domingo, 3 de agosto de 2014


DOIS AMORES E UM BICHO

 

 

(OU MUITOS BICHOS PARA POUCOS AMORES?)

 

 

 

 


 

 

 

 

            Para mim, um espetáculo é bom, quando saio do teatro feliz, seja que gênero for, e com vontade de ligar, imediatamente, para todos os meus amigos (o custo seria alto, graças a Deus), recomendando-lhes a peça.  Sempre fui assim.  Se gosto de um espetáculo teatral, de um filme, de um livro, de um disco, não sossego, enquanto não conseguir fazer com que as pessoas que me são muito caras possam compartilhar comigo o prazer daquela “degustação”.

            Foi o que aconteceu, numa noite chuvosa e fria de uma sexta-feira, quando deixei o Galpão das Artes do Espaço Tom Jobim, dentro do Jardim Botânico.

            O nome da peça é DOIS AMORES E UM BICHO, de um autor venezuelano, GUSTAVO OTT, pela primeira vez encenado em palcos brasileiros, e que, infelizmente, só fica em cartaz até o dia 10 de agosto.  NÃO PERCAM!!!  Espero que o espetáculo se transfira para outro teatro, finda a atual temporada.  Gostaria de revê-lo.

            Procurarei ser breve na justificativa para tanta empolgação por essa peça.  A leitura de uma simples sinopse do texto já é motivo para atrair o espectador ao teatro.  É instigante e abre um leque de expectativas para quem se propõe a assistir ao espetáculo.

 

 


Vítor Fraga.

 

 


Yndara Barbosa (de costas) Ana Paula Novellino e Vítor Fraga.

 

 


 

 

SINOPSE 1: “Num zoológico, um orangotango maltratado chama a atenção de uma família, que, a partir daí, relembra um episódio traumático do passado.” (Mais instigante é impossível!  Economia de palavras, provocando interesse e alimentando a curiosidade.  O porquê dos maus-tratos?  Que “episódio do passado” teria uma relação com um orangotango maltratado num zoológico?)

SINOPSE 2: “Uma família está entretida num zoológico.  Isolado em sua jaula, um orangotango chama a atenção.  O bicho fora colocado em quarentena, por ter molestado outro macaco.  O motivo leva CAROL, veterinária do zoológico, a se lembrar do episódio que levou o pai, PABLO ESTEFANO, à prisão, quando ela era criança.  Ele matara o cachorro da família.”  (Mais detalhes instigantes.  O verbo “molestar” apresenta dezenas (isso mesmo) de significados.  Por qual deles o pobre orangotango teria sido responsável?  Que razão teria levado o pai da veterinária a matar o cachorro da família e que relação isso teria com a molestação do animal enjaulado a um outro bicho do zoológico?)

SINOPSE 3:DOIS AMORES E UM BICHO foi adaptado do texto do venezuelano GUSTAVO OTT.  No espetáculo, o público é convidado à sala de estar de uma adorável família, às voltas com crimes do passado e do presente.  Em meio a um jogo perverso e patético, eles encenam e revivem o passado, investigando os motivos que levaram PABLO, o pai, a espancar um cachorro, até a morte, há 15 anos.  No presente, novos assassinatos de animais começam a ocorrer em um zoológico das redondezas.  Os crimes teriam ligação?!  (Agora, é para levar o leitor da sinopse a largar tudo o que está fazendo e correr ao teatro.  Crimes do passado e do presente?  A forma como Pablo matou o cão foi por espancamento (pontapés), e há 15 anos?  Mortes sucessivas de animais no zoológico?  Assassinatos ou mortes naturais?  Ligação entre tudo isso?)

 

 


Ana Paula Novellino e Vítor Fraga.

 

 


 

 

O enredo se destaca por seu caráter inusitado.  Um fato acontecido no passado, quando CAROL tinha nove anos, levou seu pai, PABLO, a cumprir, por quarenta dias, uma prisão: ele matara, a pontapés, o cão da família, mas a filha não entendera o motivo.  Apenas KAREN, a mãe da menina, sabia o segredo, ou seja, a causa de tão brutal e letal espancamento.

