segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

“NASCI PRA SER DERCY”

ou

(ACHO QUE VI A  DERCY NO PALCO.

VI SIM, ORA SE VI!)

ou

(MERECIDÍSSIMO TRIBUTO,

FEITO COM

TOTAL COMPETÊNCIA.)

 

 




            Quando esta crítica for publicada, infelizmente, o espetáculo aqui analisado já não estará em cartaz, porque veio para cumprir apenas três sessões, num final de semana, dentro da “Festa do Humor Carioca”, no Teatro Prio. Graças aos DEUSES DO TEATRO e ao convite do meu amigo Caio Bucker, curador do daquele espaço, pude assistir a esta OBRA-PRIMA da COMÉDIA, que fez um grande sucesso, no ano passado, em São Paulo, desde sua estreia, em 13 de janeiro, e já esteve, também, por um único fim de semana, em terra carioca, quando eu estava em viagem, fora do país. Nas duas vezes em que estive na capital paulista, no ano passado, também não consegui assistir ao monólogo, por incompatibilidade de agenda. Os cariocas merecem uma temporada longa de “NASCI PRA SER DERCY”, pelo que não deixarei de torcer; e para muito em breve. Além da capital paulista, o solo já foi apresentado em outras praças do interior de São Paulo e em cidades de outros estados, sempre com lotações esgotadas, total sucesso de público e de crítica.





SINOPSE:

         A peça começa com uma atriz, Vera Finarelli (GRACE GIANOUKAS) entrando num estúdio de gravação, a fim de fazer teste para o papel de Dercy Gonçalves em um filme sobre a vida desse ícone da COMÉDIA.

Conforme vai dando suas falas, Vera se revolta contra o roteiro que lhe fora enviado, cheio de estereótipos e desvios da verdade.

A aspirante ao papel de protagonista vai, aos poucos, e numa escala crescente, mostrando, e provando, a um ser - uma voz, de MIGUEL FALABELLA –, a qual se esconde por trás de uma câmera e vai conduzindo o que ele chama de um “autoteste”, quão errado estava o roteirista quanto à imagem de Dercy Gonçalves.  

A mãe da personagem era grande fã de Dercy, e sua cabeleireira, e, por isso, Vera cresceu conhecendo, “de perto”, mas não tanto, porque nunca a encontrara pessoalmente, o verdadeiro ser humano, nascido Dolores Gonçalves Costa, e sendo influenciada pelo exemplo dessa artista icônica.

Vera, então, transformando-se em Dercy, começa a mostrar quem, realmente, foi essa mulher à frente de seu tempo. 

 


 


          Por meio de um brilhante texto “desengordurado” e fruto de uma minuciosa pesquisa, de um jovem dramaturgo, KIKO RIESER, que também assina a direção da peça, o público - creio que na sua grande maioria -, acostumado a uma imagem distorcida de Dercy, criada e alimentada pela grande mídia, vai tomando conhecimento dos mais significativos momentos da sua vida. É uma linda, comovente e merecida homenagem à artista, uma das maiores atrizes do século XX. Após um ano de sua estreia, o espetáculo, muito merecidamente, acumula indicações a prêmios, já com uma conquista para KIKO, na categoria “Melhor Dramaturgia Original”, num deles, em São Paulo. E muitos outros mais ainda hão de vir.



         Dercy Gonçalves (23/06/1907–18/07/2008), nome artístico de Dolores Gonçalves Costa, faleceu há 15 anos e meio, aos 101 anos, “sem que jamais tenha havido, nos palcos brasileiros, uma peça que a homenageasse”, até que o jovem KIKO RIESER resolveu fazer-lhe justiça. Até então, com o mesmo foco deste, considero de igual qualidade, como o seu trabalho, a cuidadosa produção de uma minissérie, produzida pela TV Globo, em 2012, “Dercy de Verdade”, em quatro capítulos, baseada no livro “Dercy de Cabo a Rabo”, de autoria de Maria Adelaide Amaral, que também assinou o roteiro da produção.


(Foto: Fonte desconhecida.)


