quarta-feira, 12 de julho de 2017


FAUNA

 

(UMA AMBIGUIDADE PROPOSITAL,

QUE INSTIGA E DESAFIA.

ou

A LINHA TÊNUE

ENTRE O QUE É

E O QUE PARECE SER.)



 
 
 

            Está em cartaz, já em final de uma curta temporada, infelizmente, no Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF) (VER SERVIÇO.), um espetáculo muito interessante, que merecia ser visto por um grande número de espectadores, por várias particularidades, a começar pela riqueza de seu texto. Falo de “FAUNA”.

            A peça, bem recente e atual, é a terceira escrita, em 2013, por ROMINA PAULA, uma destacada dramaturga argentina moderna. A tradução é de HUGO MADER.

            A propósito, a dramaturgia do país vizinho parece estar em alta, a julgar por excelentes peças de lá, que têm chegado até nós, descobertas por atores, diretores e produtores brasileiros, os quais vão à fonte e trazem-nas para o nosso deleite.

            O texto aqui em pauta, segundo o “release”, enviado pela assessoria de imprensa (DANIELA CAVALCANTTI) “é um ensaio sobre a representação, o lugar da arte na vida e vice-versa. Metalinguagem. Uma homenagem, ainda que melancólica, ao TEATRO. Uma reflexão sobre a relação e as fronteiras entre arte e vida, ficção e realidade. Ao longo da trama, confundem-se a história sobre a pesquisa para a realização de um filme e a história das relações entre os personagens, provocando, no espectador, múltiplas interpretações. O que é real? O que é representação?”
 
 


Talvez aí resida o grande mérito do texto: o desafio, ao espectador, para uma viagem provocadora, cheia de surpresas, com uma novidade, um fato inesperado e ambíguo, a cada curva.

            Prossegue o “release”: “Com essa mesma sutileza, ‘FAUNA’ questiona a condição do feminino e do ser mulher, suas fraquezas, seus artifícios, seu lugar na sociedade. Questões sobre gênero, orientação sexual, o lugar da mulher na esfera pública e o papel da maternidade na vida de uma mulher.



 


 

 
SINOPSE:
 
O texto conta a história de um cineasta, JOSÉ LUIZ (EDUARDO MOSCOVIS) e uma atriz, JÚLIA (ERIKA MADER), que vão ao campo, pesquisar o mito de FAUNA, uma espécie de amazona, culta e selvagem, para fazer um filme de ficção sobre ela.
 
Lá, recebem a ajuda de MARIA LUÍSA (KELZI ECARD) e SANTOS (EROM CORDEIRO), filhos de FAUNA, os quais se encarregam de apresentá-los à figura de sua mãe.
 
Os quatro personagens ensaiam para o filme e discutem a importância, ou não, da representação desta realidade.
 
À medida que o tempo passa, os personagens vão se revelando, como se a exposição à ficção, em vez de protegê-los, os expusesse ainda mais.
 


 
 


            FAUNA é a protagonista invisível, uma amazona intelectual, não materializada, no palco, mas que é a razão da existência da trama, em torno da qual tudo gira, e está presente, da primeira à última cena, fazendo mover toda a ação e, consequentemente, servindo, dramaturgicamente, ao desenvolvimento do roteiro.

Aliás, no que se refere à questão de se estabelecer quem exerce a função de protagonista, na peça, podemos dizer que, além da própria FAUNA, todos os outros quatro o são, cada um a tentar descobrir um caminho e explicações diferentes sobre o sentido da vida e outras coisas.

Sua presença está registrada sob a forma de memórias e escritos, e a personagem de sua filha, MARIA LUÍSA (KELZY ECARD), parece ser uma extensão ou perpetuação, ainda que com limites, de sua passagem por este mundo. Mesmo sem conhecê-la, conseguimos “vê-la” no corpo da filha, em certos momentos, quer por algumas atitudes, quer por determinados pensamentos e ideias defendidas pela personagem.