O tempo passou, CAROL, agora moça, se tornou veterinária e foi trabalhar no zoológico próximo à residência da família, lugar este visitado, frequentemente, por seu pai, o qual também era veterinário, daí uma grande identificação e afinidade entre os dois, muito mais do que entre mãe e filha.

 

 


Yndara Barbosa.

 

 

Numa tarde, em visitação ao zoo, o casal PABLO e KAREN, encontrou um orangotango confinado, isolado, numa jaula, “de castigo”, e ao questionar o motivo daquilo, ficaram sabendo, pela filha, que o animal, macho, estava “de quarentena”, porque estava tentando praticar sexo com outros animais do mesmo sexo.

Aquela explicação mexeu, profundamente, com o casal e, a partir dali, o passado veio à tona e ficou esclarecido o que levara PABLO a, num ato de total desatino, violentar, até a morte, o cão da família: este também tinha o hábito de práticas homossexuais com outro cão da casa, o que era inadmissível para o chefe da família. 

Há quinze anos, uma bomba explodira em uma escola, matando crianças,  professores e  funcionários.  Exatamente no momento em que a TV, em casa da família, noticiava o terrível, estúpido e inaceitável ato terrorista, o pai percebera a prática “errada e proibida” dos dois cães machos, sendo que, segundo ele, o sodomizado (Bandido) tentava não ceder às investidas do “tarado” (Cabral),  que, maior e mais forte, o molestava, “à força”, às vistas da família.  A morte cruel de quinze seres humanos não fora capaz de superar a fúria do homem diante de um fato muito menos grave, o relacionamento homossexual entre dois animais de classe inferior.

 

 


Flashback.

 

 


 

 

“Matei porque era um cachorro homossexual”.  Essa frase do personagem gera uma desconfiança de que um homossexualismo latente, inconsciente ou conscientemente não admitido e aceito por ele, bem lá no seu âmago, pode ter sido a verdadeira causa de sua homofobia, o que o levou ao tresloucado gesto.  Quem assistir à peça poderá refletir sobre isso, juntando trechos de algumas de suas falas à maneira como elas são ditas.

 

 


Quem sou eu?

 

 

A homossexualidade entre não-humanos, há muito, vem sendo motivo de estudos sérios e profundos, e a ciência já afirma ser um fato real, incontestável, entre as mais diferentes espécies do reino animal.  E este é um dos ganchos utilizados pelos “gays” na defesa de sua causa: o homossexualismo é patente entre animais de uma forma geral, porém o Homem é o único animal homofóbico, motivo de tantas tragédias, no mundo moderno e no passado.

Até aquela tarde, no zoológico, a família não havia travado uma conversa acerca do que levara PABLO ao curto período de prisão, quinze anos atrás, entretanto a insistência da filha em saber o que acontecera, e seu porquê, gera um diálogo em que reinam, à solta, o patético, o perverso, o tenso, o sarcasmo, o sádico e, até mesmo, o lírico.  Por outro lado, a troca de farpas e acusações, sem que se saiba até que ponto os personagens são sinceros no que dizem ou mentem, para se livrarem de culpas e arrependimentos, leva ao término de um casamento com aparência sólida, mas de alicerces frágeis.

O texto, muito bem escrito e, da mesma forma traduzido, é bem atual – pode-se dizer “de vanguarda” - por tratar de temas tão em evidência nas mídias, como homofobia (o principal de todos), violência, terrorismo, hipocrisia e intolerância, de uma forma geral, dentre outros.  Nota-se nele um interessante paralelo entre terrorismo e intolerância e uma dualidade, durante todo o seu decorrer, entre tolerância e intolerância.  Aquela, como caminho para a libertação, para uma independência; esta, como uma porta para os conflitos, os crimes.  Os diálogos são muito bem construídos e não economizam palavras que funcionam como dedos certeiros em feridas mal cicatrizadas.  Não se pode omitir que o texto mescla diálogos com uma espécie de solilóquios, quando o personagem “conversa” diretamente com a plateia.  É muito bem aplicada essa técnica na peça.  Também é bastante interessante a presença dos “flashbacks”.