   Nascida em Santa Maria Madalena, cidade do interior do Rio de JaneiroDolores foi criada pelo pai, Manuel, um alfaiate, que era alcoólatra e lhe batia muito, e abandonada por sua mãe, Margarida, empregada doméstica, a qual largou os sete filhos e o marido, ao descobrir uma traição deste. Desde muito jovem, Dolores já havia descoberto que “nascera para ser Dercy” e que Madalena era um universo muito pequeno, para acomodar seu imenso talento. Lá, a jovenzinha trabalhava na bilheteria de um cinema e ficava a admirar as artistas que contracenavam nas telas, procurando imitá-las. Em casa, seu pai sempre a castigava, com pancadas, quando a via se maquiando, igual às mulheres famosas, e dizia estar criando uma filha “perdida”, que não valeria nada e seria “mulher da vida”. Isso a magoava profundamente e ela desejava, a cada dia, sair do inferno que era viver em sua casa, fugir, para sempre, das surras e humilhações do pai e se livrar da provinciana cidade que a xingava de “prostituta”, pois andava, pelas ruas toda maquiada e proferindo xingamentos.




    Muito ao contrário da imagem de “devassa”, formada em torno dela, Dercy se casou com Eugênio Pascoal, um ator de uma companhia de TEATRO, com quem ela havia fugido de Madalena, aos 17 anos, porém se manteve virgem, após a união, por não ter conseguido levar o ato adiante, por conta de ser tímida demais. Quem diria?! A “puta” "que nem gostava de sexo", ainda que, sem emprego, tenha aceitado trabalhar numa “casa de tolerância”, em São Paulo, com o objetivo de ganhar dinheiro para custear o tratamento de tuberculose de Eugênio – uma mulher de grande índole e generosidade -, porém, na hora do seu encontro com o primeiro cliente, começou a chorar e contou-lhe toda a sua vida. Este, Valdemar, se emocionou com seus relatos e lhe deu dinheiro, aconselhando-a a ir morar no Rio de Janeiro, onde, segundo ele, ela teria chance de virar uma grande estrela.



   Na capital federal, Dercy descobriu estar tuberculosa, possivelmente contagiada pelo marido, e ficou desesperada. Valdemar, que havia se tornado um grande benfeitor, reapareceu na sua vida e a internou num sanatório, pagando-le todas as despesas, pelo que ela lhe ficou imensamente grata. Com o passar do tempo, viu-se apaixonada por ele, começando a namorá-lo, após a morte de Pascoal. A Valdemar, Dercy se entregou, apaixonadamente, tendo, na sua primeira noite de amor, engravidado. Muito assustada, por estar grávida, pediu-lhe dinheiro, para a prática de um aborto, mas este não aceitou isso e disse-lhe que cuidaria da menina, apesar de ser casado e ter quatro filhos. O próximo passo foi montar uma casa para Dercy, que teve sua filha, Maria Dercimar Gonçalves Senra, nascida dia 24 de dezembro de 1934. Dercimar, mistura do nome do pai e da mãe, faleceu no ano passado, aos 88 anos. Não aceitando a condição de amante, Dercy pressionou o seu protetor a resolver a situação com a esposa e assumi-la, oficialmente, porém, ante a indecisão de Valdemar, Dercy acabou por ter que criar a filha sozinha, dando-lhe a melhor educação, “para que ela não passasse o que eu passei”, após Valdemar ter registrado a menina e desaparecido.




  Muitos homens passaram pela vida de Dercy e todos deixaram boas recordações; e péssimas também. Para não me alongar mais ainda, vou parando por aqui, quanto a esse particular. (OBSERVAÇÃO: As informações biográficas que citei foram extraídas, com adaptações, da Wikipédia, a “enciclopédia livre”, mas estão presentes em dezenas de fontes). Além de uma magnífica atriz cômica, Dercy Gonçalves também acumulou, em décadas de carreira artística, as funções de autora, diretora teatral, produtora teatral e cantora. Oriunda dos espetáculos circenses, tornou-se uma das maiores estrelas do auge do “Teatro de Revista”, na década de 1930 e da produção cinematográfica brasileira, a partir da década de 1940. Foi reconhecida pelo “Guiness Book como a atriz com maior tempo de carreira na história mundial, totalizando 86 anos. Celebrada por suas entrevistas irreverentes, bom humor e emprego constante de “palavrões”, foi uma das maiores expoentes do TEATRO de improviso, no Brasil.



