quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

“MEU CARO AMIGO”

ou

(UM TRIBUTO

A QUEM DELE

SE FAZ MERECEDOR.)

ou

(O QUE É BOM 

É ETERNO.)

 

        



 

O que é bom tem vida longa. No caso do TEATRO, pode acabar uma temporada, mas sempre o espetáculo retorna ao cartaz, nem que seja muitos anos depois, sendo, ordinariamente, bem recebido pelo público, que sabe reconhecer a diferença entre uma grande produção e outras que não merecem tantos aplausos; ou nenhum. Há quinze anos, assisti a um monólogo, no Teatro do Centro Cultural dos Correios, hoje Teatro dos Correios Léa Garcia, no Rio de Janeiro, chamado “MEU CARO AMIGO”. Gostei tanto, que o revi mais duas vezes, em teatros diferente, no Rio. Dois fatores me estimularam bastante a conferir o solo, uma década e meia após sua estreia. Um deles, o fato de se tratar, no fundo, de uma grande e merecida homenagem a um gênio, uma das cabeças mais privilegiadas deste país, tão pródigo, infelizmente, em estúpidos e enganadores da massa. Falo de CHICO BUARQUE DE HOLANDA. O segundo foi ver mais um brilhante trabalho de atriz de KELZY ECARDA peça ficou cinco anos em cartaz, viajou pelo país, sempre com sessões lotadas, num encontro de gerações e resposta afetuosa do público, e colecionando prêmios.


 

O monólogo, visto por mais de 20 mil espectadores, conquistou o público, ao relembrar a história do país, a partir da vida de um ser fictício, Norma, uma professora apaixonada pela obra de CHICO BUARQUE. A essência do texto e da montagem original foi mantida, entretanto o solo se apresenta com um frescor dos nossos dias, em função de tudo ter sido levemente atualizado, pelo autor do texto, FELIPE BARENCO, com algumas novidades, implementadas pela diretora, JOANA LEBREIRO. A direção musical, de MARCELO ALONSO NEVES, também ganhou ares dos dias de hoje. “A encenação brinca com a alternância de músicas em suas versões originais e outras cantadas ao vivo.”, frase retirada do “release”, que me chegou às mãos, via RACHEL ALMEIDA, da assessoria de imprensa do espetáculo.


 

         O título, “MEU CARO AMIGO” é o mesmo de uma das mais prestigiadas canções do compositor e cantor CHICO BUARQUE - e também do álbum do qual ela faz parte -, em cuja letra, na forma de uma mensagem gravada numa fita cassete, ele se dirige a alguém, um amigo que está fora do país, para lhe contar sobre o “sufoco” que estava sendo viver num Brasil pós-golpe militar de 1964, um país sem liberdade de expressão e que punia, severamente, até com a morte e desaparecimento, os que se mostrassem críticos e opositores da terrível e ignóbil ditadura militar. Está aí o premiadíssimo filme “Ainda Estou Aqui”, para corroborar as minhas palavras (E VIVA RUBENS PAIVA! E VIVA EUNICE PAIVA! E VIVA FERNANDA TORRES! E VIVA O CINEMA NACIONAL!). Suponho que o “caro amigo” seja o escritor e dramaturgo Augusto Boal, a julgar pelo antropônimo “Cecília”, presente na letra, nome da esposa de Boal, o qual estava, com a família, exilado do Brasil, devido à tortura e prisão que sofrera durante aquela nefasta e cruel ditadura. Boal viveu em vários países, como Argentina, Portugal, Equador e França. 




“MEU CARO AMIGO”

(Chico Buarque de Hollanda)

Meu caro amigo, me perdoe, por favor,
Se eu não lhe faço uma visita.
Mas, como agora apareceu um portador,
Mando notícias nesta fita.

Aqui, na terra, tão jogando futebol,

Tem muito samba, muito choro e “rock’n’roll”.

Uns dias, chove; noutros dias, bate sol,
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta.

Muita mutreta pra levar a situação,
Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça,
Que a gente vai tomando, que, também, sem a cachaça,
Ninguém segura esse rojão.

Meu caro amigo, eu não pretendo provocar
Nem atiçar suas saudades,
Mas acontece que não posso me furtar
A lhe contar as novidades.

