ALAIR
(UM LINDO POEMA
HOMOERÓTICO.
ou
DE COMO O HOMOEROTISMO
E A VULGARIDADE
NÃO SE MISTURAM.)
Considerando
a atual situação econômica por que passa o país, especialmente o estado do Rio de Janeiro, praticamente à
falência, por conta da ação de uma quadrilha, é óbvio que o prejuízo sofrido
pelas artes, de uma maneira geral,
já era de se esperar. O TEATRO não
foi poupado, o que justifica o fato de, no início do ano, termos visto somente
reestreias; ninguém conseguia pôr de pé um espetáculo novo. Aos poucos, sem
patrocínios, somente com recursos próprios e ajuda de amigos, umas boas
produções começaram a estrear nesta cidade, além de algumas que vieram de
outros estados. Quantitativamente, foram poucas as estreias deste primeiro semestre de 2017, quase a se
extinguir, porém a maioria, para a nossa alegria, foi de boa a excelente
qualidade.
No
momento, um espetáculo ganha destaque, dentre os bons, que é “ALAIR”, em cartaz no Teatro da Casa de Cultura Laura Alvim (VER SERVIÇO.), graças, paradoxalmente,
ao próprio Governo do Rio de Janeiro, à Secretaria de Estado de Cultura do
Estado do Rio de Janeiro, à Fundação Anita Mantuano de Artes do Estado do Rio
de Janeiro, à Casa de Cultura Laura Alvim e à Me Gusta Produções.
Comemorando 45 anos de carreira, EDWIN LUISI, em brilhante atuação,
vive o personagem-título, ao lado de ANDRÉ ROSA e RAPHAEL SANDER,
sob a direção de CÉSAR AUGUSTO.
SINOPSE:
Em seu apartamento/estúdio,
em Ipanema, o fotógrafo ALAIR GOMES (EDWIN LUISI) recebe um jovem para uma
sessão de fotos.
O encontro deflagra um
turbilhão de lembranças e pensamentos de ALAIR
sobre amor, arte, beleza e morte.
A sinopse é bem sucinta, entretanto não há muito mais a ser dito,
realmente. É para se ver o seu desdobramento, em forma de ação, do pouco que
foi mencionado nela.
O espetáculo é uma bela
homenagem ao grande fotógrafo ALAIR GOMES (1921-1992), no ano em que se completam 25 anos de sua morte. Nascido em
Valença, RJ, em 1921, ALAIR, além de engenheiro, por formação, era filósofo, escritor, estudioso e crítico
de arte, tendo sido reconhecido como precursor da fotografia homoerótica no Brasil, conquistando a consagração
internacional, muito mais que em seu país, com seu trabalho, que reuniu mais de
170.000 negativos, cujo tema central era a
beleza do corpo masculino, não apenas os nus masculinos.
No apagar dos anos 60, passou a dedicar-se, quase que exclusivamente, à
fotografia e à crítica de arte, com fixação nos nus masculinos e fotos de
rapazes, feitas da janela de seu apartamento, na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro.
A isso ele dedicou os últimos 26 anos de sua vida.
ALAIR não fotografava apenas
por fotografar. Havia, em sua obra, um sentido poético, construído, sobretudo,
no processo de edição e de organização do material fotografado. As imagens não
são composições autônomas; elas integram sequências montadas, com base
em noções de ritmo e relações formais estabelecidas entre as fotos.
Antes
de fotografar, trabalhou, durante dez anos, em textos que descrevem, minuciosamente, o corpo de seus amantes
e relatam seus encontros com eles, os “Diários Eróticos”. Isso está presente, traduzido no
maior erotismo, no texto da peça.
Para ele, a obra, os “Diários Eróticos”,
deveria ser como uma "viagem sobre o corpo masculino
jovem". Tudo gira em torno de um jogo de sedução e de entrega
entre fotógrafo e modelo. Não há concessões, tampouco inibições.
ALAIR pode ser considerado o protótipo
do “voyeur”, pois dedicava horas de
seu dia a observar rapazes, na praia de Ipanema,
no Rio de Janeiro, como já foi dito,
e a fotografá-los, a distância, com uma teleobjetiva, da janela de seu
apartamento. Na praia lotada, o artista enfoca os garotos, em momentos de
lazer, fazendo ginástica ou conversando. A câmera está parada, provavelmente
num tripé. O enquadramento estático e a regularidade conferem ritmo ao conjunto
e enfatizam o movimento dos corpos, que, por vezes, parecem dançar. Nessas sequências,
o fotógrafo não age diretamente sobre o acontecimento; apenas observa e
registra. Sua intervenção se dá posteriormente, na montagem, quando cria
narrativas enigmáticas, sugerindo jogos eróticos. Além disso, a cadência das
imagens proporciona prazer visual ao observador. Vez por outro, quando o seu
interesse por algum dos rapazes aflorava, ele descia à areia e convidava a
“presa” a ir a seu apartamento, onde lhes fazia propostas de nus artísticos.
