sábado, 30 de agosto de 2014


GRITO
 
 
 
 
(UMA GRANDE LIÇÃO DE CORAGEM, SEM FALSO MORALISMO.)
 
 
    
 
            Gosto muito dos textos de DARIO FO e FRANCA RAME, sua esposa, companheira e musa, também atriz, falecida no ano passado (Mistério Buffo, A Morte Acidental de um Anarquista, Brincando em cima Daquilo, Sexo em Paz, A Descoberta das Américas...) e, muito mais por conta disto do que por qualquer outra motivação, fui assistir, no último domingo, no Parque das Ruínas, aquele aprazível lugar de Santa Teresa, ainda que de dificílimo acesso, a um espetáculo baseado no MONOLOGO DELLA PUTTTANA IN MANICOMIO, da dupla italiana, numa tradução de ALESSANDRA VANUCCI e DAVI PESSOA, com adaptação de ANTÔNIO GUEDES, LUÍSA PITTA e MARIANA GUIMARÃES NICOLAS, com direção e atuação desta.
 
            “TEATRO” é pouco e não é bem o nome que deve ser atribuído ao espetáculo, e sim “performance”, já que se trata de um solo de uma atriz, que une dança e artes plásticas a um texto.
 
            Segundo o lindo programa do espetáculo,A peça narra a história de uma prostituta, presa em um manicômio penitenciário, por ter ateado fogo ao escritório de um grande empresário.  A personagem conta sua trajetória de vida, revelando que tem plena consciência de seu estado e que, mesmo reconhecendo-se como marginal, encontra forças para reagir diante dos que considera seus opressores – os homens.”
 
 
Mariana Guimarães Nicolas
 
 
 
Mariana Guimarães Nicolas
 
 
            Jamais levantei qualquer bandeira em defesa das prostitutas e recuso-me a considerar tal atividade uma “profissão”, apesar de reconhecer que muitas famílias vivam dela.  Mas não cabe a mim julgar quem se utiliza dessa forma de vida para viver ou sobreviver.  Não vou entrar no mérito da questão, até porque, acho que o que mais pesa, no espetáculo, não é uma mera discussão sobre a prostituição, em si; o personagem poderia ser um “gay”, um negro, um índio... qualquer representante de uma minoria.  O que está em jogo é a dignidade do ser humano, aqui representado por uma personagem que reúne, infelizmente, dois “estigmas”, como símbolos de fragilidade e marginalidade, respectivamente: mulher e prostituta.
 
A personagem não tem nome, ou seja, não tem uma identidade própria e pode representar qualquer pária que contribui para a “putrefação” de uma sociedade, dominada, desde o sempre, pelo falo do macho.
 
            Embora de 1977, não ficaria nem um pouco surpreso, se me dissessem que o texto havia sido escrito hoje, tão grande é o seu grau de contemporaneidade, uma vez que discorre sobre o lugar e o papel da mulher na sociedade, social e culturalmente, um lugar que compreende a fêmea como objeto, submissa e desvalorizada, a não ser na cama, quando, em tais condições, satisfaz os desejos da carne.  Aqui, transfiro para a boca dos homens o que diz uma personagem da grande obra Ópera do Malandro, de Chico Buarque (lá, é uma prostituta se dirigindo a um cliente): “Mas, na manhã seguinte, não conte até vinte, se afasta de mim / Pois já não vales nada, és página virada, descartada, no meu folhetim”. 
 
 
 
Evolução do desespero 1.
 
 
Evolução do desespero 2.
 
 
 
Evolução do desespero 3.
 
 
            A personagem é cruel e barbaramente assediada, na fábrica em que trabalha, completamente desrespeitada, como mulher e como ser humano, e, segundo ela, em seu comovente depoimento, isso é o que a leva ao estágio da loucura.
 
A prostituta, louca e encarcerada, levanta questionamentos sobre os direitos da mulher, numa sociedade predominantemente machista, apesar dos poucos avanços que, à custa de muito suor e sangue, elas vêm conquistando nas últimas décadas.
 
O espetáculo serve, ainda, para fazer uma denúncia muito séria, que diz respeito ao fato de a violência contra as mulheres ser muito mais constante e em proporções acima das exibidas na mídia, do que se pode ter ideia, começando dentro de suas próprias casas, expandindo-se para os seus locais de trabalho e projetando-se para as ruas, lugares públicos ou privados; enfim, por aí...
 
