LAURA
(INTIMIDADE ESCANCARADA.
ou
ASSIM SE DEMONSTRA O AMOR.)
Há
certas coisas estranhas, quase inexplicáveis, que só acontecem comigo. Como
pode eu, que assisto a mais de trezentos espetáculos teatrais, por ano, que
revejo determinadas peças algumas vezes, que vou ao TEATRO diariamente, com “folga” de um dia, ou dois, na semana, o
que ocorre raramente, que faço questão de ir a qualquer lugar, por mais
distante e de acesso difícil que seja, para ver TEATRO, que não me interesso se, no elenco, há celebridades ou principiantes, ilustres desconhecidos,
não ter visto, ainda, uma peça – ótima
peça – que já está em cartaz há mais de quatro anos, cumprindo a quinta
temporada, no Rio de Janeiro?
O
espetáculo em questão é um solo, interpretado pelo ator FABRICIO MOSER, idealizador do projeto, autor do texto e seu próprio diretor,
encerrando temporada, na Sala Baden
Powell (Sala Espelho), em poucos dias (VER
SERVIÇO.). Chama-se “LAURA”.
Apenas
por curiosidade, o título da peça me
traz boas recordações, já que o monólogo
é sobre lembranças e evocações do passado. As minhas reminiscências são
representadas por duas canções com esse mesmo título. A primeira é um
samba-canção de Braguinha (João de
Barro) e Alcyr Pires Vermelho,
gravação de Cauby Peixoto e outros cantores, que meu pai, Oswaldo, cantava, muito bem, por sinal,
quase todas as noites, para que eu e meus irmãos dormíssemos (“Um
vale em flor, a fonte, o rio cantando / O sol banhando a estrada, frases de
amor / Laura, um sorriso de criança / Laura, nos cabelos uma flor / Laura, como
é linda a vida! / Laura, Como é grande o amor!”). A outra foi uma descoberta
minha, já rapaz, no auge de uma paixonite. É uma canção norte-americana,
composta por David Raksin e Johnny Mercer, gravada, lindamente, por
Frank Sinatra (“Laura is the face in the misty
lights / Footsteps that you hear down the hall / The
(love) that floats on a summer night / That you can never quite recall”).
Depois
dessa “sessão nostalgia”, mas que me fez, e faz, tão bem, falarei, brevemente,
sobre o espetáculo, ao qual assisti na última 2ª feira (20 de agosto de 2018).
Em
primeiro lugar, quero agradecer ao meu amigo Rafael Teixeira, grande conhecedor do que é o BOM TEATRO e de gosto refinado, por ter-me feito a indicação e um
convite para assistir ao espetáculo.
A
montagem é uma feliz criação do ator
e diretor FABRICIO MOSER. Trata-se de um solo
autobiográfico, por meio do qual FABRICIO
presta uma linda homenagem à sua avó materna, a VÓ LAURA.
SINOPSE:
LAURA, personagem-título
da peça e avó de FABRICIO MOSER, foi morta, a tiros,
numa tarde, em 1982, no meio de uma
rua, em Cruz Alta, interior do Rio Grande do Sul, por um desafeto
amoroso, de apelido Candoca, o qual,
em seguida, se suicidou. Não há uma precisão quanto à sua idade, quando do crime.
Talvez, por ter sido registrada incorretamente, o que, até hoje, é comum, no
interior, a idade oscila entre 56 e 66
anos.
Ela estava fazendo algo de que muito gostava: dançava num baile para a
terceira idade.
FABRICIO, seu neto, nascido em 1981, em Dourados, Mato Grosso do Sul, tinha nove meses,
na época da tragédia, e não pôde conviver com a avó materna.
O trauma, ocasionado pela forma como LAURA morreu, provocou o seu afastamento do convívio familiar,
sobre a sua história de vida. Estabeleceu-se um vazio existencial e raras
lembranças. Ninguém falava dela. Fora enterrada totalmente, o corpo e tudo o
que pudesse lembrá-la.
FABRICIO mora no Rio
de Janeiro, desde 2009. Após a
morte dos seus pais, em um acidente trágico, em 2014, decidiu criar a peça
autobiográfica, para homenagear a falecida, ao mesmo tempo que isso poderia
servir para um mergulho no seu passado, que o levasse a se autoconhecer melhor,
utilizando as suas descobertas, em pesquisas, que foram da reunião de fotos e
documentos até entrevistas com familiares, amigos e conhecidos de LAURA, que testemunharam o crime ou
estiveram próximos a ele.
Um resgate de uma vida ceifada.
O espetáculo vem cumprindo uma bela carreira, em várias temporadas,
desde 2014, no Rio de Janeiro e fora do estado, tendo sido apresentado, sempre com
grande sucesso, em São Paulo, Belo Horizonte, Campo Grande e Dourados.