Segundo
o crítico Christian Caujolle: "Para
ALAIR, a sexualidade e a beleza representam a essência do ser humano e sua
melhor possibilidade de contato com o divino".
As
formas sequenciadas e ritmadas aproximam sua obra da música e do cinema. Embora
o cunho homoerótico seja evidente, os conjuntos não se configuram como um
discurso em defesa da homossexualidade. Antes disso, testemunham um desejo
compulsivo, e espelham o mundo ideal imaginado pelo artista.
Sobre
isso, vale a pena conferir a fala inicial do personagem:
DURANTE UMA VIAGEM À EUROPA, EM 1983, FIZ
NOTAS E FOTOS, QUE RESULTARAM NO TEXTO QUE CHAMO DE “UMA NOVA JORNADA
SENTIMENTAL”.
DE CERTA FORMA, ELE É UM DIÁRIO. NADA É
FICCIONAL. ELE SE REFERE A OBRAS DE ARTE E PESSOAS QUE, REALMENTE, VI, PORÉM,
NÃO SE TRATA DE UM MERO REGISTRO DE VIAGEM A LUGARES VISITADOS, TODOS OS ANOS,
POR MILHÕES DE PESSOAS.
A PRÓPRIA IDEIA DE "VIAGEM"
ADQUIRE UM POUCO DO SENTIDO DE METAMORFOSE.
O TOM DO TRABALHO É, ESCANCARADAMENTE,
HOMOERÓTICO.
ISSO SIGNIFICA QUE OS HOMOSSEXUAIS CULTOS, (levemente
irônico) CUJO NÚMERO É IMENSO, PODEM SE
INTERESSAR POR ELE, NO ENTANTO, DE JEITO NENHUM, MEU TRABALHO É VOLTADO APENAS
AOS HOMOSSEXUAIS.
ELE É, REALMENTE, O MAIS HOMOSSEXUAL
POSSÍVEL, PORQUE, APENAS SENDO FIEL À MINHA PRÓPRIA SENSIBILIDADE ERÓTICA, EU
PODERIA ENXERGAR O QUE, DE FATO, PERTENCE A EROS. (firme e sério) DA MESMA FORMA QUE, HÁ MUITOS SÉCULOS, OS
HOMOSSEXUAIS DESFRUTAM DE LIVROS E FILMES DO PONTO DE VISTA HETEROSSEXUAL, OS
HETEROSSEXUAIS TAMBÉM PRECISAM SER CAPAZES DE SE INTERESSAR POR TEXTOS
ABERTAMENTE HOMOSSEXUAIS, COMO O MEU.
QUALQUER UM COM UMA MENTALIDADE ABERTA E
LIBERTÁRIA VAI ENTENDER QUE A MAIORIA DAS COISAS QUE EU DIGO A RESPEITO DO
CORPO MASCULINO TAMBÉM PODERIA SER DITA SOBRE O CORPO FEMININO – (levemente
irônico) POR ALGUÉM MELHOR PREPARADO
PARA ISSO DO QUE EU.
MINHA OBRA É UMA PROCLAMAÇÃO A HÉTEROS,
BIS, HOMOS, TRANS: É HORA DE O EROTISMO AMADURECER NO MUNDO!
“ALAIR” é o segundo trabalho para TEATRO do dramaturgo GUSTAVO PINHEIRO, autor de “A Tropa”, texto vencedor do concurso “Seleção Brasil em Cena” do CCBB, como melhor texto, que fez grande
sucesso, de bilheteria e de crítica, em três temporadas, no Rio de Janeiro, e, atualmente, esgota
os ingressos do Teatro Sérgio Cardoso,
em São Paulo.
O
texto está longe de ser comparado ao
genial de “A Tropa”, por motivos
óbvios. Enquanto este é fruto de imaginação criativa do autor, em “ALAIR”, ao
que parece, o trabalho foi mais de costurar
textos dos diários do fotógrafo, acrescidos, é óbvio de uma parte
ficcional, esta fazendo jus ao talento de GUSTAVO.