Aqui, na terra, tão jogando futebol,
Tem muito samba, muito choro e “rock’n’roll”.
Uns dias, chove; noutros dias, bate sol,
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta.

É pirueta, pra cavar o ganha-pão,
Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro,
Que a gente vai fumando, que, também, sem um cigarro,
Ninguém segura esse rojão.

Meu caro amigo, eu quis até telefonar,
Mas a tarifa não tem graça.
Eu ando aflito, pra fazer você ficar
A par de tudo que se passa.

Aqui, na terra, tão jogando futebol,
Tem muito samba, muito choro e “rock’n’roll”.
Uns dias, chove; noutros dias, bate sol,
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta.

Muita careta, pra engolir a transação,
Que a gente tá engolindo cada sapo no caminho,
Que a gente vai se amando, que, também, sem um carinho,
Ninguém segura esse rojão.

 

Meu caro amigo, eu bem queria lhe escrever,

Mas o correio andou arisco.
Se me permitem, vou tentar lhe remeter
Notícias frescas neste disco.

Aqui, na terra, tão jogando futebol,
Tem muito samba, muito choro e “rock’n’roll”.
Uns dias, chove; noutros dias, bate sol,
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

A Marieta manda um beijo para os seus.
Um beijo na família, na Cecília e nas crianças,
O Francis aproveita pra também mandar lembranças
A todo o pessoal. Adeus!





 

SINOPSE:

Na trama, Norma Aparecida (KELZY ECARD) viveu as grandes transformações do país, de forma intensa e apaixonada: a infância e adolescência em plena ditadura militar, a luta pela redemocratização com os colegas de faculdade e uma inesquecível história de amor no desbunde dos anos 80 com as “Diretas Já”.

E, mesmo nos momentos mais difíceis, com uma relação familiar conturbada, após o falecimento de sua mãe, Norma nunca se sentiu completamente sozinha: era como se CHICO BUARQUE DE HOLLANDA adivinhasse todos os seus sentimentos e criasse as músicas pensando nela.

Agora, aos 60 anos, ela decide realizar um sonho acalentado desde menina: homenagear seu ídolo e cantar a trilha sonora de sua vida.


 

 

 

         Julgo muitíssimo pertinente a ideia da idealizadora do projeto mais o autor do texto e a diretora, de tirar da gaveta este espetáculo, se considerarmos o momento político brasileiro de seis anos para cá, com a saída do esgoto de tanta gente, “capitaneada” por um fascista-mor. O trio KELZY, FELIPE e JOANA percebeu quão atual é a trajetória de Norma Aparecida, a protagonista, uma professora de História, apaixonada por CHICO BUARQUE, quando ela decide fazer um “show”, para declarar todo seu amor ao ídolo. O espetáculo abraça mais de 30 clássicos compostos por CHICO, sozinho ou em algumas poucas parcerias, como “A Banda”, “Apesar de Você” e “Samba do Grande Amor”. O repertório, quando cantado, ao vivo, por KELZY ECARD, é acompanhado pelo pianista JOÃO BITTENCOURT




         KELZY se confessa uma fã ardorosa de CHICO (Grande novidade! E quem não o é?” Momento descontração!) e diz que “Ele foi – e é – a trilha sonora de vários momentos da minha vida”. Dela e das torcidas do Flamengo, do Corinthians, do Boca Juniors, do Barcelona, da Seleção Canarinho..., reunidas. E por que não do meu glorioso Fluminense, time do coração de CHICO?


 

         Outro detalhe que justifica a feliz volta da peça ao cartaz pode ser resumido nas palavras de JOANA LEBREIRO, sua diretora: “Sempre foi marcante, para a gente, ver as pessoas voltando ao teatro trazendo outras – muitas vezes, pessoas da família, de outras gerações. Isso é algo que me encanta no TEATRO: espetáculos que toquem em temas de memória coletiva e que promovam encontro de gerações. Esta volta é uma celebração à força e afetuosidade deste espetáculo. Percebemos que a peça continua muito impactante – algumas cenas referentes à época da ditadura continuam completamente atuais. São reflexões políticas e sociais que a gente se faz até hoje”.



Joana Lebreiro.


