GISBERTA
(FORTE, PUNGENTE, VERDADEIRA,
VÍTIMA DA HOMOFOBIA, DA TRANSFOBIA, DA INTRANSIGÊNCIA E DOS PERVERSOS.)
ou
UM ESPETÁCULO QUE SAI DAS
ENTRANHAS DE UM SER,
PARA ENTRAR NAS DE OUTROS.)
Quando
saio de um Teatro completamente
arrebatado, extremamente feliz, por ter assistido a um primor de espetáculo,
tenho o hábito de dizer que “saí em
estado de graça”. Às vezes, em tom de brincadeira, mas falando seriamente,
do fundo do coração, digo que “estou num
relacionamento sério” com a peça “X”
ou com seus atores.
Quando,
há pouco mais de uma semana, vi “GISBERTA”,
em cartaz no Teatro III, do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Rio de Janeiro, recomendando o espetáculo, postei, numa rede social,
o “sério” no superlativo, SERIÍSSIMO (assim mesmo, com dois “i”, como é a forma correta).
Naquele
momento, faltavam-me palavras para adjetivar essa obra-prima do TEATRO BRASILEIRO. Hoje, passados alguns dias,
sinto-me em condição de analisar a peça e espero fazê-lo da forma mais isenta e
completa, atentando para todos os detalhes que fazem dela uma das nelhores
coisas para se ver em TEATRO, no
momento, nesta ex-Cidade Maravilhosa.
O
espetáculo foi idealizado por LUIS
LOBIANCO, a quem, antes de tudo, reverencio e agradeço, pela oportunidade
de me permitir, e a todos os que vão assistir ao seu impecável trabalho, no palco,
tomar conhecimento da existência de GIS,
como ele, carinhosamente, a trata, tantas vezes, em cena, como se íntimos
tivessem sido.
SINOPSE:
A obra mistura política,
história, música, teatro, poesia e ficção, para falar de GISBERTA, brasileira, vítima da transfobia, que teve morte trágica,
em 2006, no Porto, Portugal, após
ter sido torturada por um grupo de 14
menores de idade, delinquentes, meliantes – e muito mais do que isso ignorantes e perversos.
GISBERTA atravessou o oceano, para buscar um território livre, para
dar um fim às perseguições que sofria, no Brasil,
em São Paulo, mais propriamente, para
não ser vencida pelo “bullying”, que
já começava em casa. Partiu em busca de segurança e felicidade, mas morreu, no
fundo de um poço, afogada em ódio e água, após quatro dias de tortura e martírio.
Na ocasião, o caso ganhou
destaque nas discussões sobre a transfobia, em Portugal, e GISBERTA se
tornou (e até hoje é) ícone, na luta pela conscientização para uma erradicação
dos crimes de ódio contra “gays”, lésbicas e transexuais.
Em 2016, dez anos após a sua morte, GISBERTA foi amplamente lembrada, em Portugal, por meio de inúmeras reportagens. No Brasil, ninguém, ou quase ninguém, conhece, como deveria, a sua
dolorosa história, na luta por uma
identidade, pela sua verdadeira identidade.
Extraí,
do “release” da peça, enviado pela assessoria de imprensa (NEY MOTTA): “...o
Brasil, na contramão, é um dos países que mais comete crimes de transfobia e
homofobia, números que não param de crescer, junto com uma onda conservadora de
intolerância com as diferenças. Se não conseguimos mudar as leis que não
nos protegem, que a justiça seja feita no TEATRO, com música e luzes de
Cabaré. Que venham as identidades de humor, gênero, drama, música, tragédia e
redenção. O caso de GISBERTA não é conhecido por aqui e decidi que GISBERTA
vai reviver a partir da arte e será amada pelo público.” – comenta
LUIS LOBIANCO.
Não
tenha a menor dúvida, LUIS, de que
seu objetivo está sendo mais do que atingido e espero que o espetáculo consiga
fazer mais temporadas e atinja o maior número possível de pessoas sãs, como nós,
humanas, cidadãos, que contribuirão para “fazer a cabeça” dos que ainda não
atingiram a plenitude humana, que é quando se enxerga um semelhante como um igual,
independentemente de tudo -
ABSOLUTAMENTE DE TUDO!!! – e que o respeite integralmente.
UM POUCO DA
VIDA DE GISBERTA
(também extraído do já citado “release”:
(também extraído do já citado “release”:
Caçula de uma família com
oito filhos, ainda na infância, GISBERTA
dava sinais de que estava num corpo que não correspondia à sua identidade.
Após a morte do pai, que
era quem lhe fazia maior oposição, deixou os cabelos crescerem definitivamente.
Em 1979, aos 18 anos, quando suas amigas morriam assassinadas,
na capital paulista, com medo de ser a próxima vítima, deixou o Brasil, rumo a Paris.
Mais tarde, já depois de
realizar tratamento hormonal e fazer implante de silicone nos seios, mudou-se para o Porto, no Norte de Portugal.
