“MEU CARO AMIGO”
ou
(UM TRIBUTO
A QUEM DELE
SE FAZ MERECEDOR.)
ou
(O QUE É BOM
É ETERNO.)
O que é bom tem vida longa. No
caso do TEATRO, pode acabar uma temporada, mas sempre o espetáculo
retorna ao cartaz, nem que seja muitos anos depois, sendo, ordinariamente, bem
recebido pelo público, que sabe reconhecer a diferença entre uma grande produção
e outras que não merecem tantos aplausos; ou nenhum. Há quinze anos, assisti a um
monólogo, no Teatro do Centro Cultural dos Correios, hoje Teatro
dos Correios Léa Garcia, no Rio de Janeiro, chamado “MEU CARO AMIGO”. Gostei tanto, que o
revi mais duas vezes, em teatros diferente, no Rio. Dois fatores me estimularam bastante a conferir o solo, uma década e meia após sua estreia. Um deles, o fato de se
tratar, no fundo, de uma grande e merecida homenagem a um gênio, uma das
cabeças mais privilegiadas deste país, tão pródigo, infelizmente, em estúpidos
e enganadores da massa. Falo de CHICO BUARQUE DE HOLANDA. O segundo foi ver mais um brilhante trabalho de atriz de KELZY ECARD. A peça
ficou cinco anos em cartaz, viajou pelo país, sempre com sessões
lotadas, num encontro de gerações e resposta afetuosa do público, e
colecionando prêmios.
O monólogo, visto por mais de
20 mil espectadores, conquistou o público, ao relembrar a história do
país, a partir da vida de um ser fictício, Norma,
uma professora apaixonada pela obra de CHICO
BUARQUE. A essência do texto e da montagem original foi mantida,
entretanto o solo se apresenta com um frescor dos nossos dias, em função de
tudo ter sido levemente atualizado, pelo autor
do texto, FELIPE BARENCO, com
algumas novidades, implementadas pela diretora,
JOANA LEBREIRO. A direção musical, de MARCELO ALONSO NEVES, também ganhou
ares dos dias de hoje. “A encenação
brinca com a alternância de músicas em suas versões originais e outras cantadas
ao vivo.”, frase retirada do “release”, que me chegou às mãos, via RACHEL
ALMEIDA, da assessoria de imprensa
do espetáculo.
O
título, “MEU CARO AMIGO” é o mesmo
de uma das mais prestigiadas canções do compositor e cantor CHICO BUARQUE - e também do álbum
do qual ela faz parte -, em cuja letra, na forma de uma mensagem gravada numa
fita cassete, ele se dirige a alguém, um amigo que está fora do país, para lhe
contar sobre o “sufoco” que estava sendo viver num Brasil pós-golpe militar
de 1964,
um país sem liberdade de expressão e que punia, severamente, até com a morte e
desaparecimento, os que se mostrassem críticos e opositores da terrível e
ignóbil ditadura militar. Está aí o premiadíssimo filme “Ainda
Estou Aqui”, para corroborar as minhas palavras (E VIVA RUBENS PAIVA! E VIVA EUNICE PAIVA! E VIVA FERNANDA
TORRES! E VIVA O CINEMA NACIONAL!). Suponho que o “caro
amigo” seja o escritor e dramaturgo Augusto Boal, a julgar
pelo antropônimo “Cecília”, presente na letra, nome da esposa de Boal, o qual estava, com a família, exilado do Brasil, devido à tortura e
prisão que sofrera durante aquela nefasta e cruel ditadura. Boal viveu em vários países, como Argentina,
Portugal,
Equador
e França.
“MEU CARO AMIGO”
(Chico Buarque de Hollanda)
Meu caro
amigo, me perdoe, por favor,
Se eu não lhe faço uma visita.
Mas, como agora apareceu um portador,
Mando notícias nesta fita.
Aqui, na terra, tão jogando futebol,
Tem muito samba, muito choro e “rock’n’roll”.
Uns dias, chove; noutros dias, bate sol,
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta.
Muita
mutreta pra levar a situação,
Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça,
Que a gente vai tomando, que, também, sem a cachaça,
Ninguém segura esse rojão.