  FELIPE BARENCO, o dramaturgooptou por se fixar numa faixa da vida da personagem Norma, de 1966 a 2016, e assim se colocou no já referido “release”, com palavras que importam bastante, para a compreensão da proposta do espetáculo: “Após 15 anos da estreia e por tudo que vivemos no país, politicamente falando, de lá para cá, o espetáculo ganhou uma atualidade absurda. Tive a oportunidade de rever o texto com mais maturidade e acredito que o espetáculo retorna ainda mais forte e com toda a afetuosidade que conquistou o público. Todos os conflitos são apresentados pelo filtro familiar. Em tempos de tanto ódio, é uma peça que fala de amor.”. Quero acrescentar que, por pensar como eles, aproprio-me das palavras do autor do texto e da diretora. Trata-se de um espetáculo contagiante, poético, minimalista, afetuoso, verdadeiro e atual.



Felipe Barenco.

 

         O texto, de FELIPE PARENCO, não chega a ser nenhuma oitava maravilha, mas não deixa a desejar, dentro daquilo a que se propõe. Confesso que, mesmo passados 15 anos, ainda me lembro bem dele e esperava encontrar, como consta no já citado “release”, muitas surpresas, envolvendo os lamentáveis episódios que tanto nos surpreenderam e revoltaram, no período negro – mais um – na história da república brasileira, um quatriênio (2019 - 2022) em que imperou um clima de desmandos e maldades, praticados por um ser ignóbil, totalmente desprovido de massa encefálica e de empatia.


 

         JOANA LEBREIRO se conduz muito bem, na direção do solo, por meio de um trabalho bastante criativo e limpo, passando-nos a impressão de isso não lhe ter custado muito, se considerarmos o talento e o profissionalismo da atriz KELZY ECARD e o seu próprio. JOANA não possui um portfólio muito extenso, entretanto todas as suas assinaturas como diretora me agradaram até hoje, com destaque para “Mãe Fora da Caixa”; a trilogia “Aquarelas do Ary”, “Ai, que saudades do Lago!” e “Antonio Maria – A Noite é uma criança!”; além do lindo e inteligente espetáculo infantojuvenil “Isaac no Mundo das Partículas”. Se o foco de JOANA era atingir um público de diferentes gerações, acertou na mosca.  


 

         DANI VIDAL e NEY MADEIRA respondem por dois elementos delicados e que funcionam muito a contento nesta montagem: cenografia, aconchegante e harmoniosa, e um interessante figurino, um vestido com trechos das letras de algumas canções de CHICO nele bordadas. O mesmo se aplica ao discreto desenho de luz, criado por PAULO CESAR MEDEIROS.


 

        Como é bom ouvir as pérolas do repertório de CHICO BUARQUE executadas de forma tão diferente das gravações originais, fruto de um minucioso e criativo trabalho de arranjos, dentro da proposta de direção musical, pela qual MARCELO ALONSO NEVES é o responsável. Cabe, aqui, sem a menor sombra de dúvida, um veemente elogio a JOÃO BITTENCOURT, que acompanha KELZY ECARD, ao piano, em todas as canções executadas ao vivo. Exímio instrumentista, como o é JOÃO, não bastaria para o brilho desses números musicais. Era preciso, também, uma excessiva dose de sensibilidade, o que não falta ao músico.      


 

 

         E chegamos a ela, KELZY ECARD, a grande intérprete da personagem Norma Aparecida. Hoje, é bastante conhecida e aplaudida, por seu trabalho popularizado pela TV, em novelas e séries, contudo, quando “MEU CARO AMIGO” estreou, em 2010, só os “habitués” do TEATRO, como eu, eram capazes de se dispor a assistir a uma peça porque o nome da atriz constava na FICHA TÉCNICA, a despeito de ela já ter, até então, dedicado alguns anos de sua vida à nobre arte de representar. Quem já conhecia seu trabalho nos palcos saía do Teatro em estado de graça, o que se tornou normal hoje, porém os que a estavam vendo pela primeira vez, não escondiam a vontade de voltar a vê-la num palco. E assim KELZY foi construindo uma fértil carreira de atriz, cada vez mais, conquistando novos admiradores de seu trabalho. É uma das minhas atrizes preferidas. De todos os seus trabalhos que me arrebataram, é impossível esquecer a sua participação em espetáculos teatrais como “Eu, Moby Dick”, “Tom na Fazenda”, “Por Amor ao Mundo – Um Encontro com Hannah Arendt”, “Desalinho”, “Incêndios” e “Rasga Coração”. Na televisão, chamou a atenção pelos trabalhos desenvolvido nas novelas “Segundo Sol”, “Éramos Seis” e “Todas as Flores”.


