“MATAR OU MORRER – EUCLIDES DA CUNHA E DILERMANDO DE ASSIS”
ou
(UM OUTRO VIÉS PARA A
“TRAGÉDIA DA PIEDADE”.)
Apesar de só estar sendo publicada agora, esta crítica foi
escrita a mão, na cidade de Barrie, na província de Ontário,
Canadá,
onde eu me encontrava em férias. O motivo de ela ter sido escrita a mão, para,
posteriormente, ser digitada, recebendo o acréscimo de ilustrações de imagens,
é que não me acostumei, ainda, a trabalhar com um “notebook”, o qual
poderia ser levado para onde eu fosse; mas já estou me preparando para adquirir
um. É impossível, para a minha atividade, viver sem uma dessas máquinas
infernais. Sim eu sou do século passado (Momento descontração.)
A peça em tela já saiu de cartaz, no dia 27 de
agosto próximo passado, tendo cumprido temporada no Centro Cultural Justiça Federal,
mas fiz questão de deixar o registro da minha admiração por ela. Como só pude
assistir ao espetáculo no penúltimo dia que antecedeu a minha viagem (17
de agosto/2023) e por estar, à época, com o meu computador avariado,
nas mãos de um técnico, para reparo, não consegui escrever a crítica que a peça
merecia, o que faço agora, com imenso prazer. Gostei demais desta montagem e
não poderia, por isso, deixar de escrever sobre ela, ainda que de forma mais
simplificada, porém abundante em verdade.
O texto foi escrito por MIRIAM
HALFIM, a qual me fez o convite, recebeu a direção de ARY COSLOV, contando com um excelente elenco, formado por SÁVIO MOLL, MARCELO AQUINO e MARIA
ADÉLIA.
No espetáculo, uma juíza, interpretada por MARIA ADÉLIA, é tão obcecada pela história de amor e ódio, envolvendo um triângulo amoroso, formado entre o escritor Euclides da Cunha (SÁVIO MOLL), Dilermando de Assis (MARCELO AQUINO) e Anna de Assis, personagem que não está, presencialmente, nesta peça, que acaba se tornando mediadora de um reencontro fictício e turbulento, promovido por ela, entre Euclides, marido de Anna, e Dilermando, jovem amante desta, numa espécie de “limbo da existência”.
Três detalhes, de saída, precisam ser
mencionados. O primeiro é que a chamada “tragédia da Piedade”
é considerada “o grande drama social republicano do início do século XX”,
envolvendo toda a sociedade brasileira de 1909, em torno de uma questão que é
muito cara aos homens, a “honra”, principalmente para os
machistas de plantão. “Traição se pune com sangue, lavagem da honra,
matando o ‘inimigo’”. A “tragédia” aconteceu no subúrbio
carioca, no bairro da Piedade, quando o Rio
de Janeiro ainda era a capital do Brasil. Euclides da Cunha, famoso
escritor, autor do clássico “Os Sertões”, não era um bom marido
para Anna
Emília, a "S'Anninha", e, diante da traição de sua esposa com o jovem cadete do Exército Brasileiro, Dilermando
de Assis, bem mais jovem que ela, enquanto Euclides passou um longo
tempo afastado da família, principalmente aquele em que esteve presente no cenário da “Guerra
dos Canudos”, tomou a decisão de “lavar sua honra com
sangue”. No duelo, a bala, travado pelo dois, Euclides
levou a pior e sucumbiu, morto por Dilermando, após aquele ter
atingido, o irmão deste, Dinorah de Assis (Estava no lugar errado, na hora errada.), que o levou, posteriormente à condição de paraplégico, até seu suicídio, na águas do Rio Guaíba, em 1921. Dilermando atirou, pois, em Euclides em legítima
defesa, motivo que o fez passar por dois julgamentos, tendo sido inocentado nos
dois, fato que foi desaprovado, e jamais perdoado, pela maioria da sociedade da
época. Se, hoje em dia, em pleno século XXI, ainda vemos acontecer,
diariamente, casos de feminicídio, pelo fato de, infelizmente, alguns
homens não aceitarem o fim de um relacionamento afetivo, considerando-se donos,
proprietários, de suas esposas, noivas ou namoradas, o que se poderia esperar
de pessoas que viviam sob a "égide" de uma falsa moral, muito imposta pela
religião, principalmente? Destarte, o
homicídio ao marido traído, pelo amante de sua esposa, tornou-se um escândalo,
pondo em cheque a discussão sobre o “valor da honra”. E Euclides
foi considerado, duplamente, a vítima de toda a fatal trama.