Curiosamente, a peça não foi, ainda,
encenada em Cruz Alta, o que é um
desejo do multiartista.
Em cena, memórias, concretas,
presentes nos objetos reunidos num interessante cenário/instalação, criado pelo próprio FABRICIO e que se encontra à disposição do público, para manuseio e
uma observação mais acurada de todas as peças exibidas, assim como nas imagens projetadas, e nas canções que fazem parte de uma
interessante trilha sonora, ao que
tudo indica, já que não consta na ficha
técnica, escolhida por FABRICIO.
Além disso, há as histórias, a narração de fatos que marcaram a vida do ator, de LAURA, principalmente – é óbvio, e de outros personagens coadjuvantes.
Com essa montagem, utilizando uma dramaturgia
“sui generis” e bastante criativa, que varia de espetáculo para espetáculo,
a partir de determinadas escolhas, feitas pela maioria dos presentes a cada
sessão, assistimos a um jogo afetivo que envolve o ator, o público e todos os citados na peça,
escancarando-se uma intimidade contagiante e despertando, em cada espectador,
interesses particulares por detalhes da vida de LAURA e de FABRICIO, de
uma relação que, praticamente não existiu, enquanto ela viveu, mas que instigou
tanto o neto, que o perseguiu, até ele ter atingido uma catarse, dando forma a
um antigo desejo, que era “criar uma
peça sobre a minha avó”, ainda que sob a não aprovação de uma de suas tias,
de cujo nome, revelado na peça, não me recordo. Esse desejo surgiu, depois de
uma conversa de FABRICIO com sua
mãe, que lhe deu permissão para fazê-lo, entretanto, infelizmente, não teve a
oportunidade de ver a história da família encenada, já que morreu 21 dias após essa conversa.
Desde o momento em que o ator recebe o público, num corredor,
que dá acesso ao espaço em que a encenação
acontece, começa a se formar uma cumplicidade
entre palco e plateia. E todos se colocam à disposição de FABRICIO, para tentar entender e
descobrir “O que há das avós em nós?, pergunta que, em determinado
momento da peça, é feita,
diretamente, ao público. Surgem depoimentos muito interessantes, no mesmo nível
do que o ator já traz pronto,
escrito e decorado.
Ainda bem que ele não me perguntou,
diretamente, sobre a(s) minha(s) avó(s), pois foi um momento tenso, para mim,
durante a peça, já que,
infelizmente, não guardo boas recordações das duas, com as quais jamais pude
manter uma relação de amor e cordialidade; fazendo uso de um eufemismo, por
seus gênios difíceis, o que as faziam eleger determinados netos, dois ou três,
dentre vários, desprezando os demais. É uma mágoa que carregarei até o final da
minha vida, infelizmente.
“LAURA”
é um espetáculo muito rico, que
mistura linguagens, como TEATRO, cinema, expressão corporal,
dança, para tentar mostrar quem foi,
de verdade, aquela figura, ausente, de corpo, mas tão presente, de alma, na
vida de FABRICIO MOSER. É por seu
talento que conhecemos algumas facetas de LAURA,
como, por exemplo, a benzedeira, que curava de um tudo, e a cartomante, que
levara esperanças e ilusões, ou trágicas previsões, aos que acreditavam nas
suas “verdades”.
Na sua garimpagem, para chegar a LAURA / “LAURA”, FABRICIO descobriu pontos comuns entre ele e a avó, como o gosto pelas artes, principalmente a dança, como lazer, e o artesanato (LAURA confeccionava coroas, com latas de óleo, para decorar os enterros e o cemitério da pequena cidade de Cruz Alta).
Em
entrevistas, o ator confessa ter
passado por um doloroso processo de interiorização das coisas sobre LAURA, sofreu bastante, para criar o espetáculo, contudo valeu a pena,
porque isso, hoje, representa algo de muito bom, para toda a família, a qual
aprendeu a lidar com a dor da perda da matriarca.
A
peça é interativa, sem que ninguém se sinta na obrigação de participar
dela, como ser actante. Todas as participações do público são bem espontâneas,
interessantes e enriquecedoras. Dá, até, a impressão de uma sessão de
psicanálise de grupo, quando todos têm a oportunidade de exorcizar algum
fantasma, no momento em que são convidados a relatar algum fato doloroso de que
tenham sido alvo direto ou de que tenham conhecimento. Aqui vai a intenção do ator, na transcrição de suas palavras: “A
ideia é, justamente, encorajar as pessoas a contarem sobre suas tragédias e
inverter a questão trágica da coisa. Muitas tragédias são silenciadas dentro
das próprias famílias.”.
