me deu,
também, a necessária coragem para olhar mais de perto a guerra e o horror que
vêm assombrando - ainda! - o nosso tempo”.
Não é à toa que ele é considerado, pelos
especialistas e amantes do bom TEATRO,
como o sucessor de Eugène Ionesco,
um dos mais dignos representantes do Teatro
do Absurdo, já que, em sua obra, facilmente, pode ser detectado um olhar
crítico em relação às formas autoritárias de poder, além de não deixar de
iluminar as contradições das democracias ocidentais, por meio de situações as
mais absurdas possíveis. O texto desta peça é, mesmo, apaixonante.
Quanto à direção,
REGINA demonstra muita segurança na
condução de quase vinte atores em cena, comungando, inteiramente, com as
intenções do autor, trabalho que creio ter sido facilitado em função de sua
longa e vitoriosa experiência como grande atriz que é. Ela imprime, à
encenação, um bom ritmo e um tom comedido de uma mistura de deboche com
“nonsense”, e consegue extrair o melhor rendimento de cada ator.
É uma pena que suas incursões no território da direção sejam tão bissextas. Deveria dirigir mais vezes, investir
bastante nesta seara, na qual demonstra competência e sensibilidade.
Com relação ao elenco, dedico a
todos os meus mais calorosos aplausos, tanto aos que encarnam personagens de
maior importância e participação na trama quanto aos que têm uma parcimoniosa
atuação na peça.
À exceção de GILDA VANDENBRANDE,
minha companheira de cena, na primeira montagem do musical “Hair”, no início dos idos e saudosos anos 70, e, logo depois,
minha diretora musical e diretora substituta, num musical infantil, ainda
naquela década, “Dom Chicote-Mula-Manca
e Seu Fiel Companheiro Zé Chupança, papel este interpretado,
coincidentemente, por REGINA DUARTE (eu
era o Dom Chicote), jamais havia visto alguém daquele elenco representar.
Todos, desconhecidos, até então, para mim, se apresentam numa total entrega a
seus personagens, valorizando-os, até mesmo com poucas falas ou em cenas de
total silêncio. Sem destaques, até porque ficaria difícil, para mim, e até
geraria injustiças, fazê-lo, já que são muitos atores, alguns fazendo mais de
um papel, e eu não os conheço, quero expressar meus sinceros cumprimentos a
todos!
Por ser um espetáculo de modestíssima produção, o que prova que, mesmo com
poucos recursos materiais (dinheiro, verba), é possível levantar um espetáculo
de grande qualidade artística, os cenários
e figurinos são bem simples, porém
servindo às necessidades exigidas pelo texto.
O cenário, concepção de REGINA DUARTE, chama a atenção dos
espectadores, logo que estes adentram a acanhada sala do simpaticíssimo Top Teatro, na Bela Vista, ao fundo de um agradável café, pelos quatro gigantescos
manequins, com fardas militares, dois de cada lado do espaço cênico, que conta,
ao fundo, com um telão, neutro, para projeções, havendo, ainda, uma trincheira
e mochilas descomunais, no chão.
Os figurinos, também saídos da
criatividade e do ecletismo de REGINA,
deixam bem clara a oposição entre os opressores e os oprimidos, os detentores
do poder e os massacrados por ele. Aqueles, representados pelo GENERAL e pelo CORONEL, impecavelmente dentro de suas fardas; estes, envoltos em
trapos. Trapos, vestindo trapos humanos. Humanos?!
Os
demais elementos técnicos do
espetáculo, como a boa iluminação,
de WAGNER FREIRE; a direção musical, assinada por SAMUEL KERR; a trilha sonora, que tem TUNICA
TEIXEIRA como responsável; e a preparação
vocal, feita por RENATA FERRARI,
contribuem para o sucesso deste espetáculo, que comemorou um ano em cartaz, na
semana passada, no dia 24 de outubro, já tendo sido apresentado em vários
espaços da capital paulista e ter passado por muitas cidades do estado de São
Paulo.
São, também, bastante interessantes as projeções de animação, trabalho do SPLIT STUDIO.
Detalhe da iluminação.
Embora
não haja, no programa da peça, o nome do responsável pelo excelente visagismo do espetáculo, creio ter sido
produto de uma criação coletiva, de excelente bom gosto e bastantes detalhes.
Oxalá
algum produtor, um mecenas, se una ao Grupo
de Estudos de Dramaturgia e Interpretação de Textos, para viabilizar uma
temporada no Rio de Janeiro. O público
carioca merece conhecer um espetáculo do porte de “A VOLTA PARA CASA” e tenho certeza de que o acolheria de braços
abertos.
FICHA TÉCNICA:
Autor: Matéi Visniec
Tradução: Luiza Jatobá
Adaptação e Direção: Regina Duarte
Elenco (por ordem
alfabética): Alexandre Zá, Amazyles de Almeida, Eduardo Bodstein, Gilda
Vandenbrande, Ivan Izzo, João Carlos Mattos, João Ribeiro, Ligia Daniel, Luís
de La Plata, Majeca Angelucci, Marcelo Gomes, Marieli Goergen, Paulo Gabriel,
Rodrigo de Castro, Rita Teles, Vanessa Goulartt, Victória Moliterno e as
crianças Maria Clara Novaes e Matheus Braga (em projeção).
Assistência de
Direção: Eduardo Bodstein
Concepção de Cenário e Figurinos: Regina
Duarte
Desenho de Luz: Wagner Freire
Direção Musical: Samuel Kerr
Preparação Vocal: Renata Ferrari
Trilha Sonora:Tunica Teixeira
Design Gráfico: Ivan Izzo
Cena final.
SERVIÇO:
Temporada: Até o dia 27 de novembro
Local: Top Teatro
Endereço: Rua Rui Barbosa, 201 (ao lado do Teatro Sérgio Cardoso e nos
fundos do Franz Café) – Bela Vista – São Paulo
Dia e Horário: Às 6ªs feiras, às 21h.
Valor do Ingresso: R$40,00 e R$20,00 (meia-entrada)
Duração do Espetáculo: 50 minutos
Indicação Etária: 12 anos
Gênero: Drama
Com a querida amiga Gilda Vandenbrande, depois de mais de 40 anos de
falta de contato. (Foto: Regina Cavalcanti.)
(FOTOS:
CAROL SIQUEIRA,
VICTOR
LEMINI,
DANI
COEN
e
JULIANE ARGUELLO)
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