terça-feira, 14 de março de 2017


GISBERTA

 

 

 

(FORTE, PUNGENTE, VERDADEIRA, VÍTIMA DA HOMOFOBIA, DA TRANSFOBIA, DA INTRANSIGÊNCIA E DOS PERVERSOS.)

ou

UM ESPETÁCULO QUE SAI DAS ENTRANHAS DE UM SER,

PARA ENTRAR NAS DE OUTROS.)




 

 

            Quando saio de um Teatro completamente arrebatado, extremamente feliz, por ter assistido a um primor de espetáculo, tenho o hábito de dizer que “saí em estado de graça”. Às vezes, em tom de brincadeira, mas falando seriamente, do fundo do coração, digo que “estou num relacionamento sério” com a peça “X” ou com seus atores.

            Quando, há pouco mais de uma semana, vi “GISBERTA”, em cartaz no Teatro III, do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Rio de Janeiro, recomendando o espetáculo, postei, numa rede social, o “sério” no superlativo, SERIÍSSIMO (assim mesmo, com dois “i”, como é a forma correta).

            Naquele momento, faltavam-me palavras para adjetivar essa obra-prima do TEATRO BRASILEIRO. Hoje, passados alguns dias, sinto-me em condição de analisar a peça e espero fazê-lo da forma mais isenta e completa, atentando para todos os detalhes que fazem dela uma das nelhores coisas para se ver em TEATRO, no momento, nesta ex-Cidade Maravilhosa.

            O espetáculo foi idealizado por LUIS LOBIANCO, a quem, antes de tudo, reverencio e agradeço, pela oportunidade de me permitir, e a todos os que vão assistir ao seu impecável trabalho, no palco, tomar conhecimento da existência de GIS, como ele, carinhosamente, a trata, tantas vezes, em cena, como se íntimos tivessem sido.

 
 
 
 
 

 
SINOPSE:
 
A obra mistura política, história, música, teatro, poesia e ficção, para falar de GISBERTA, brasileira, vítima da transfobia, que teve morte trágica, em 2006, no Porto, Portugal, após ter sido torturada por um grupo de 14 menores de idade, delinquentes, meliantes – e muito mais do que isso ignorantes e perversos
 
GISBERTA atravessou o oceano, para buscar um território livre, para dar um fim às perseguições que sofria, no Brasil, em São Paulo, mais propriamente, para não ser vencida pelo “bullying”, que já começava em casa. Partiu em busca de segurança e felicidade, mas morreu, no fundo de um poço, afogada em ódio e água, após quatro dias de tortura e martírio.
 
Na ocasião, o caso ganhou destaque nas discussões sobre a transfobia, em Portugal, e GISBERTA se tornou (e até hoje é) ícone, na luta pela conscientização para uma erradicação dos crimes de ódio contra “gays”, lésbicas e transexuais.
Em 2016, dez anos após a sua morte, GISBERTA foi amplamente lembrada, em Portugal, por meio de inúmeras reportagens. No Brasil, ninguém, ou quase ninguém, conhece, como deveria, a sua dolorosa história, na luta por uma identidade, pela sua verdadeira identidade.
 




 


Extraí, do “release” da peça, enviado pela assessoria de imprensa (NEY MOTTA): “...o Brasil, na contramão, é um dos países que mais comete crimes de transfobia e homofobia, números que não param de crescer, junto com uma onda conservadora de intolerância com as diferenças. Se não conseguimos mudar as leis que não nos protegem, que a justiça seja feita no TEATRO, com música e luzes de Cabaré. Que venham as identidades de humor, gênero, drama, música, tragédia e redenção. O caso de GISBERTA não é conhecido por aqui e decidi que GISBERTA vai reviver a partir da arte e será amada pelo público.” – comenta LUIS LOBIANCO.
Não tenha a menor dúvida, LUIS, de que seu objetivo está sendo mais do que atingido e espero que o espetáculo consiga fazer mais temporadas e atinja o maior número possível de pessoas sãs, como nós, humanas, cidadãos, que contribuirão para “fazer a cabeça” dos que ainda não atingiram a plenitude humana, que é quando se enxerga um semelhante como um igual, independentemente de tudo - ABSOLUTAMENTE DE TUDO!!! – e que o respeite integralmente.


