terça-feira, 18 de julho de 2017


DOIS

AMORES

E

UM BICHO

 
(TEXTO DENSO,
PARA PÔR À PROVA
A RESISTÊNCIA EMOCIONAL
DO ESPECTADOR.)

 

 

 
            Em agosto de 2014, assisti, duas vezes, a uma outra montagem desta peça, no Galpão das Artes do Teatro Tom Jobim, dentro do Jardim Botânico. E por que o fiz? Por que repeti a dose? Porque gostei muito da montagem, mas fiquei, na verdade, encantado com a força do texto.

            Atualmente, o espetáculo ganhou uma nova versão, tão boa quanto a anterior (na verdade, um pouco melhor), em cartaz na Sala Multiuso do SESC Copacabana (VER SERVIÇO.)

            Escrevi uma crítica sobre ela, publicada no dia 3 de agosto daquele ano. Volto a fazê-lo. A parte que se refere ao texto será, mais ou menos, repetida, uma vez que não haveria como ser diferente. O que, aqui, haverá, de novo, são os comentários técnicos sobre a montagem atual.
 
 


Para mim, um espetáculo é bom, quando saio do Teatro feliz, tocado, seja de que gênero for a peça, e com vontade de ligar, imediatamente, para todos os meus amigos (o custo seria alto), recomendando-lhes aquilo que tanto me agradou.  Sempre fui assim. Se gosto de um espetáculo teatral, de um filme, de um livro, de um disco, não sossego, enquanto não conseguir fazer com que as pessoas que me são muito caras possam compartilhar comigo o prazer daquela “degustação”. Os que me são chegados sabem disso.

            Foi o que aconteceu, mais uma vez, quando deixei o SESC Copacabana, na noite da última 6ª feira, 15 de julho de 2017.

            O nome da peça é “DOIS AMORES E UM BICHO”, escrita em 2001, de um ótimo e premiado autor venezuelano, GUSTAVO OTT, pela primeira vez encenado em palcos brasileiros, naquela primeira montagem.

            Procurarei ser breve, na justificativa para tanta empolgação por essa peça. A leitura de uma simples sinopse do texto já é motivo para atrair o espectador ao Teatro.  É instigante e abre um leque de expectativas, para quem se propõe a assistir ao espetáculo.

            Aqui, publico uma sinopse em “quatro versões”, acrescida de alguns comentários:

 
 


 
SINOPSE:
 
1 - Num zoológico, um orangotango maltratado chama a atenção de uma família, que, a partir daí, relembra um episódio traumático do passado. (Mais instigante é impossível! Economia de palavras, provocando interesse e alimentando a curiosidade. O porquê dos maus-tratos? Que “episódio do passado” teria uma relação com um orangotango maltratado num zoológico?)
 
2 - Uma família está entretida num zoológico. Isolado, em sua jaula, um orangotango chama a atenção. O bicho fora colocado em quarentena, por ter molestado outro macaco. O motivo leva CAROL (JULIE WEIN), veterinária do zoológico, a se lembrar do episódio que levou o pai, PABLO ESTEFANO (LUCAS GOUVÊA / JOSÉ KARINI), à prisão, quando ela era criança. Ele matara o cachorro da família. (Mais detalhes instigantes. O verbo “molestar” apresenta dezenas - isso mesmo - de significados. Por qual deles o pobre orangotango teria sido responsável? Que razão teria levado o pai da veterinária a matar o cachorro da família e que relação isso teria com a molestação do animal enjaulado a um outro bicho do zoológico?)
 
3 - DOIS AMORES E UM BICHO foi adaptado do texto do venezuelano GUSTAVO OTT. No espetáculo, o público é convidado à sala de estar de uma adorável família, às voltas com crimes do passado e do presente. Em meio a um jogo perverso e patético, eles encenam e revivem o passado, investigando os motivos que levaram PABLO, o pai, a espancar um cachorro, até a morte, há 15 anos. No presente, novos assassinatos de animais começam a ocorrer em um zoológico das redondezas. Os crimes teriam ligação?! (Agora, é para levar o leitor da sinopse a largar tudo o que está fazendo e correr ao Teatro. Crimes do passado e do presente? A forma como PABLO matou o cão foi por espancamento (pontapés), e há 15 anos? Mortes sucessivas de animais no zoológico? Assassinatos ou mortes naturais? Ligação entre tudo isso?).
 
4 - Uma visita ao zoológico, onde a filha do casal trabalha, desencadeia uma história enterrada há quinze anos, quando o pai matou o seu cachorro a pontapés por considerá-lo homossexual. Ao passarem pela jaula do orangotango, isolado dos outros animais por ter molestado outro macaco, a família relembra esse episódio traumático do passado. A lembrança desencadeia uma série de conflitos familiares, deixando manifestar o ódio cotidiano, a intolerância generalizada, o fascismo e a animalidade que fazem parte do homem contemporâneo, transformando o zoológico cênico proposto pelo autor em uma metáfora de nossa própria sociedade. (Então, já está sentado na plateia?).
 