Trata-se
de um texto que reúne poesia, humor
e muito erotismo, passando ao longe de qualquer coisa que possa sugerir
vulgaridade ou intenção de agredir ou chocar o espectador. Muito pelo
contrário. Acho que GUSTAVO pode,
com este texto, até, quem sabe, “abrir cabeças” e transformar empedernidos
corações homofóbicos em, no mínimo, “tolerantes”, sabendo-se que tolerência não basta. Tolerância é uma espécie de aceitação
compulsória. O que precisa acontecer, de fato, é a aceitação e o respeito pleno pelas minorias, pelos “diferentes”. É imperioso aceitar as diversidades.
É
um texto picante, sem ser imoral; sensual, sem ser pornográfico; realista, sem
ser agressivo; poético, sem ser meloso; erótico, sem ser vulgar...
Não
tem outro interesse o texto, que não
seja o de revelar, a um público que não conheceu o artista da fotografia, a sua
arte, os seus métodos de trabalho e um pouco do seu pensamento acerca da beleza
do corpo masculino e de suas conquistas, que, muitas vezes, ficavam apenas no
plano platônico. Não há uma grande mensagem política ou social, como havia em “A Tropa”, o que, de forma alguma,
diminui a qualidade do texto ora
analisado, fruto de uma pesquisa profunda sobre o artista das câmeras
fotográficas, facilmente identificada na obra
dramatúrgica. O autor alterna
cenas de ação, que mostram os encontros do
fotógrafo com dois de seus modelos, em seu apartamento, com breves narrativas
do diário de viagem de ALAIR GOMES.
Estas são tão bem detalhadas, que, fechando os olhos, “viajamos”, com ele, por
várias cidades europeias, principalmente Paris, além de outras importantes do
ponto de vista das artes.
Repetindo a dobradinha de “A Tropa”, CÉSAR AUGUSTO dirige o espetáculo e faz um excelente trabalho, privilegiando o
belo, o plástico, o poético, afastando-se das múltiplas possibilidades que o tema poderia oferecer, para a exploração,
até mesmo, do pornográfico. CÉSAR
soube dosar muito bem o erotismo e a
sensualidade, explorando, sem
exageros, a beleza estética dos corpos dos dois personagens coadjuvantes, um surfista
(ANDRÉ ROSA), extremamente desejado
por ALAIR, mas que resiste a ceder
aos seus desejos carnais, sempre a questionar o porquê da homossexualidade, e
um jovem militar (RAPHAEL SANDER),
pelo qual o fotógrafo demonstrou uma fulminante paixão (Ou seria amor?), não
correspondida, de forma aberta, mas veladamente.
Na
ficha técnica, merece destaque a direção de
movimento, belíssimo trabalho de LUÍSA PITTA, principalmente na linda cena em que os dois rapazes
fazem um admirável trabalho de expressão corporal, que reporta à cinética de um
filme.
Quanto ao diretor, CÉSAR AUGUSTO, atribuo-lhe um grande mérito neste trabalho, além do que já foi citado, que é o de como ele soube explorar os incomensuráveis recursos de interpretação de EDWIN LUISI.
Quanto ao diretor, CÉSAR AUGUSTO, atribuo-lhe um grande mérito neste trabalho, além do que já foi citado, que é o de como ele soube explorar os incomensuráveis recursos de interpretação de EDWIN LUISI.
E
já que falamos neste, não consigo me conter e vou logo dizendo que, depois de seu inesquecível Mozart, em “Amadeus”, com direção de Flávio
Rangel, em 1982, pelo qual
ganhou o prêmio de Melhor Ator em
dois dos mais importantes prêmios de TEATRO
do Brasil, o Shell e o, infelizmente extinto, Molière, e que considero sua obra-prima,
e da sua interpretação em “À Margem da
Vida”, de Tennessee Williams, ALAIR é seu melhor trabalho.
Para
mostrar bem a personalidade de ALAIR,
EDWIN sabe explorar seu potencial de
ator, com a voz e o corpo. É capaz de, como num passe de mágica, desmanchar uma
máscara, em que o sarcasmo está presente, para dar lugar a outra, demonstrando
amor ou desejo. Com boas pausas e entonações, deixa destilar o seu veneno e as
suas críticas às posições dos outros personagens. O seu ALAIR pode não ser, exatamente, como foi o real, porém é
carismático e atrai a simpatia da plateia.
Quanto
aos dois jovens coadjuvantes, ambos fazem corretamente o seu trabalho, com um
ligeiro destaque para ANDRÉ ROSA, o
surfista, que é convencido, pelo fotógrafo, a posar para um nude, reproduzindo
a pose da magnífica escultura de Davi,
de Michelangelo, o que exige que o
ator, sobre uma mesa, fique totalmente despido, expondo exatamente aquilo que
era o objeto maior de apreciação de ALAIR:
a beleza do nu masculino. Diga-se, de passagem, que se trata de uma cena
belíssima, sem a menor conotação de apelação e totalmente necessária à peça, antecedida de um longo texto minuciosamente descritivo das formas de Davi, extremamente sensual e erótico.