Meu caro
amigo, eu não pretendo provocar
Nem atiçar suas saudades,
Mas acontece que não posso me furtar
A lhe contar as novidades.
Aqui, na
terra, tão jogando futebol,
Tem muito samba, muito choro e “rock’n’roll”.
Uns dias, chove; noutros dias, bate sol,
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta.
É pirueta,
pra cavar o ganha-pão,
Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro,
Que a gente vai fumando, que, também, sem um cigarro,
Ninguém segura esse rojão.
Meu caro
amigo, eu quis até telefonar,
Mas a tarifa não tem graça.
Eu ando aflito, pra fazer você ficar
A par de tudo que se passa.
Aqui, na
terra, tão jogando futebol,
Tem muito samba, muito choro e “rock’n’roll”.
Uns dias, chove; noutros dias, bate sol,
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta.
Muita
careta, pra engolir a transação,
Que a gente tá engolindo cada sapo no caminho,
Que a gente vai se amando, que, também, sem um carinho,
Ninguém segura esse rojão.
Meu caro
amigo, eu bem queria lhe escrever,
Mas o
correio andou arisco.
Se me permitem, vou tentar lhe remeter
Notícias frescas neste disco.
Aqui, na
terra, tão jogando futebol,
Tem muito samba, muito choro e “rock’n’roll”.
Uns dias, chove; noutros dias, bate sol,
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
A Marieta
manda um beijo para os seus.
Um beijo na família, na Cecília e nas crianças,
O Francis aproveita pra também mandar lembranças
A todo o pessoal. Adeus!
SINOPSE:
Na trama, Norma Aparecida (KELZY ECARD) viveu as grandes
transformações do país, de forma intensa e apaixonada: a infância e
adolescência em plena ditadura militar, a luta pela redemocratização com os
colegas de faculdade e uma inesquecível história de amor no desbunde dos anos 80
com as “Diretas Já”.
E, mesmo nos momentos mais difíceis,
com uma relação familiar conturbada, após o falecimento de sua mãe, Norma
nunca se sentiu completamente sozinha: era como se CHICO BUARQUE DE HOLLANDA
adivinhasse todos os seus sentimentos e criasse as músicas pensando nela.
Agora, aos 60 anos, ela decide
realizar um sonho acalentado desde menina: homenagear seu ídolo e cantar a
trilha sonora de sua vida.
Julgo
muitíssimo pertinente a ideia da idealizadora do projeto mais o autor do texto e
a diretora, de tirar da gaveta este espetáculo, se considerarmos o momento
político brasileiro de seis anos para cá, com a saída do esgoto de tanta gente,
“capitaneada”
por um fascista-mor. O trio KELZY, FELIPE e JOANA percebeu quão atual é a trajetória de Norma
Aparecida, a protagonista, uma professora de História, apaixonada por CHICO BUARQUE, quando ela
decide fazer um “show”, para declarar todo seu amor
ao ídolo. O espetáculo abraça mais de 30 clássicos compostos por CHICO, sozinho ou em algumas poucas parcerias,
como “A
Banda”, “Apesar de Você” e “Samba do Grande Amor”. O repertório,
quando cantado, ao vivo, por KELZY ECARD,
é acompanhado pelo pianista JOÃO
BITTENCOURT.
KELZY
se confessa uma fã ardorosa de CHICO
(Grande
novidade! E quem não o é?” Momento descontração!) e diz que “Ele foi – e é – a trilha sonora
de vários momentos da minha vida”. Dela e das torcidas do Flamengo,
do Corinthians,
do Boca
Juniors, do Barcelona, da Seleção Canarinho..., reunidas.
E por que não do meu glorioso Fluminense, time do coração de CHICO?
Outro
detalhe que justifica a feliz volta da peça ao cartaz pode ser resumido nas
palavras de JOANA LEBREIRO, sua
diretora: “Sempre foi marcante, para a gente, ver as pessoas voltando ao teatro
trazendo outras – muitas vezes, pessoas da família, de outras gerações. Isso é
algo que me encanta no TEATRO: espetáculos que toquem em temas de memória
coletiva e que promovam encontro de gerações. Esta volta é uma celebração à
força e afetuosidade deste espetáculo. Percebemos que a peça continua muito
impactante – algumas cenas referentes à época da ditadura continuam
completamente atuais. São reflexões políticas e sociais que a gente se faz até
hoje”.