    Não poderia ter sido mais oportuna a ideia de homenagear a grande artista e, sobretudo, a corajosa mulher, uma feminista “de carteirinha”, muito antes de isso se tornar matéria de maior interesse. Desbocada e defensora da mais profunda liberdade, era muito recatada em sua vida íntima, e era preciso que isso ficasse bem claro, no texto da peça, como, realmente, ficou. Dercy, de peito aberto, “sem lenço nem documento”, desafiava, frontalmente, a censura imposta pela ignóbil ditadura militar, surgida com o GOLPE de 64, embora se recusasse, terminantemente, a levantar bandeiras políticas específicas, que não fossem a da irrestrita liberdade e do respeito a todas as formas de existir. Exigia o respeito que lhe era devido, por sua história de vida e seu trabalho. Consagrou-se como vedete do TEATRO de Revista, contudo sua maior contribuição ao nosso TEATRO se deu, ao levar essa expertise para a comédia popular, que ela revolucionou inteiramente, trazendo textos fundamentais para o Brasil e instaurando uma nova forma de interpretar, que rompia com todos os padrões e inaugurava em nossos palcos uma representação genuinamente brasileira.”. Aliás, de “romper padrões”, ela entendia muito, a ponto de, aos 80 anos de idade, no carnaval de 1991, ter desfilado, no topo de um carro da Escola de Samba Unidos do Viradouro, com os seios à mostra, dentro do enredo que a homenageava: “Dercy Gonçalves, o Retrato de um Povo”.



    Chegou o momento de falar sobre a dramaturgia da peça. Um autor tem uma ideia, um propósito, para criar um texto teatral, porém precisa saber de que maneira dará forma a um texto, que “gancho” poderá usar, para tornar concreta uma história a ser representada sobre as tábuas. Pode até parecer, para alguns, não muito original a ideia de colocar uma atriz indo à procura de um teste para ser aprovada como protagonista de um filme e “bater de frente” com um roteiro “fake” e, de forma muito prática, tentar convencer a produção da película a reescrever um novo, abandonando os clichês e as inverdades sobre a vida da personagem que iria representar nas telas. Eu, contudo, considero o expediente empregado por KIKO RIESER excelente, muito bem escrito e bastante valorizado pelo fato de o autor da peça também ter assumido sua direção, e, obviamente, superdimensionado, em termos de qualidade e perfeição, pela magistral interpretação de GRACE GIANOUKAS.


Kiko Rieser

(Foto: Autoria desconhecida.)


    O que KIKO desejou fazer, e conseguiu, foi escrever um texto que buscasse unir o apelo popular e o carisma de Dercy, através de uma profunda pesquisa, mostrando a estupenda importância, muitas vezes ignorada, da atriz para o TEATRO BRASILEIRO e para a liberdade feminina, bem como sua inquestionável singularidade, sem preocupação de ficar engessado na cronologia dos fatos, trazendo a lume, de forma reforçada, lembranças da artista, aleatoriamente. É sempre importante lembrar que, no tempo de Dercy, para exercer a profissão, as atrizes eram obrigadas a se munir de uma carteirinha, a mesma com que se identificavam as prostitutas, e, também, que os movimentos feministas ainda eram incipientes. É obvio que, para mostrar uma Dercy, tão longeva, em todas as fases de sua vida, tanto particular como profissional, o autor teria que escrever um monólogo que duraria, certamente, mais algumas horas, o que, logicamente, o tornaria impraticável de ser montado. Ficaram de fora, por exemplo, as atividades de Dercy na televisão e nos filmes, que não foram pequenas nem desprezíveis, mas isso, de forma alguma, diminui o grande mérito da dramaturgia.