FAUNA, na descrição de MARIA LUÍSA, era de uma personalidade muito forte, transgressora, subversiva, contestadora, muito culta e dedicada aos estudos literários, a ponto de se disfarçar de homem, com o objetivo de fazer um curso superior e frequentar ambientes restritos ao universo masculino. Costumava impor-se, desafiadoramente, ao marido, que a abandonara, sempre que, por descuido, cruzava com este. Simplesmente, ignorava-o. Até que ponto isso tudo era verdade ou fruto de uma idealização mítica de MARIA LUÍSA cabe ao espectador julgar, o que não é uma tarefa muito fácil. Para mim, pelo menos, não o foi. Voltei para casa com a cabeça povoada de dúvidas e nem percebi o tempo passar, na longa viagem de metrô, da Cinelândia à Barra da Tijuca, absorto em meus pensamentos e devaneios, à procura de respostas.
 




Embora já seja um tanto quanto lugar-comum a presença de metalinguagem numa obra teatral, tal fato não me incomoda, quando isso é bem feito, o que se dá em “FAUNA”. Para a direção, considero um bom desafio, um teste de eficiência, que ERIKA MADER e MARCELO GRABOWSKY realizam com bastante propriedade e competência. A fusão das duas linguagens, caminhando paralelamente, porém focadas no viés teatral, está muito bem resolvida.
Muitos aspectos me chamaram a atenção, positivamente, neste espetáculo, desde o início. Talvez muitas pessoas possam não ter alcançado uma das intenções da dramaturga, porém ela me pareceu muito clara, logo na primeira cena, quando ERIKA MADER, na pele de JÚLIA, uma atriz, lê uma poesia, de Rilke, que ela gostaria de que fizesse parte do texto do filme, porém o faz de forma “estereotipada”, artificial”, “quadradinha”, com pausas ao final de cada verso, o que torna a leitura ridícula e inexpressiva.
 
 


Esse mesmo texto é, em seguida, lido pela personagem MARIA LUÍSA, que “sabe ler poesia”, sem o vício das referidas pausas, e ensina àquela como fazê-lo. Ela lê o texto corridamente, como se prosa fosse (Percebe-se ser um poema, por conta da sucessão rítmica, de sílabas fortes e fracas.), e isso faz com que o seu conteúdo ganhe compreensão, sentido.
Vejo essa cena como uma metáfora referente às várias formas de se perceber o mundo, de acordo com a leitura, seja ela baseada em que interesse for. Muito interessante a cena e a proposta.
A ideia de fazer um filme sobre a misteriosa personagem, não ficcional, mas um documentário (aí surge uma discussão) foi de JÚLIA, que era amante de JOSÉ LUIZ e o convenceu a “comprar” o seu projeto, embora houvesse muitas discordâncias, entre os dois, quanto ao trabalho.
Pareceu-me, ainda que, do ponto de vista lógico, meio estranho, porém não impossível, aproveitar um dos filhos de FAUNA, morador do campo, sem formação em representação dramática, como ator, no filme, SANTOS, personagem extremamente “chucro”, quase um ogro, sensacionalmente interpretado por um dos nossos melhores atores, em todas as mídias, EROM CORDEIRO, um profissional que valoriza e dignifica qualquer personagem que lhe caia às mãos.
E já que estou falando em EROM, passemos logo a comentar a atuação do afinadíssimo elenco, continuando a falar dele.
 

O elenco.
 
Como grande admirador de seu trabalho, causou-me certa ansiedade vê-lo participar da peça, uma vez que passa boa parte do tempo inicial do espetáculo sentado, no palco, porém fora da área de atuação, o que, a meu juízo, vai ajudando a construir uma expectativa quanto à sua participação na trama. Desde que começa a atuar, de verdade, já hipnotiza o público, com sua presença marcante e com a força de seu personagem, um bronco, avesso ao contato social, que traz, em sua personalidade, o lado guerreiro e selvagem da mãe, contrastando com a face intelectualizada,  presente na irmã.

Há um grande choque cultural entre os dois, um contraste que forma um belo contraponto entre os dois personagens. É com SANTOS que se constrói o ruir das relações, quando estas começam a se encaminhar. Ele é o personagem maior responsável por puxar o foco para as dúvidas e ambiguidades relacionadas às oposições realidade/ficção, verdade/mentira, ser/parecer...
Sua participação, como ator, no filme, desde os ensaios, chega a ser hilária, por conta de sua incapacidade de representar, até mesmo de ler o texto, como deveria fazê-lo, o que, depois, se transforma, radicalmente, sem uma explicação plausível (pelo menos, para mim). Seria mais uma “pegadinha” do texto? Seria ele um ator inato?
 