 
 

 
UM POUCO DA VIDA DE GISBERTA
(também extraído do já citado “release”:
Caçula de uma família com oito filhos, ainda na infância, GISBERTA dava sinais de que estava num corpo que não correspondia à sua identidade.
Após a morte do pai, que era quem lhe fazia maior oposição, deixou os cabelos crescerem definitivamente.
Em 1979, aos 18 anos, quando suas amigas morriam assassinadas, na capital paulista, com medo de ser a próxima vítima, deixou o Brasil, rumo a Paris.
Mais tarde, já depois de realizar tratamento hormonal e fazer implante de silicone nos seios, mudou-se para o Porto, no Norte de Portugal.
Rapidamente enturmou-se na cena “gay” local. Fazia apresentações em bares e boates. Sem muito jeito com qualquer tipo de liberdade, viveu tudo o que nunca experimentou, de forma voraz: cantou de Vanusa a Marilyn, bebeu, fumou, cheirou, amou e adoeceu no cabaré.
Poupava energia para as cartas e fotos que mandava para a família; queria garantir que estava segura.
Um dia, os seus dois cães fugiram de casa e foram atropelados na sua frente. GIS definhou de depressão e Aids. Perdeu os cabelos conquistados, passou a vestir trapos, sem gênero, e foi morar na rua.
Num prédio abandonado, foi encontrada, no final de 2005, por um grupo de 3 meninos, mantidos pela Oficina de São José, uma instituição religiosa da vizinhança, que misturava órfãos com delinquentes menores de idade. Tratava-se de uma instituição a qual o que menos fazia era educar e onde os internos tinham total regalia, inclusive de ir para escola sozinhos, o que não faziam, certamente, e pelo que não eram cobrados; “matavam aula” e ficavam, pelas ruas, a cometer atos ilícitos.
No início, as crianças ofereceram, à pobre coitada e indefesa, comida e agasalho, mas a lógica do grupo se converteu em um ódio súbito e inexplicável, quando outros 11 meninos se juntaram ao grupo inicial.
A partir de 15 de fevereiro de 2006, GISBERTA sofreu vários dias de tortura e, finalmente, acreditando que ela estava morta, para se livrarem da culpa, os covardes marginais a jogaram, ainda com vida, dentro de um poço, cheio de água.
Conclusão do processo: morte por afogamento. GIS, como ela gostava de ser chamada, já vivia sufocada. Sua morte foi síntese da sua vida – culpa do ódio e não da água.
Detalhe: os assassinos não foram considerados culpados.
 




 


“Para contar a história de GISBERTA, que é, praticamente, desconhecida no Brasil e que é, também, a história de tantas outras vítimas da transfobia, LUIS LOBIANCO interpreta vários personagens, com texto concebido a partir de relatos obtidos em contatos pessoais com a família de GIS, do processo judicial e de visita ao local da tragédia. Em cena, três músicos acompanham o ator”. (Extraído do “releasae”.) Acrescento: O texto mistura trechos narrativos com falas dos personagens.
            Pelo já exposto acima, julgo ser este espetáculo um forte candidato a premiações, este ano, pelo conjunto da obra.
            Toda a garimpagem feita pelos pesquisadores gerou uma linda, comovente e “enxuta” dramaturgia, de RAFAEL SOUZA-RIBEIRO, com uma linguagem didática, sem ser intencional. O texto não levanta bandeiras pró-universo “gay”. Na verdade, ele é, acima de tudo, um grito de dor e de revolta, clamando por justiça. Aqui, particularmente, para os crimes cometidos contra a comunidade LGBT e afins, mas funciona como um clamor pelo fim da impunidade, pelo respeito e amor ao próximo, pela exigência de um olhar tolerante, utilizando a triste história de GISBERTA como motivação. Há trechos que mexem excessivamente com o emocional dos espectadores, levando-os, muitos, às lágrimas.
            RENATO CARRERA assina, na minha modesta opinião, sua melhor direção, firme, seguro do que deseja, mérito que cabe, também, um pouco, à excelente direção de movimento de MÁRCIA RUBIN. São ótimas as marcações e tão bem executadas pelo ator, que ficamos com a impressão de que “nada foi combinado”, já que ele está “solto”, no palco, dominando todo o espaço, da primeira à última cena.
            Uma das maiores revelações, no TEATRO, para mim, nos últimos tempos, foi ver um ator, publicamente, conhecido e admirado pelos papéis cômicos que está acostumado a fazer, atuando, num drama, com total conhecimento de causa, dignificando a profissão de ATOR, com todas as maiúsculas. Ninguém pode imaginar em que se transforma LUIS LOBIANCO em cena. Ele mantém a plateia hipnotizada. Ninguém consegue piscar, desde quando aparece, de costas, ao fundo do palco, até a leitura da sentença, proferida pelo juiz português, quando, visivelmente emocionado, o que vemos, na nossa frente – pelo menos, para mim, pareceu – é o ator, um ser humano, um cidadão, não um personagem. Muda, completamente, a postura e a voz de LUIS LOBIANCO, a quem eu não me canso de aplaudir e dirigir gritos de “BRAVO!”. Trabalho visceral, que vem de suas entranhas, para entrar nas nossas.
            Para um espetáculo de qualidade, se houver dinheiro, facilita, mas de nada adianta uma boa verba, sem o resto. O “resto”, melhor dizendo, os demais elementos, são o texto, a direção e a atuação de um elenco. Disso, já falei. Mas o que dizer da parte técnica envolvida nesta montagem?
            Trata-se de um espetáculo que não pede muitos elementos plásticos, uma vez que o centro de tudo é a personagem. GISBERTA reina, soberana e linda (ela era linda, fisicamente), mesmo depois de morta. Ali, naquele palco, ela ainda está viva.
            O cenário não poderia ser mais bem projetado, por MINA QUENTAL, de uma simplicidade franciscana e de um bom gosto incomensurável. Nada que chame a atenção. Três espécies de “caixas” gigantes, ou torres, revestidas por um tecido opaco, que se torna translúcido, quando recebe iluminação interna, para que o público possa ver o trio de ótimos músicos, colocados um dentro de cada “caixa”. Degraus e apenas um móvel, espécie de mesa de mil utilidades, tudo em tom pastel. Não caberiam cores vivas neste espetáculo
            O figurino, de GILDA MIDANI, segue a mesma proposta da cenografia: simples, uma mistura de gêneros, também em tom pastel, uma vestimenta de cujas partes o ator vai se utilizando, à medida que muda de personagem.
            O visagismo do/da personagem (não consta na ficha técnica, mas me parece ter sido criado pelo próprio ator) é fantástico. Há uma maquiagem feminina, porém não exagerada, como se, parece-me, fosse intencional mostrar que GISBERTA, embora na sua identidade e por mais que tenha buscado uma “casca” feminina, não era uma mulher, biologicamente nascida, o que exatamente lhe custou tanto sofrimento.
            E RENATO MACHADO, que, mais uma vez, brilha (sem trocadilhos), assinando a belíssima luz do espetáculo!!!
            LÚCIO ZANDONATI criou uma trilha sonora, executada ao vivo, muito dentro do espírito do espetáculo. Os sons e canções sublinham, com perfeição, as cenas, enriquecendo-as, certamente.