FELIPE BARENCO, o dramaturgo, optou por
se fixar numa faixa da vida da personagem Norma, de 1966 a 2016, e assim
se colocou no já referido “release”, com palavras que importam
bastante, para a compreensão da proposta do espetáculo: “Após 15 anos da estreia e por
tudo que vivemos no país, politicamente falando, de lá para cá, o espetáculo
ganhou uma atualidade absurda. Tive a oportunidade de rever o texto com mais
maturidade e acredito que o espetáculo retorna ainda mais forte e com toda a
afetuosidade que conquistou o público. Todos os conflitos são apresentados pelo
filtro familiar. Em tempos de tanto ódio, é uma peça que fala de amor.”.
Quero acrescentar que, por pensar como eles, aproprio-me das palavras do autor
do texto e da diretora. Trata-se de um espetáculo
contagiante, poético, minimalista, afetuoso, verdadeiro e atual.
O texto, de FELIPE
PARENCO, não chega a ser nenhuma oitava maravilha, mas não deixa a desejar,
dentro daquilo a que se propõe. Confesso que, mesmo passados 15 anos, ainda me lembro bem dele e
esperava encontrar, como consta no já citado “release”, muitas surpresas, envolvendo os lamentáveis
episódios que tanto nos surpreenderam e revoltaram, no período negro – mais um – na história da república
brasileira, um quatriênio (2019 - 2022) em que imperou um clima de desmandos e maldades,
praticados por um ser ignóbil, totalmente desprovido de massa encefálica e de
empatia.
JOANA LEBREIRO se conduz muito
bem, na direção do solo, por
meio de um trabalho bastante criativo e limpo, passando-nos a impressão de isso
não lhe ter custado muito, se considerarmos o talento e o profissionalismo da
atriz KELZY ECARD e o seu próprio. JOANA não possui um portfólio muito extenso,
entretanto todas as suas assinaturas como diretora me agradaram até hoje, com destaque para “Mãe Fora
da Caixa”; a trilogia “Aquarelas do Ary”, “Ai, que saudades do Lago!” e “Antonio
Maria – A Noite é uma criança!”; além do lindo e inteligente espetáculo
infantojuvenil “Isaac no Mundo das Partículas”. Se o foco de JOANA era atingir um público de
diferentes gerações, acertou na mosca.
DANI VIDAL e NEY MADEIRA
respondem por dois elementos delicados e que funcionam muito a contento nesta
montagem: cenografia,
aconchegante e harmoniosa, e um interessante figurino, um vestido com trechos das letras de algumas canções
de CHICO nele bordadas. O mesmo se aplica ao discreto desenho de luz, criado por PAULO
CESAR MEDEIROS.
Como é bom ouvir as pérolas do repertório de CHICO BUARQUE executadas de forma tão diferente das gravações originais, fruto de um minucioso e criativo trabalho de arranjos, dentro da proposta de direção musical, pela qual MARCELO ALONSO NEVES é o responsável. Cabe, aqui, sem a menor sombra de dúvida, um veemente elogio a JOÃO BITTENCOURT, que acompanha KELZY ECARD, ao piano, em todas as canções executadas ao vivo. Exímio instrumentista, como o é JOÃO, não bastaria para o brilho desses números musicais. Era preciso, também, uma excessiva dose de sensibilidade, o que não falta ao músico.
E chegamos a ela, KELZY ECARD, a grande intérprete da personagem Norma Aparecida. Hoje, é bastante
conhecida e aplaudida, por seu trabalho popularizado pela TV, em novelas e
séries, contudo, quando “MEU CARO
AMIGO” estreou, em 2010,
só os “habitués” do TEATRO, como eu, eram capazes de se
dispor a assistir a uma peça porque o nome da atriz constava na FICHA TÉCNICA, a despeito de ela já
ter, até então, dedicado alguns anos de sua vida à nobre arte de representar. Quem
já conhecia seu trabalho nos palcos saía do Teatro em estado de graça, o que se tornou normal hoje, porém os
que a estavam vendo pela primeira vez, não escondiam a vontade de voltar a
vê-la num palco. E assim KELZY foi construindo uma fértil carreira de
atriz, cada vez mais, conquistando novos admiradores de seu trabalho. É uma das minhas atrizes preferidas. De todos os seus trabalhos que me arrebataram, é impossível esquecer a
sua participação em espetáculos teatrais como “Eu, Moby Dick”, “Tom
na Fazenda”, “Por Amor ao Mundo – Um Encontro com Hannah
Arendt”, “Desalinho”, “Incêndios” e “Rasga Coração”. Na televisão,
chamou a atenção pelos trabalhos desenvolvido nas novelas “Segundo Sol”, “Éramos
Seis” e “Todas as Flores”.