 
 


O enredo se destaca por seu caráter inusitado.  Um fato acontecido no passado, quando CAROL (JULIE WEIN) tinha nove anos, levou seu pai, PABLO (LUCAS GOUVÊA / JOSÉ KARINI), a cumprir, por quarenta dias, uma prisão e a pagar uma multa de cinco mil dólares: ele matara, a pontapés, o cão da família, mas a filha não entendera o motivo.  Apenas KAREN (ADRIANA SEIFERT), a mãe da menina, sabia o segredo, ou seja, a causa de tão brutal e letal espancamento.

O tempo passou, CAROL, agora moça, se tornou veterinária e foi trabalhar no zoológico próximo à residência da família, lugar este visitado, frequentemente, por seu pai. 

Numa tarde, em visitação ao zoo, o casal PABLO e KAREN encontrou um orangotango confinado, isolado, numa jaula, “de castigo”, e ao questionar o motivo daquilo, ficaram sabendo, pela filha, que o animal, macho, estava “de quarentena”, porque estava tentando ter relações sexuais com outros animais do mesmo sexo.
 
 


Aquela explicação mexeu, profundamente, com o casal e, a partir dali, o passado veio à tona e ficou esclarecido o que levara PABLO a, num ato de total desatino, violentar, até a morte, o seu cão: este também tinha o hábito de práticas homossexuais com outro cão da casa, o que era inadmissível para o chefe da família. 

Há quinze anos, uma bomba explodira em uma escola, matando crianças,  professores e  funcionários. Exatamente no momento em que a TV, em casa da família, noticiava o terrível, estúpido e inaceitável ato terrorista, o pai percebera a prática “errada e proibida” dos dois cães machos, sendo que, segundo ele, o sodomizado (Bandido), que pertencia à sua mulher, tentava não ceder às investidas do “tarado” (General), que o molestava, “à força”, às vistas da família, e que pertencia a PABLO.

“Matei porque era um cachorro homossexual”. Essa frase do personagem gera uma desconfiança de que um homossexualismo latente, inconsciente ou conscientemente não admitido e aceito por ele, bem lá no seu âmago, pode ter sido a verdadeira causa de sua homofobia, o que o levou ao tresloucado gesto.  Quem assistir à peça poderá refletir sobre isso, juntando trechos de algumas de suas falas à maneira como elas são ditas.

A homossexualidade entre não-humanos, há muito, vem sendo motivo de estudos sérios e profundos, e a ciência já afirma ser um fato real, incontestável, entre as mais diferentes espécies do reino animal.  E este é um dos ganchos utilizados pelos “gays”, na defesa de sua causa: o homossexualismo é patente entre animais de uma forma geral, porém o Homem é o único animal homofóbico, motivo de tantas tragédias, no mundo moderno e no passado.
 
 
 

“O cão era meu, por isso eu tinha o direito de matar.”, ou algo parecido, é outra frase marcante, na peça, que abre espaço para uma discussão acerca do sentido de posse, sobre pessoas, animais e/ou objetos, o que, na cabeça de muitos, lhes dá o direito de usar o seu “bem de posse” da maneira como achar melhor, dando-lhe, inclusive, o mais cruel dos destinos, em nome de um empoderamento material.

Até aquela tarde, no zoológico, a família não havia travado uma conversa acerca do que levara PABLO ao curto período de prisão, quinze anos atrás, entretanto a insistência da filha em saber o que acontecera, e seu porquê, gera um diálogo em que reinam, à solta, o patético, o perverso, o tenso, o sarcasmo, o sádico e, até mesmo, o lírico.  Por outro lado, a troca de farpas e acusações, sem que se saiba até que ponto os personagens são sinceros no que dizem ou mentem, para se livrarem de culpas e arrependimentos, leva ao término de um casamento com aparência sólida, mas de alicerces frágeis.
 
 


O texto, muito bem escrito e, da mesma forma, traduzido, é bem atual – pode-se dizer “de vanguarda” - por tratar de temas tão em evidência nas mídias, como homofobia (o principal de todos), violência, terrorismo, hipocrisia e intolerância, de uma forma geral, dentre outros. Nota-se nele um interessante paralelo entre terrorismo e intolerância e uma dualidade, durante todo o seu decorrer, entre tolerância e intolerância. A tolerância, como caminho para a libertação, para uma independência; a intolerância, como uma porta para os conflitos, os crimes.  Os diálogos são muito bem construídos e não economizam palavras, que funcionam como dedos certeiros em feridas mal cicatrizadas. Não se pode omitir que o texto mescla diálogos com uma espécie de solilóquios, quando o personagem “conversa” diretamente com a plateia. É muito bem aplicada essa técnica na peça. Também é bastante interessante a presença dos “flashbacks”.