Rapidamente enturmou-se na
cena “gay” local. Fazia apresentações em bares e boates. Sem muito jeito com
qualquer tipo de liberdade, viveu tudo o que nunca experimentou, de forma
voraz: cantou de Vanusa a Marilyn, bebeu, fumou, cheirou,
amou e adoeceu no cabaré.
Poupava energia para
as cartas e fotos que mandava para a família; queria garantir que estava
segura.
Um dia, os seus dois cães
fugiram de casa e foram atropelados na sua frente. GIS definhou de depressão
e Aids. Perdeu os cabelos
conquistados, passou a vestir trapos, sem gênero, e foi morar na rua.
Num prédio abandonado, foi
encontrada, no final de 2005, por um
grupo de 3 meninos, mantidos pela Oficina de São José, uma instituição
religiosa da vizinhança, que misturava órfãos com delinquentes menores de idade.
Tratava-se de uma instituição a qual o que menos fazia era educar e onde os
internos tinham total regalia, inclusive de ir para escola sozinhos, o que não
faziam, certamente, e pelo que não eram cobrados; “matavam aula” e ficavam,
pelas ruas, a cometer atos ilícitos.
No início, as crianças
ofereceram, à pobre coitada e indefesa, comida e agasalho, mas a lógica do
grupo se converteu em um ódio súbito e inexplicável, quando outros 11 meninos se juntaram ao grupo
inicial.
A partir de 15 de fevereiro de 2006, GISBERTA sofreu vários dias de tortura
e, finalmente, acreditando que ela estava morta, para se livrarem da culpa, os
covardes marginais a jogaram, ainda com vida, dentro de um poço, cheio de
água.
Conclusão do processo: morte por afogamento. GIS, como ela gostava de ser
chamada, já vivia sufocada. Sua morte foi síntese da sua vida – culpa
do ódio e não da água.
Detalhe: os assassinos não
foram considerados culpados.
“Para
contar a história de GISBERTA, que é, praticamente, desconhecida no Brasil e
que é, também, a história de tantas outras vítimas da transfobia, LUIS LOBIANCO
interpreta vários personagens, com texto concebido a partir de relatos obtidos
em contatos pessoais com a família de GIS, do processo judicial e de visita ao
local da tragédia. Em cena, três músicos acompanham o ator”. (Extraído
do “releasae”.) Acrescento: O texto mistura trechos narrativos com falas dos
personagens.
Pelo já exposto acima, julgo ser este espetáculo um forte
candidato a premiações, este ano, pelo conjunto da obra.
Toda a garimpagem feita pelos
pesquisadores gerou uma linda, comovente e “enxuta” dramaturgia, de RAFAEL
SOUZA-RIBEIRO, com uma linguagem didática, sem ser intencional. O texto não levanta bandeiras pró-universo
“gay”. Na verdade, ele é, acima de tudo, um grito de dor e de revolta, clamando
por justiça. Aqui, particularmente, para os crimes cometidos contra a
comunidade LGBT e afins, mas
funciona como um clamor pelo fim da impunidade, pelo respeito e amor ao próximo,
pela exigência de um olhar tolerante, utilizando a triste história de GISBERTA como motivação. Há trechos que
mexem excessivamente com o emocional dos espectadores, levando-os, muitos, às lágrimas.
RENATO
CARRERA assina, na minha modesta opinião, sua melhor direção, firme, seguro do que deseja, mérito que cabe, também, um
pouco, à excelente direção de movimento
de MÁRCIA RUBIN. São ótimas as
marcações e tão bem executadas pelo ator, que ficamos com a impressão de que “nada
foi combinado”, já que ele está “solto”, no palco, dominando todo o espaço, da
primeira à última cena.
Uma das maiores revelações, no TEATRO, para mim, nos últimos tempos,
foi ver um ator, publicamente, conhecido e admirado pelos papéis cômicos que
está acostumado a fazer, atuando, num drama,
com total conhecimento de causa, dignificando a profissão de ATOR, com todas as maiúsculas. Ninguém pode imaginar em que se transforma
LUIS LOBIANCO em cena. Ele mantém a
plateia hipnotizada. Ninguém consegue piscar, desde quando aparece, de costas,
ao fundo do palco, até a leitura da sentença, proferida pelo juiz português,
quando, visivelmente emocionado, o que vemos, na nossa frente – pelo menos,
para mim, pareceu – é o ator, um ser humano, um cidadão, não um personagem.
Muda, completamente, a postura e a voz de LUIS
LOBIANCO, a quem eu não me canso de aplaudir e dirigir gritos de “BRAVO!”. Trabalho visceral, que vem de suas entranhas, para entrar nas nossas.
Para um espetáculo de qualidade, se
houver dinheiro, facilita, mas de nada adianta uma boa verba, sem o resto. O “resto”,
melhor dizendo, os demais elementos, são o texto,
a direção e a atuação de um elenco. Disso, já falei. Mas o que dizer da parte técnica envolvida nesta montagem?
Trata-se de um espetáculo que não
pede muitos elementos plásticos, uma vez que o centro de tudo é a personagem. GISBERTA reina, soberana e linda (ela era linda, fisicamente),
mesmo depois de morta. Ali, naquele palco, ela ainda está viva.