Em
“MEU CARO AMIGO”, KELZY
não se revela uma “cantora”, mas uma estupenda atriz que canta; e canta
bem, muito mais com a alma do que com a voz, a despeito de ser afinada, atingir
altas notas e dominar a técnica do falsete. Mergulha, de cabeça, nas interpretações,
com muita garra e, acima de tudo, com a alma. Canta sem esforço,
suavemente, e emite cada palavra dos versos das canções de CHICO com muito cuidado, leveza, clareza e, acima de tudo, repito,
com a alma, e o coração também. É um deleite ouvi-la cantando.
FICHA TÉCNICA:
Idealização: Kelzy Ecard
Texto: Felipe Barenco
Direção Artística: Joana Lebreiro
Direção Musical: Marcelo Alonso Neves
Intérprete: Kelzy Ecard
Pianista: João Bittencourt
Cenografia e Figurino: Espetacular Produções e Artes – Dani
Vidal e Ney Madeira
Cenógrafo Assistente: Vinícius Lugon
Iluminação: Paulo Cesar Medeiros
“Designer”
Gráfico: Felipe
Ribeiro
Fotografia: Renato Mangolin
Projeções: Leonardo Miranda
Preparação Vocal: Pedro Lima
Operadora de Luz: Yasmim Lira
Operador de Som: Thiago Silva
Contrarregra: Nilvan Santos
Costureira: Selma Franklin
Assessoria de Imprensa: Rachel Almeida – Racca Comunicação
Direção de Produção: Felipe Barenco – TF Produções
Produção Executiva: Paula Alexander
Coordenação do Projeto: Felipe Barenco, Joana Lebreiro e
Kelzy Ecard
Realização: FIRJAN SESI
SERVIÇO:
Temporada: De 20 de janeiro a 25 de fevereiro de 2025.
Local: Teatro Firjan
SESI Centro.
Endereço: Avenida Graça Aranha, nº 1 – Centro - Rio de
Janeiro.
Telefones: (21) 2563-4168 e (21) 2563-4163.
Dias e Horários: 2ª e 3ª feira, às 19h.
Valor dos Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia-entrada).
Venda de
ingressos: Sympla: https://bileto.sympla.com.br/event/101291/d/292428 (com taxa de conveniência) e na bilheteria do Teatro
(sem taxa de conveniência).
Horário de funcionamento da Bilheteria: De 2ª e 6ª
feira, das 12h às 19h; sábados, domingos e feriados, a partir de 2h antes do evento.
Lotação: 338 lugares.
Duração: 80 minutos.
Classificação Etária: 12 anos.
Gênero: Monólogo
Musical.
Tenho certeza de que, das
mais de 300 pessoas que lotavam o Teatro Firjan SESI Centro, na noite
de ontem (11 de fevereiro de 2025), numa terça-feira, e que cantaram,
juntas, com a atriz e a aplaudiram à farta, muitas ainda voltarão, para rever o
espetáculo, levando outras. Não o farei, por falta de oportunidade e por já ter
assistido ao monólogo por quatro vezes, porém não é por falta de desejo de
fazê-lo. RECOMENDO, SEM PESTANEJAR, O ESPETÁCULO!
FOTOS: RENATO
MANGOLIN
GALERIA PARTICULAR
(Fotos: Gilberto Bartholo
e Ana Cláudia Matos.)
É preciso ir
ao TEATRO, ocupar todas as salas de espetáculo, visto que a arte educa e constrói, sempre; e salva.
Faz-se necessário resistir sempre mais. Compartilhem esta crítica, para que, juntos,
possamos divulgar o que há de melhor no TEATRO brasileiro!
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