O segundo
detalhe a ser destacado é o fato de a personagem da juíza, de certa forma, ter
a ver com MIRIAM HALFIM, uma vez que
a autora do texto, segundo o “release” do espetáculo, que me
chegou às mãos, via Dobbs Scarpa – Assessoria de Imprensa, também foi tomada por um
enorme interesse pela “tragédia”, depois de ter conhecido
a história de Dirce de Assis Cavalcanti, filha de Dilermando de Assis, hoje
com 90
anos. Dona Dirce foi apontada, tantas vezes, como “a
filha do assassino”, tendo sofrido “bullying”, na escola e na vida, por
causa do julgamento moral da sociedade que condenou seu pai — mesmo
absolvido em dois tribunais —, por ter matado o consagrado escritor, em
legítima defesa – é bom que se repita.
E o terceiro detalhe está afeto ao
título da peça, que reproduz a intenção com que Euclides fora à procura
de Dilermando,
naquele fatídico 15 de agosto de 1909. Há relatos de que, quando foi à casa
do amante de sua esposa, Euclides teria dito: “Vim
para matar ou morrer”. E já entrou atirando. Na verdade, Dilermando,
apontado, tantas vezes, como assassino, nunca tivera a intenção de matar. Euclides,
sim, saiu de casa com esse propósito, bem claro, em mente. “Mas, por ser membro da ‘Academia
Brasileira de Letras’, a imprensa ficou do lado dele.”. Euclides
era um homem que passava muito tempo fora, viajando. Nessas ausências, Anna,
que se sentia muito só, foi com os filhos para uma pensão, onde conheceu Dilermando, que,
na época, tinha 17 anos, e ali eles se apaixonaram. Segundo MIRIAM HALFIM, “a peça é uma tentativa de
promover um encontro entre os dois, 114 anos depois, e buscar um pouco de paz”.
Felicito a dramaturga pela ideia de
levar ao palco uma obra que revisita um dos maiores escândalos de amor, que
abalou, ao extremo, a mídia da época. De uma forma muito original e criativa, MIRIAM traz a lume um discurso que
dividiu, radicalmente, a opinião pública. O que mais louvo, na iniciativa da
autora do texto, é o desejo de resgatar a moral e o caráter de um homem,
verdadeiramente, de bem, que, por matar o marido de sua amante, foi julgado e
considerado inocente, amparado pela tese de legítima defesa. Não “da
honra”, mas física; a defesa de vidas humanas. Vítima da sanha extrema
dos que o condenavam, no seio da opinião pública, muito alimentada pela imprensa
da época, mereceu um segundo julgamento, no qual se ratificou a sentença
aplicada ao primeiro.
Duas teses jurídicas pontuaram
aqueles dois julgamentos. Uma, como já mencionei, a que livrou o assassino das
grades, é a da legítima defesa, pela maneira como Euclides procurou,
deliberadamente, sua esposa, a quem maltratava bastante, e o jovem Dilermando,
para matá-los, na frente dos próprios filhos. Não era intenção de Dilermando
revidar a violência de Euclides, entretanto, como numa
tragédia grega, o escritor matara, antes, acidentalmente, o irmão do cadete, e teria feito o mesmo com
os dois “caçados”, como animais selvagens, se Dilermando não tivesse atingido
de morte seu “algoz”. Por ser militar, o assassino do escritor sabia como
manejar uma arma de fogo, ao passo que Euclides, além de totalmente
transtornado, mordendo-se de ciúmes, não tinha a menor intimidade com um
armamento de fogo.
Um recorte sociológico de época,
infelizmente, “justifica” o porquê de uma postura tão "inquisitória" contra o assassino. Euclides
se apoiava numa segunda tese, que vigorou, durante muito tempo, no Brasil,
a qual preconizava a absolvição para assassinos que cometeram suas atrocidades
em nome de uma pretensa “legítima defesa da honra”, tese
esta que, felizmente, não faz mais parte das figuras jurídicas em vigor,
surgida no Código Penal Brasileiro de 1940
e julgada inconstitucional no ano em curso de 2023.
MIRIAM
HALFIM foi muito feliz na construção de uma dramaturgia que reúne, num
encontro fictício, promovido por uma juíza, os dois litigantes, saídos de seus
túmulos, mais de 100 anos após aquele infortúnio.
Não se trata, absolutamente, de um
terceiro julgamento, muito menos de se procurar impingir uma culpa a um ou a
outro. Ou, muito menos, à mulher, a qual, depois de, oficialmente, viúva,
acabou por contrair núpcias com Dilermando. Dois grandes méritos tem
o texto: a originalidade e a carpintaria dramatúrgica, muito bem representada
pelos diálogos – justos e necessários -, entremeados por passagens narrativas,
dirigidas, diretamente, à plateia, com a quebra da quarta parede.
Apoiado num impecável texto, ARY COSLOV desenvolveu sua proposta de
trabalho, como diretor, com um ótimo rendimento, repetindo o sucesso da dupla (ARY / MIRIAM) em outras peças: “Meus
Duzentos Filhos”, “Freud e Mahler” e “O
Homem do Planeta Auschwitz”, tirando partido, inclusive, do ambiente.