 

 

Foto: Divulgação

 

 

 


 

 

O espetáculo foi escrito para ser apresentado no tradicional palco italiano, entretanto o diretor, GUILHERME DELGADO, optou pelo formato de arena, o que, indubitavelmente, foi um grande acerto, uma vez que a proximidade do público com a cena favorece uma participação mais ativa dos espectadores, que se “projetam” nas situações, quase que participando da contenda, tomando este ou aquele partido, nas discussões que envolvem, direta ou indiretamente, aspectos ligados a ética, moral, homossexualismo, justiça, impunidade, consciência crítica, “politicamente correto” e mais alguns outros valores sociais.  

 

Comentários sobre a ficha técnica:


TEXTO: GUSTAVO OTT – já foram feitos.

 

TRADUÇÃO: CARLITO AZEVEDO – Idem.

 

DIREÇÃO e CONCEPÇÃO VISUAL: GUILHERME DELGADO – Excelente trabalho!  Não assisti a nenhuma outra montagem deste texto, mas posso afiançar que ganhou muito em qualidade pelas mãos de um diretor competente.  Além dos três membros da família, há a participação de outros poucos personagens de pouca relevância, os quais, originalmente, eram representados pelas duas atrizes, entretanto a opção do diretor, em incluir um quarto ator, revezando-se em todos, foi muito acertada.

 

ELENCO: VÍTOR FRAGA (PABLO ESTEFANO), ANA PAULA NOVELLINO (KAREN), YNDARA BARBOSA (CAROL) e LUIZ PAULO BARRETO (vários personagens).  Há um grande equilíbrio na atuação do quarteto, com um certo destaque para VÍTOR e ANA PAULA, os quais, talvez, pela grande carga dramática de seus personagens, conseguem, em determinados momentos, prender mais a atenção da plateia e provocar-lhes sentimentos até opostos, como ódio e piedade.

 

CENOGRAFIA: CARLOS AUGUSTO CAMPOS – Muito boa!  Algumas pequenas jaulas, de tamanhos diversos, estão espalhadas sobre a arena ou pendentes do teto, “recheadas” de animais de pelúcia (lindos, por sinal), de vários tamanhos, aprisionados, à espera de uma liberdade (vão, aos poucos, sendo retirados das jaulas, à medida que vão morrendo), sentimento, de certa forma, que pode atingir também a plateia, a qual, pela geografia do acanhado espaço do teatro, pode se sentir incomodada, o que é muito positivo, dentro do contexto da peça.




 



Luiz Paulo Barreto.

 

 

CENOTÉCNICA: JOÃO BATISTA.

 

FIGURINO: RICARDO ROCHA – Nada a destacar; apenas dizer que são interessantes e estão inseridos no contexto da peça.

 

ILUMINAÇÃO: DANIEL ARCHANGELO – Boa, responsável por realçar e valorizar certas cenas do espetáculo.

 

ASSISTENTE DE ILUMINAÇÃO: DANIELE DE DEUS.

 

PROGRAMAÇÃO VISUAL: NOT.A.PIPE.

 

PRODUÇÃO EXECUTIVA: DANIEL ARCHANGELO.  

 

DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: GUILHERME DELGADO.

 

REALIZAÇÃO: TENTÁCULOS ESPETÁCULOS.

 

 


Vítor Fraga e Luiz Paulo Barreto.

 

 

 

Um bom espetáculo, no qual há mais bichos do que amores, o qual, apesar da aridez da temática, diverte, mas também faz refletir e pensar na maravilha que seria se vivêssemos num planeta chamado TOLERÂNCIA.

 

 

 


(FOTOS: MAYRA VAZ)

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