                                      
FICHA TÉCNICA:
Idealização: Luis Lobianco
Texto: Rafael Souza-Ribeiro
Pesquisa Dramatúrgica: Luis Lobianco, Renato Carrera e Rafael Souza-Ribeiro
Investigação: Luis Lobianco e Rafael Souza-Ribeiro
Direção: Renato Carrera
 
Atuação: LUIS LOBIANCO

Músicos em Cena: Lúcio Zandonadi (piano e voz), Danielly Sousa (flauta e voz) e Rafael Bezerra (clarineta e voz)
Trilha Sonora e Músicas Compostas: Lúcio Zandonati
Iluminação: Renato Machado
Cenário: Mina Quental
Figurino: Gilda Midani
Preparação Vocal: Simone Mazzer
Direção de Movimento: Márcia Rubin
Direção de Produção: Cláudia Marques
Programação Visual: Daniel de Jesus
Fotos de divulgação: Elisa Mendes
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Produção: Fábrica de Eventos
Patrocínio: Banco do Brasil


 
A ficção e a realidade.
 
 
 
                        SERVIÇO:

Temporada: De 1º de março a 30 de abril.
Local: Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) - Teatro III.
Endereço: Rua Primeiro de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro.
Informações: (21) 3808-2020
Dias e Horários: de 5ª feira a domingo, às 19h30min.
Valor do Ingresso: R$20,00 (inteira) e R$10,00 (meia entrada).
Classificação Etária: 14 anos.
Duração: 70 minutos
Gênero: Drama
 

 

 
 

            Acima de tudo, o espetáculo é NECESSÁRIO, como diz um amigo meu. Sempre o foi e é, mais ainda, no momento atual, quando vemos um mundo que, segundo o próprio LOBIANCO, “passa por uma grande crise de identidade: o que somos, essencialmente, e onde podemos viver o que somos? Refugiados podem ser inteiros, fora de seus territórios, sem inspirarem ameaça? Há liberdade para identidade de gênero, mesmo que se tenha nascido em um corpo de outro sexo? ‘Gays’ podem se amar, sem exposição à violência? A reação para o rompimento com padrões sociais é uma explosão de violência cotidiana sem precedentes. Quanto mais ódio, mais a afirmação da identidade se impõe. No ar, a sensação de um grande embate mundial iminente – não tem mais como se esconder no armário. Ser livre ou servir à intolerância: eis a questão.” .
            Escolhi esse depoimento de LOBIANCO, para fechar esta crítica, pois ele encerra “ipsis litteris”, o meu pensamento.
            Não foi à toa que publiquei, numa rede social, logo após ter assistido à peça, que espero rever, muito em breve:
 
 

 
Gilberto está num relacionamento, SERIÍSSIMO e declarado, com GISBERTA e LUÍS LOBIANCO.
Que espetáculo fabuloso!!!
Gritar "BRAVO!" e aplaudir, de pé, na primeira fila é muitíssimo pouco para este fantástico trabalho de TEATRO!
 

 
 
 

 

 

(FOTOS: ELISA MENDES.)
 
 
 
 
Gilberto e Gisberta.
 

 

 

 

 

 



 
 

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