Erom Cordeiro.

Sobre KELZY ECARD, já se tornou um lugar-comum, nas minhas resenhas críticas, dizer que se trata de uma diva do TEATRO BRASILEIRO. Acompanho sua trajetória, desde seus passos iniciais, e jamais a vi fazer algo que não fosse, no mínimo, bom. Geralmente, a sua qualificação oscila entre ótima, magnífica, surpreendente, fantástica, sensacional...
Uma “operária” do TEATRO, no melhor sentido da expressão, costuma emendar um trabalho no outro, quando não executa dois, simultaneamente. E, quase sempre, defende personagens fortes, que exigem um grande desgaste, físico e emocional, da atriz, o que ela tira de letra. Não é diferente, em “FAUNA”.
Sua personagem é tão enigmática quanto o irmão e a própria mãe. Demonstra um grande orgulho desta, seguindo-lhe os passos, quanto ao aspecto cultural. Disposta a colaborar, para o roteiro do filme, pareceu-me, por outro lado, tentar resguardar detalhes da intimidade da mãe, por algum motivo que não consegui atingir. É letrada e de bons modos, o que não se coaduna com o ambiente rústico em que vive. É algo quase que incompreensível; mais um questionamento para o público. Sem dúvida, um grande trabalho para o currículo de KELZY.
 
Kelzy Ecard.


EROM e KELZY ganham um destaque, na trama, por força de seus personagens, contudo, com relação ao talento profissional e à atuação, neste espetáculo, tanto EDUARDO MOSCOVIS quanto ERIKA MADER também merecem muitos aplausos, ambos em atuações tão naturais, que parecem não estar representando. Funciona muito bem a química entre os dois, a relação entre os personagens.
MOSCOVIS é um ator tarimbado, versátil e defende seu personagem, o cineasta JOSÉ LUIZ, com muita garra e competência. Apesar de casado, é apaixonado por JÚLIA, é seu amante e se deixa envolver por ela, a ponto de topar viajar para ao campo, com o propósito de realizar o sonho da amada, de fazer um filme sobre FAUNA, porém não consegue se aproximar da atriz, durante a pesquisa para o filme, uma vez que esta se encontra dedicada, “full time”, ao propósito da realização da película.
Vi, nessa “rejeição”, a possibilidade de ela ter usado o seu poder de sedução, para atingir um objetivo, não correspondendo, na verdade, aos sentimentos de JOSÉ LUIZ. EDUARDO MOSCOVIS executa, com perfeição, seu papel, mais um grande trabalho na sua carreira.

Eduardo Moscovis.
 

ERIKA MADER, JÚLIA, a atriz, é fascinada pelo mito de FAUNA, sem que a razão para isso fique muito bem clara na peça. Seria mais um exercício de imaginação e criatividade para o espectador. Tal admiração levou-a a uma obsessão, praticamente, por viver, na tela, a personagem mítica, não se importando com o que aquilo lhe custasse. ERIKA também, neste espetáculo, apresenta-se com uma técnica naturalista de representação, que muito me encantou, sem falar no contraste que tão bem soube representar, da mocinha da cidade, atriz famosa, em busca de um laboratório, para a sua nova personagem, contando com uma “coacher” natural, que seria MARIA LUÍSA. Muito bom o seu trabalho.
 
Erika Mader.

Para que a peça, que já conta com um excelente texto, interpretado por um elenco de primeira linha, ganhasse uma boa qualificação, outros elementos, técnicos, de valor, foram agregados à montagem, como o ótimo cenário, simples e convincente, de FERNANDO MELLO DA COSTA, que se resume a um palco coberto de feno, alguns refletores, distribuídos no espaço cênico, e uns bancos rústicos, formando um grande contraste entre o natural e o artificial, entre o ambiente rural e o urbano.
 
Cenário (Foto pessoal.)