 

         Em “MEU CARO AMIGO”, KELZY não se revela uma “cantora”, mas uma estupenda atriz que canta; e canta bem, muito mais com a alma do que com a voz, a despeito de ser afinada, atingir altas notas e dominar a técnica do falsete. Mergulha, de cabeça, nas interpretações, com muita garra e, acima de tudo, com a alma. Canta sem esforço, suavemente, e emite cada palavra dos versos das canções de CHICO com muito cuidado, leveza, clareza e, acima de tudo, repito, com a alma, e o coração também. É um deleite ouvi-la cantando.


  

 

 

FICHA TÉCNICA:

Idealização: Kelzy Ecard

 

Texto: Felipe Barenco

Direção Artística: Joana Lebreiro

Direção Musical: Marcelo Alonso Neves

 

Intérprete: Kelzy Ecard

 

Pianista: João Bittencourt

 

Cenografia e Figurino: Espetacular Produções e Artes – Dani Vidal e Ney Madeira

Cenógrafo Assistente: Vinícius Lugon

Iluminação: Paulo Cesar Medeiros

“Designer” Gráfico: Felipe Ribeiro

Fotografia: Renato Mangolin

Projeções: Leonardo Miranda

Preparação Vocal: Pedro Lima

Operadora de Luz: Yasmim Lira

Operador de Som: Thiago Silva

Contrarregra: Nilvan Santos

Costureira: Selma Franklin

Assessoria de Imprensa: Rachel Almeida – Racca Comunicação

Direção de Produção: Felipe Barenco – TF Produções

Produção Executiva: Paula Alexander

Coordenação do Projeto: Felipe Barenco, Joana Lebreiro e Kelzy Ecard

Realização: FIRJAN SESI


 

 

 

 

SERVIÇO:

Temporada: De 20 de janeiro a 25 de fevereiro de 2025.

Local: Teatro Firjan SESI Centro.

Endereço: Avenida Graça Aranha, nº 1 – Centro - Rio de Janeiro.

Telefones: (21) 2563-4168 e (21) 2563-4163.

Dias e Horários: 2ª e 3ª feira, às 19h.

Valor dos Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia-entrada).

Venda de ingressos: Sympla: https://bileto.sympla.com.br/event/101291/d/292428 (com taxa de conveniência) e na bilheteria do Teatro (sem taxa de conveniência).

Horário de funcionamento da Bilheteria: De 2ª e 6ª feira, das 12h às 19h; sábados, domingos e feriados, a partir de 2h antes do evento.

Lotação: 338 lugares.

Duração: 80 minutos.

Classificação Etária: 12 anos.

Gênero: Monólogo Musical. 


 

 

 

         Tenho certeza de que, das mais de 300 pessoas que lotavam o Teatro Firjan SESI Centro, na noite de ontem (11 de fevereiro de 2025), numa terça-feira, e que cantaram, juntas, com a atriz e a aplaudiram à farta, muitas ainda voltarão, para rever o espetáculo, levando outras. Não o farei, por falta de oportunidade e por já ter assistido ao monólogo por quatro vezes, porém não é por falta de desejo de fazê-lo. RECOMENDO, SEM PESTANEJAR, O ESPETÁCULO!


 

 

 

FOTOS: RENATO MANGOLIN

 


GALERIA PARTICULAR

(Fotos: Gilberto Bartholo

e Ana Cláudia Matos.)

 


Com João Bittencourt.


Com Kelzy Ecard.



Idem.



Minha porção Norma Aparecida.
(Momento descontração, que também, sem uma brincadeira, "ninguém segura esse rojão".)


 

É preciso ir ao TEATRO, ocupar todas as salas de espetáculo, visto que a arte educa e constrói, sempre; e salva. Faz-se necessário resistir sempre mais. Compartilhem esta crítica, para que, juntos, possamos divulgar o que há de melhor no TEATRO brasileiro!

 









































































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