Já
RAPHAEL me passou a ideia de estar
muito contido, talvez nervoso, no personagem, naquela sessão, o que não chega a
comprometer o espetáculo. Creio que ele ainda pode render mais em cena, com o
azeitamento da peça.
O
cenário, de MARIANA VILLAS BOAS, faz uso de poucos elementos cênicos. Nada além
de dois painéis, brancos, à forma de uma lousa, um bem maior que o outro, que
são deslocados, pelos próprios atores, várias vezes, durante o espetáculo, e
que servem para muitas excelentes projeções, estáticas ou cinéticas, num belo
trabalho de videografismo, da responsabilidade de RENATO KRUEGER. Além disso, apenas uma mesa, um banco e uma
cadeira.
Um
dos pontos fortes do espetáculo é a belíssima iluminação, do premiadíssimo, TOMÁS
RIBAS, que produz belos efeitos de sombras e explora, de todos os ângulos,
o espaço cênico e os elementos que devem ser iluminados, com a devida intensidade,
colaborando, plasticamente, na construção de várias cenas, como duas, salvo
engano, em que, com a devida aquiescência do diretor, ou, quem sabe, partindo deste a ideia, utiliza a luz de um
refletor, manipulado por um dos atores coadjuvantes, sobre os outros, em cenas
diferentes.
RODRIGO MARÇAL acrescenta valor ao
espetáculo, com sua ótima trilha sonora
original, bem inserida no contexto.
Além de outras contribuições, como é bom, por exemplo ouvir Caetano Veloso, na personalíssima
interpretação de "Mora
na Filosofia", de Monsueto
Menezes, além de um pequeno trecho da sensualíssima “My Funny Valentine”, de Richard
Rodgers e Lorentz Hart, do
musical “Babes in Arms” (década de 1930),
na linda versão de Chat Backer!
TICIANA PASSOS assina um figurino bem simples e totalmente de
acordo com os personagens e a época em que se passa a peça.
FICHA TÉCNICA:
Texto:
Gustavo Pinheiro (a partir dos diários de Alair Gomes)
Direção:
César Augusto
Assistente
de Direção: Luísa Pitta
Direção de Movimento: Luísa Pitta
Direção de Movimento: Luísa Pitta
Elenco:
Edwin Luisi, André Rosa e Raphael Sander
Cenário:
Mariana Villas Boas
Figurino:
Ticiana Passos
Iluminação: Tomás Ribas
Trilha
Sonora: Rodrigo Marçal
Videografismo: Renato Krueger
Fotografias
em Cena: Alair Gomes
Visagismo:
Márcio Mello
Fotos:
Elisa Mendes
Projeto
Gráfico: Gilmar Padrão Jr.
Produção
Executiva: Michaela Barcellos
Assistente
de Produção: Athenea Bastos
Produção
e Realização: Me Gusta Produções
Assessoria
de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
SERVIÇO:
Temporada:
De 2 de junho a 2 de julho de 2017.
Local:
Teatro da Casa de Cultura Laura Alvim.
Endereço:
Avenida Vieira Souto, 176 – Ipanema – Rio de Janeiro.
Telefone:
(21) 2332-2015.
Dias
e Horários: De 4ª feira a sábado, às 21h, e domingo, às 20h.
Duração:
70 minutos.
Valor dos Ingressos: R$60,00 (inteira) e R$30,00 (meia entrada).
Horário
de Funcionamento da Bilheteria: De 3ª feira a 6ª feira, das 16h às 21h; sábados,
das 15h às 21h; domingos, das 15h às 20h.
Gênero:
Drama.
Classificação
Indicativa: 14 anos.
ALAIR GOMES morreu assassinado, por estrangulamento, em seu
apartamento, na rua Prudente de Moraes, Ipanema, em 1992, em
circunstâncias, até hoje, não esclarecidas. O provável assassino teria sido o
segurança de uma loja de discos, que chegou a posar para suas fotos (o da foto nu, na pose do Davi) e por quem
o artista estava apaixonado. Na peça, o segurança seria o tal surfista, que, na ficção, trabalhava como vendedor de discos, numa loja, e vivia a perguntar ao fotógrafo: "Você não tem medo de morrer?".
Num país sem memória e que não dá o
devido valor à arte fotográfica, e onde a homofobia ainda é responsável por um
sem-número de atrocidades, cometidas, diariamente, contra seres humanos,
considero muito pertinente o espetáculo, que recomendo, com bastante empenho e
espero rever.
(FOTOS:
ELISA MENDES.)
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