            RENATO MACHADO, como sempre, dá a sua excelente contribuição, na luz. Desta vez, tira partido dos refletores em cena e usa menos a outra iluminação, criando, de propósito, creio, alguns espaços de sombra, necessários a algumas cenas.

ANTÔNIO GUEDES assina os figurinos, simples e completamente a serviço dos personagens e do texto. São peças do dia a dia, com um detalhe interessante para as vestes masculinas, peças que pertenciam à FAUNA, que a personagem JÚLIA resolve usar, nos ensaios, com o objetivo de tentar se sentir mais FAUNA.

Para completar a equipe técnica, mais um brilhante trabalho de direção musical, de MARCELO H., um dos melhores profissionais do ramo, que está em plena atividade criativa, neste primeiro semestre de 2017, durante o qual realizou quatro ou cinco trabalhos na sua área, cada um melhor que o outro, já com indicações a prêmios.

 

 

 

 
FICHA TÉCNICA:
 
Texto: Romina Paula
Tradução: Hugo Mader
Direção: Erika Mader e Marcelo Grabowsky
Assistência de Direção: Luciana Novak

Elenco: Eduardo Moscovis, Erika Mader, Erom Cordeiro e Kelzy Ecard
 
Luz: Renato Machado
Cenário: Fernando Mello da Costa
Figurino: Antônio Guedes
Direção de Movimento: Toni Rodrigues
Direção Musical: Marcello H.
Programação Visual: Luiza Chamma
Fotografia: Bruno Machado (estúdio) e Bruno Mello (de cena)
Direção de Produção: Erika Mader
Produção Executiva: Marcela Büll
Assistente de Produção: Ramon Alcântara
Administração Financeira: Alan Isidio
Diretor de Palco: Tarso Gentil
Contrarregra: Adanilo Reis
Operador de Som: Leandro Bacellar
Operador de Luz: Ramon Alcântara
Assistente de Figurino: Renata Mota
Bilheteria: Waldivia Juncken
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Consultoria: Cristiana Giustino
Realização: Auch Produções
 

 
 

 
 

 
SERVIÇO:
 
Temporada: De 16 de junho a 16 de julho de 2017.
Local: Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF).
Endereço: Av. Rio Branco, 241 – Cinelândia - Centro – Rio de Janeiro.
Telefone: (21) 3261-2550.
Dias e Horário: De quarta-feira a domingo, às 19h.
Horário de Funcionamento da Bilheteria: De quarta-feira a domingo, das 16h às 19h.
Contato: (21) 3261-2565
Lotação: 141 lugares.
Duração do Espetáculo: 80 minutos
Preço: R$40,00 (inteira) e R$20,00 (meia entrada).
Classificação Indicativa: 14 anos.
 



 

 

            Para finalizar esta apreciação sobre “FAUNA”, não me sentiria confortável se deixasse de fazer um único comentário sobre o espetáculo, que não o desabona, de modo algum, mas cujo propósito da dramaturga não consegui alcançar. Certamente, por deficiência de minha parte.

            É que, em dois momentos, a questão da homossexualidade surge na trama. Primeiro, JÚLIA revela a MARIA LUÍSA uma atração sexual por ela, mas esta não cede. Depois, é a vez do bronco e, supostamente, “machão” SANTOS se declarar a JOSÉ LUIZ, vindo a ser consumado um beijo entre os dois.

            Não consegui entender como e por que as duas demonstrações de atração física se deram; mais a de SANTOS que a de JÚLIA.

            Isso, porém, talvez seja algo que, para eu entender, ainda precisarei de muitas viagens de metrô, da Cinelândia à Barra da Tijuca e vice-versa, ou, talvez, outras, ao redor da Terra, o que, em nada, desvaloriza a peça, a qual eu recomendo com bastante empenho, lembrando que é necessário disposição para pensar sobre ela.

  

 (FOTOS: BRUNO MACHADO – estúdio-

e BRUNO MELLO - cena.)
 
 
 


GALERIA PARTICULAR
(FOTOS DE GILBERTO BARTHOLO.)

 

Aplausos.

 
 
Com Erom Cordeiro, Erika Mader, Kelzy Ecard e Eduardo Moscovis.
 

 

 



 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



 

 
 

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