O fato de o espetáculo ser apresentado em formato de palco italiano, porém no chão, bem próximo ao público, faz com que este “participe” mais da história, se envolva mais com o drama dos personagens, sinta mais forte o que vai na alma de cada um deles.  O ótimo trabalho da diretora, DANIELLE MARTINS DE FARIAS, que também traduziu o texto, favorece uma participação mais ativa dos espectadores, os quais se “projetam” nas situações, quase que participando da contenda, tomando este ou aquele partido, nas discussões que envolvem, direta ou indiretamente, aspectos ligados a temas como ética, moral, homossexualismo, justiça, impunidade, consciência crítica, o “politicamente correto” e mais alguns outros valores sociais. 
 
 
 


Três excelentes atores dão vida aos membros da família e aos personagens secundários. LUCAS GOUVÊA (PAI; com JOSÉ KARINI como “stand in” – Assisti com o LUCAS.), ADRIANA SEIFFERT (MÃE) e JULIE WEIN (FILHA).

Observa-se um grande equilíbrio na atuação do trio, com um leve destaque para LUCAS e ADRIANA, os quais, talvez, pela grande carga dramática de seus personagens, conseguem, em determinados momentos, prender mais a atenção da plateia e provocar-lhes sentimentos até opostos, como ódio e piedade. Ambos atuam com uma entrega total aos seus personagens, com cenas muito fortes, que exigem um imenso desgaste, físico e emocional, da dupla.
 
Já assisti a, praticamente, todos os espetáculos em que LUCAS GOUVÊA atuou, sempre impecável, e posso afirmar que ele vive seu melhor momento profissional. Apoderou-se do personagem de forma visceral.
 
 
 
 
ADRIANA SEIFERT "troca figurinhas" com LUCAS, quase que ao mesmo nível de interpretação. Questão de milímetros.
 
 


JULIE também imprime o tom correto à sua personagem e ainda se dá ao luxo de interpretar e, ao mesmo tempo, executar a trilha sonora do espetáculo, cuja autoria não consta, explicitamente, na ficha técnica, mas tudo indica que seja de FELIPE HABIB, que assina a direção musical. JULIE toca, em cena, dois instrumentos, um teclado e um violoncelo, além de, também, cantar.
 
 


            Ainda que, tecnicamente falando, o protagonista seja PABLO, não é conveniente falar em protagonismo, nesta peça, quando todos os personagens, tão bem defendidos por seus intérpretes, têm uma participação importante na trama.

Se não há dinheiro, para a construção de cenários suntuosos, substitui-se o “material” pela criatividade. Foi o que fez, muito bem, ANDRÉ SANCHES, construindo um espaço cênico muito interessante, utilizando material de baixo custo, como muitas caixas de papelão, não deixando de incluir, no seu trabalho, ótimas projeções, responsáveis por excelentes soluções para algumas cenas.

Nada a destacar, com relação aos figurinos, de RAQUEL THEO, a não ser, apenas, dizer que são interessantes, do dia a dia de uma família de classe média, e estão inseridos no contexto da peça.

A sensibilidade de RENATO MACHADO, mais uma vez, se faz presente, nesta montagem, responsável por realçar e valorizar certas cenas do espetáculo e ajudar a criar clima para outras.

 


 
FICHA TÉCNICA: 
Dramaturgia: Gustavo Otts
Tradução: Danielle Martins de Farias
Direção: Danielle Martins de Farias
 
Elenco: Adriana Seiffert, José Karini, Julie Wein, Lucas Gouvêa (José Karini e Lucas Gouvêa alternam-se.)
 
Direção Musical: Felipe Habib
Direção de Movimento: Toni Rodrigues
Iluminação: Renato Machado
Cenário: André Sanches
Figurino: Raquel Theo
Design Gráfico: Marcus Moraes
Fotografia: Rodrigo Castro
Mídias Sociais: Rafael Teixeira
Assessoria de Imprensa: Bianca Senna e Paula Catunda
Produção e Realização: Notórias Produções
 

 
 

SERVIÇO:
 
Temporada: De 07 a 30 de julho de 2017.
Local: SESC Copacabana – Sala Multiuso.
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana – Rio de Janeiro.
Dias e Horários: às 6ªs feira e sábados, às 19h; aos domingos, às 18h.
Informações: (21) 2547-0156.
Classificação Indicativa; 14 anos.
Duração; 80 minutos.
Lotação: 50 lugares.
Valor dos Ingressos: R$6,00 (associado do SESC); R$12,00 (meia entrada) e R$25,00 (inteira).
Horário de funcionamento da Bilheteria: 2ª feira, das 9h às 16h; de 3ª feira a 6ª feira, das 9h às 21h; sábados, das 13h às 21h; domingos, das 13h às 20h.
 





            É com muita convicção que recomendo a peça, como um bom espetáculo, desta temporada, no qual, “contrariando” o título, há mais “bichos” do que “amores”, o que leva o espectador a refletir muito sobre o nebuloso personagem PABLO e a pensar na maravilha que seria, se vivêssemos num planeta chamado TOLERÂNCIA.

 

 
 
 




(FOTOS: RODRIGO CASTRO.)
 
 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
 
 
 
 


 

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