Os dois protagonistas entram em cena vindos de um piso inferior (Os
camarins do Teatro do CCJF ficam ali situados.), por uma escada que dá
acesso ao fundo do palco, como se saíssem de seus túmulos, para voltar ao mundo
dos vivos. E pelo mesmo caminho saem de cena, ao final da peça, apaziguados,
para um merecido descanso eterno, para ambos, depois de, até ali, uma relação
muito conturbada. Essa marcação é um grande "achado".
ARY administra
muito bem o deslocamento e o posicionamento dos atores em cena, e provoca
bastante curiosidade no público, ao fazer com que o espetáculo inicie com uma
atriz – não a personagem – MARIA ADÉLIA,
situando a plateia na narrativa que vai acontecer sobre aquelas tábuas. Depois
de uma espécie de prólogo, que antecede a entrada em cena de Euclides
e Dilermando,
ADÉLIA deixa bem clara sua
transformação em personagem, a juíza, colocando uma peruca e calçando um par de
sapatos, à mostra, quase no proscênio. É a materialização da magia e do “milagre”
do TEATRO, à vista dos espectadores.
O elenco da peça atua em total
sintonia, visto ser formado por três grandes nomes do TEATRO BRASILEIRO: SÁVIO
MOLL, MARCELO AQUINO e MARIA ADÉLIA. O primeiro incorpora o
gênio irascível de Euclides e, repetidas vezes, demonstra – o personagem – sobrepor a emoção à razão. AQUINO, por sua vez, muito cônscio de sua correta atitude, procura – o personagem – fazer com que o “cego”
Euclides
desça de sua pose de “marido herói traído” até o limiar
do real. Ambos os atores realizam um excelente trabalho de interpretação. Ainda
que sua personagem seja considerada, tecnicamente, secundária, MARIA ADÉLIA, com seu talento de atriz,
valoriza o papel, pondo-se como uma ótima mediadora, à procura de uma solução
final, boa para ambos os combatentes. Conquanto procure se manter neutra,
nota-se, levemente, que, na sua balança, o prato referente a Dilermando
pesa um pouco mais, obviamente, já que é a visão, muito clara e transparente de
alguém que prioriza a razão. Com relação a isso, outro detalhe que achei bem
interessante foi o fato de MIRIAM HALFIM
ter preferido uma juíza a um juiz. É importante que, cada vez mais, as mulheres
ganhem um merecido protagonismo na sociedade, em todos os seus setores.
Dentro dos atuais padrões de
dificuldade para se conseguir o grande feito de conseguir montar uma peça de TEATRO, o espetáculo não se curva ao
luxo, podendo, até mesmo, ser considerado uma produção “franciscana”, porém com todos
os setores de uma montagem teatral funcionando a contento: a cenografia,
de MARCOS FLASKMAN; os figurinos,
de WANDERLEY GOMES; a iluminação,
de AURÉLIO DE SIMONI; e a trilha
sonora, de ARY COSLOV.
Autora:
Miriam Halfim
Direção:
Ary Coslov
Elenco:
Marcelo Aquino, Maria Adélia e Sávio Moll
Cenário:
Marcos Flaksman
Figurino:
Wanderley Gomes
Iluminação:
Aurélio de Simoni
Trilha
Sonora: Ary Coslov
Assessoria
de Imprensa: Dobbs Scarpa Assessoria de Comunicação
Assessoria
de Mídias Sociais: Rafael Gandra
Fotos:
Guga Melgar
Produção
Executiva: Osni Silva
Diretor de
Produção: Celso Lemos
Quando assisto a um espetáculo como
este, deixo-me levar por um misto de alegria e tristeza. Alegria, por ter tido
acesso a uma montagem de tão excelente qualidade; tristeza, por ver que tanto
sacrifício e empenho para erguer um espetáculo teatral chegue a um público tão
pequeno, num espaço bem acanhado e realizado numa temporada muito curta, com menos sessões do que, realmente, merecia, de 03 a 27 de agosto de 2023.
FOTOS: GUGA MELGAR
GALERIA PARTICULAR:
Com Miriam Halfim.
Com Ary Coslov.
Com Sávio Moll e Maria Adélia.
Com Marcelo Aquino.
Cumprimentado Sávio Moll.
VAMOS AO TEATRO!
OCUPEMOS TODAS AS SALAS
DE ESPETÁCULO
DO BRASIL!
A ARTE EDUCA E CONSTRÓI,
SEMPRE!
RESISTAMOS, SEMPRE MAIS!
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PARA QUE, JUNTOS,
POSSAMOS DIVULGAR
O QUE HÁ DE MELHOR
NO TEATRO BRASILEIRO!
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