Dentre
tantos pontos positivos, o espetáculo
é mais um espaço para uma reflexão e discussão de um assunto tão em voga, infelizmente,
e que precisa ser mais e mais, ainda, discutido, que é a questão do feminicídio. LAURA foi assassinada por um homem que a queria só para si, como se
ela fosse um objeto que lhe pertencesse. Com toda certeza, ele nem a amou tanto,
como alardeava, mas seu machismo o
levou ao limite inaceitável de pôr fim a uma vida humana, a matar alguém que
não lhe correspondia o suposto amor. É o
próprio FABRICIO quem, com outras
palavras, diz, na peça: “Ele
dizia que ela não seria de mais nenhum homem. Tenho relatos de seus familiares,
dizendo que tentavam tirar essa ideia da cabeça dele [de que Laura era sua
propriedade], mas ele insistia em que iria matá-la”.
Para
dar forma ao espetáculo, o dramaturgo foi buscar a colaboração artística de alguns amigos:
ANA PAULA BRASIL, CADU CINELLI, FRANCISCO TAUNAY, GABRIELA
LÍRIO, NATHÁLIA MELLO e RAFAEL CAL.
Em
entrevista ao “site” “Botequim Cultural”,
do meu amigo Renato Mello, a quem
peço licença para reproduzir um trecho, FABRÍCIO,
ao ser perguntado sobre “quem era LAURA”,
para ele, respondeu: “LAURA é alguém que tem meu
sangue e que, como não pude conhecer pessoalmente, estou conhecendo um pouco, a
cada noite, através do encontro que o TEATRO proporciona. Sem dúvida, descobri
que ela foi como uma bruxa: fazia chás, xaropes e benzimentos, que curavam as
pessoas. Como mulher, teve uma vida difícil e, por ter decidido viver da forma
como sentia vontade e partir em busca da sua felicidade, representou uma
afronta a uma sociedade machista, como a de uma cidade antiga e pequena, do
interior do Rio Grande do Sul, pagando, com a morte, por sua ousadia. Por
mulheres como ela é que devemos seguir lutando e transformando a nossa
sociedade, tão desigual, em uma comunidade mais justa e afetuosa.”.
É bem restrita a ficha
técnica do espetáculo:
FICHA TÉCNICA:
Criação, Dramaturgia, Direção e Atuação: Fabricio Moser
Colaboração Artística: Ana Paula Brasil, Cadu Cinelli, Francisco Taunay, Gabriela Lírio, Nathália Mello e Rafael Cal
Assistência de Produção e de Palco: Ricardo Martins e Eduardo Almeida
Programação Visual: Bruno Morais
SERVIÇO:
Temporada: De 04 a 27 de agosto de 2018.
Local: Sala Municipal Baden Powell (Sala Espelho).
Endereço: Avenida Nossa Senhora de Copacabana, 360, Copacabana – Rio de
Janeiro.
Dias e Horários: Sábados, domingos e 2ªs feiras, às 19h.
Valor dos Ingressos: R$40,00 (inteira) e R$20,00 (meia entrada)
Capacidade: 40 pessoas
Classificação Etária: 16 anos
Duração: 80 minutos
Dias e Horários: Sábados, domingos e 2ªs feiras, às 19h.
Valor dos Ingressos: R$40,00 (inteira) e R$20,00 (meia entrada)
Capacidade: 40 pessoas
Classificação Etária: 16 anos
Duração: 80 minutos
Gênero: Solo Dramático
O espetáculo é comovente, ao mesmo tempo
que alegre e descontraído. Quase uma celebração. Cada espectador se sente como
um amigo de infância do ator, numa
"intimidade" que vai sendo construída antes mesmo de a peça começar.
É muito
interessante a concepção cênica e
fabuloso o trabalho de ator de FABRICIO MOSER, num belo trabalho de corpo
e voz, que envolve a plateia de uma
tal forma, que viramos 41 atores em cena:
ele e mais os 40 espectadores, o
máximo que cabe naquela sala.
Recomendo muito o espetáculo, na
certeza de que os que aceitarem a minha indicação haverão de me agradecer por
ela.
E VAMOS AO TEATRO!!!
OCUPEMOS TODAS AS SALAS DE
ESPETÁCULO DO BRASIL!!!
COMPARTILHEM ESTA CRÍTICA,
PARA QUE, JUNTOS, POSSAMOS DIVULGAR O QUE HÁ DE MELHOR NO TEATRO BRASILEIRO!!!
(FOTOS: KAREN FREITAS,
LEO PARDO,
RAIQUE MOURA,
RICARDO MARTINS
e
ARQUIVOS PESSOAIS.)
LEO PARDO,
RAIQUE MOURA,
RICARDO MARTINS
e
ARQUIVOS PESSOAIS.)
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