     Agora, tenho que me policiar, para não escrever laudas sobre o trabalho de GRACE GIANOUKAS, uma das mais importantes atrizes brasileiras, cuja carreira venho acompanhando, há muito tempo, mais precisamente, desde 2001, quando, pela primeira vez, tive contato com o seu fazer teatral, no espetáculo “Terça Insana”, idealizado e coordenado por ela, que permaneceu em cartaz por 15 anos, com total aprovação do público e da crítica, e, se dependesse da vontade destes, estaria sendo apresentado até hoje. A propósito, bem que poderiam fazê-lo renascer. Fui espectador assíduo da “Terça” (Tenho os dois dvs do espetáculo.) e é impossível não me lembrar nem deixar de dar boas gargalhadas, pensando em algumas de suas personagens naquele espetáculo, como Aline Dorel, a drogada, por ansiolíticos; Cinderela, a traficante de drogas; e a Mulher Limão. Não tenho a menor dúvida de que todos os comediantes da atualidade beberam, à farta, do humor da “Terça” e a têm como referência, da mesma forma como tiveram, na figura de grandes mestres, além de Dercy, outros tantos talentos de sua época, como Oscarito, Grande Otelo, Costinha, Mazzaropi, Colé, Ronald Golias, Chico Anysio, Jô Soares, Agildo Ribeiro e Renato Aragão, por exemplo.




      GRACE GIANOUKAS é, indubitavelmente, uma das grandes damas do humor e da COMÉDIA brasileira. Seu “timing” cômico é invejável. E com que precisão deixa de ser Vera Finarelli para se transformar em Dercy Gonçalves, e vice-versa! Como ninguém, ela sabe administrar uma sequência de caretas, explorando as máscaras faciais, e modulando a voz, o que dispensa até um texto verbal. GRACE é a cara do humor e da COMÉDIA, contudo, para a minha admiração, conseguiu me surpreender, uma vez que, da mesma maneira como nos diverte, também nos emociona com a sua emoção, em determinados momentos da peça, uma válvula de escape, um “suspiro”, para que possamos dar descanso aos músculos da face. GRACE também é uma ótima atriz dramática. Mergulhou, de cabeça, na construção da personagem, sem a preocupação de imitá-la, embora eu tenha visto, no palco do Teatro Prio, uma “Dercy reencarnada”.



   Tudo, com simplicidade, porém na medida certa, funciona nesta montagem, “cai como uma luva”: a voz, em “off”, de Miguel Falabella; a cenografia, de KLEBER MONTANHEIRO, um estúdio de gravação, com poucos, e fundamentais, elementos cênicos; o extravagante figurino, também assinado por MONTANHEIRO, marca registrada de Dercy; a bela luz pontual, de ALINE SANTINI; o acertadíssimo visagismo, de ELISEU CABRAL, que muito contribui para a caracterização externa da personagem; a trilha sonora e os arranjos, a cargo de MAU MACHADO; e os trabalhos, corporal e de voz, desenvolvidos por BRUNA LONGO e ANDRÉ CHECCHIA, respectivamente.




 FICHA TÉCNICA:

Texto: Kiko Rieser

Direção: Kiko Rieser

Assistência de Direção: André Kirmayr


Atuação: Grace Gianoukas
Voz “Off”: Miguel Falabella

 

Cenário: Kleber Montanheiro

Figurino: Kleber Montanheiro

Desenho de Luz: Aline Santini
Trilha Sonora Original e Arranjos: Mau Machado
Canção-Tema “SÓ SEI SER DERCY”: Danilo Dunas e Pedro Buarque
Visagismo: Eliseu Cabral

Preparação Corporal: Bruna Longo
Preparação Vocal: André Checchia
Colaboração no Processo: Fernanda Lorenzoni
Técnico de Luz: Hugo Peak
Técnico de Som: Nayara Konno
Contrarregra (Estagiário): Peterson Gonçalves
Assistência de Figurino: Marcos Valadão
Cenotécnico: Evas Carreteiro
“Design” gráfico: Letícia Andrade (Nós Comunicações)
Assessoria de Imprensa: Flavia Fusco Comunicação

Mídias Sociais: Pierre Nunes
Fotos: Heloísa Bortz

Direção de Produção: Paulo Marcel
Assessoria Jurídica: Ana Capozzi

Produção Local: Carambola Produções
Realização e Produção Nacional: Ventilador de Talentos

 

 

 



 

            “NASCI PRA SER DERCY” é um espetáculo que merece ser assistido pelo maior número possível de pessoas. Ele tem a cara do verão carioca, porém a ciência o recomenda em qualquer estação do ano; medicamento para curar a tristeza; e sem contraindicações.




 

 


FOTOS: HELOÍSA BORTZ

 

 

GALERIA PARTICULAR:

(FOTOS: JOÃO PEDRO BARTHOLO)





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