De acordo com o programa da peça, “A ameaça, o medo e a impunidade são utilizados para excluir as mulheres do espaço público e colocá-las em seu “devido lugar”. O silêncio agrava esse quadro. GRITO é um manifesto contra essa injustiça.”
 
Na adaptação para os palcos brasileiros, um detalhe chama a atenção e, com certeza, atribui ao espetáculo um colorido especial.  No original, a personagem conta sua história a uma médica psiquiatra, que presta assistência às internas de um manicômio judicial; aqui, quase todo tempo sentada, nua, numa cadeira de rodas, a uma mínima distância do público, a atriz se dirige diretamente às pessoas, trazendo-as para perto de si, fazendo-as participantes de seu problema, confidentes dos seus dramas e segredos.  Cada um dos espectadores é um esteio ao qual ela procura se apoiar, para poder fazer desfilar seus infortúnios, na tentativa de se livrar um pouco dos fantasmas, do passado, que aterrorizam o seu presente.  Confesso que, apesar de me considerar muito mais HOMEM do que me macho (“Ser macho, hoje é bem fácil; o difícil é achar HOMEM” – Mariozinho Rocha), senti-me envergonhado do grupo a que pertenço, inferiorizado, diante daquele ser, tão frágil, fisicamente, mas tão forte na sua essência.
 
 
Presa, mas não derrotada.
 
 
 
Engano seu: EU NÃO ME RENDO!
 
 
Trata-se de um espetáculo que faz pensar, que provoca uma catarse, se apreciado não meramente como um momento de lazer; aliás, muito se fasta deste propósito.
 
Dignos de todos os elogios são o brilhante trabalho de MARIANA GUIMARÃES NICOLAS, como “performer” e diretora, e sua coragem de se despir, denotativa e conotativamente falando, diante de um público, e defender, com unhas e dentes, a sua condição de fêmea e, mais no fundo, de ser humano.  MARIANA se revela boa atriz e de um fantástico domínio de seu corpo.  Fala pela boca, pela máscara facial e pela excelente expressão corporal.  Como não a conhecia ainda, foi uma bela surpresa para mim.
 
A “performance” se dá sob a supervisão cênica de ANTÔNIO GUEDES; direção de movimento de LUÍSA PITTA; direção musical de PEDRO PORTELLA; iluminação do grande AURÉLIO DE SIMONI; figurinos de PÂMELA CÔTO; cenografia de MARIANA GUIMARÃES NICOLAS e RÔMULO BANDEIRA; programação visual de DUPLA FENDA DESIGN, por RÔMULO BANDEIRA; visagismo de ARY LAGE; fotos de FRED PICANÇO e LUÍSA PITTA; direção de produção de MARIANA GUIMARÃES NICOLAS e PÂMELA CÔTO; confecção e customização de figurinos de RUTH GUIMARÃES ATELIER; os técnicos de luz são BRUNO ARAGÃO e FELIPE ANTELLO; produção de L7 EMPREENDIMENTOS CULTURAIS; co-produção de URBANA PRODUÇÕES; realização de GRUPO L7 DE TEATRO.
 
 
 
Eu é que te acuso!!!
 
 
            Destacam-se, na ficha técnica, o que, lá, é chamado de “live painting”: NANDO PONTES e RÔMULO BANDEIRA.  Os dois, durante toda a duração do espetáculo, vão fazendo intervenções no cenário, pintando novas imagens sobre as já lá existentes.  Assim, a cada dia, o público se depara com um “cenário novo”.  Muito interessante a ideia e muito bem executada pela dupla de artistas plásticos.
 
 
 
Cenário (em processo).
 
 
Esperando... (não Godot; o público)
 
 
            Sugiro que confiram esta ótima proposta, diferente e ousada, até o dia 7 de setembro.
 
 
SERVIÇO:
 
Temporada de 16 de agosto a 07 de setembro de 2014.
Sempre aos sábados e domingos.
Às 17h30min.
Na Sala de Exposições do Parque das Ruínas.
Rua Murtinho Nobre, 169 Santa Tereza /// (21) 2215-0621 e (21) 2224-3922
Duração do espetáculo: 50 minutos
Indicação: 18 anos
Ingresso: R$ 30,00 (inteira)
 
 
 
 
(FOTOS DE FRED PICANÇO E LUÍSA PITTA)

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