O cenário não poderia ser mais bem projetado, por MINA QUENTAL, de uma simplicidade
franciscana e de um bom gosto incomensurável. Nada que chame a atenção. Três
espécies de “caixas” gigantes, ou torres, revestidas por um tecido opaco, que se
torna translúcido, quando recebe iluminação interna, para que o público possa
ver o trio de ótimos músicos, colocados um dentro de cada “caixa”. Degraus e
apenas um móvel, espécie de mesa de mil utilidades, tudo em tom pastel. Não
caberiam cores vivas neste espetáculo
O figurino, de GILDA MIDANI,
segue a mesma proposta da cenografia:
simples, uma mistura de gêneros, também em tom pastel, uma vestimenta de cujas
partes o ator vai se utilizando, à medida que muda de personagem.
O visagismo do/da personagem
(não consta na ficha técnica, mas me
parece ter sido criado pelo próprio ator) é fantástico. Há uma maquiagem
feminina, porém não exagerada, como se, parece-me, fosse intencional mostrar
que GISBERTA, embora na sua
identidade e por mais que tenha buscado uma “casca” feminina, não era uma
mulher, biologicamente nascida, o que exatamente lhe custou tanto sofrimento.
E RENATO MACHADO, que, mais uma vez, brilha (sem trocadilhos),
assinando a belíssima luz do espetáculo!!!
LÚCIO
ZANDONATI criou uma trilha sonora,
executada ao vivo, muito dentro do espírito do espetáculo. Os sons e canções
sublinham, com perfeição, as cenas, enriquecendo-as, certamente.
FICHA TÉCNICA:
Idealização: Luis Lobianco
Texto: Rafael Souza-Ribeiro
Pesquisa Dramatúrgica: Luis Lobianco,
Renato Carrera e Rafael Souza-Ribeiro
Investigação: Luis Lobianco e Rafael Souza-Ribeiro
Direção: Renato Carrera
Investigação: Luis Lobianco e Rafael Souza-Ribeiro
Direção: Renato Carrera
Atuação: LUIS LOBIANCO
Músicos em Cena: Lúcio Zandonadi (piano e voz), Danielly Sousa (flauta e voz) e Rafael Bezerra (clarineta e voz)
Trilha Sonora e Músicas Compostas: Lúcio Zandonati
Iluminação: Renato Machado
Cenário: Mina Quental
Figurino: Gilda Midani
Preparação Vocal: Simone Mazzer
Direção de Movimento: Márcia Rubin
Direção de Produção: Cláudia Marques
Programação Visual: Daniel de Jesus
Fotos de divulgação: Elisa Mendes
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Produção: Fábrica de Eventos
Patrocínio: Banco do Brasil
Fotos de divulgação: Elisa Mendes
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Produção: Fábrica de Eventos
Patrocínio: Banco do Brasil
A ficção e a realidade.
SERVIÇO:
Temporada: De 1º de março a 30 de abril.
Local: Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) - Teatro III.
Endereço: Rua Primeiro de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro.
Informações: (21) 3808-2020
Local: Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) - Teatro III.
Endereço: Rua Primeiro de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro.
Informações: (21) 3808-2020
Dias e Horários: de 5ª feira a domingo, às 19h30min.
Valor do Ingresso: R$20,00 (inteira) e R$10,00 (meia entrada).
Classificação Etária: 14 anos.
Duração: 70 minutos
Gênero: Drama
Valor do Ingresso: R$20,00 (inteira) e R$10,00 (meia entrada).
Classificação Etária: 14 anos.
Duração: 70 minutos
Gênero: Drama
Acima de tudo, o espetáculo é NECESSÁRIO, como diz um amigo meu.
Sempre o foi e é, mais ainda, no momento atual, quando vemos um mundo que,
segundo o próprio LOBIANCO, “passa
por uma grande crise de identidade: o que somos, essencialmente, e onde podemos
viver o que somos? Refugiados podem ser inteiros, fora de seus territórios, sem
inspirarem ameaça? Há liberdade para identidade de gênero, mesmo que se tenha
nascido em um corpo de outro sexo? ‘Gays’ podem se amar, sem exposição à
violência? A reação para o rompimento com padrões sociais é uma explosão de
violência cotidiana sem precedentes. Quanto mais ódio, mais a afirmação da
identidade se impõe. No ar, a sensação de um grande embate mundial iminente –
não tem mais como se esconder no armário. Ser livre ou servir à intolerância:
eis a questão.” .
Escolhi esse depoimento de LOBIANCO, para fechar esta crítica, pois
ele encerra “ipsis litteris”, o meu
pensamento.
Não foi à toa que publiquei, numa
rede social, logo após ter assistido à peça, que espero rever, muito em breve:
Gilberto está num relacionamento, SERIÍSSIMO e declarado, com GISBERTA
e LUÍS LOBIANCO.
Que espetáculo fabuloso!!!
Gritar "BRAVO!" e aplaudir, de pé, na primeira fila é
muitíssimo pouco para este fantástico trabalho de TEATRO!
(FOTOS: ELISA MENDES.)
Gilberto e Gisberta.
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