ANTÍGONA
(UM
ÓTIMO PRETEXTO PARA UM GRANDE TRABALHO DE ATRIZ E UMA INESQUECÍVEL MONTAGEM.
ou
UM
DUELO ENTRE IDEIAS E IDEAIS, ENTRE O VALOR E O CUMPRIMENTO DAS LEIS DIVINAS E A
PAGÃS.
ou
SUBMISSÃO?
JAMAIS!!!)
Vou
sempre ao TEATRO com a intenção de
gostar e de sair do espetáculo mais enriquecido, em todos os sentidos. Também
devo confessar que acho uma grande temeridade e uma prova de imensa coragem,
até de muita ousadia, adaptar um clássico da dramaturgia universal, seja lá de
que forma for.
Fui ao Teatro Poeirinha, num domingo (8 de janeiro / 2017), muito curioso e
cético, tentando imaginar o que AMIR
HADDAD e ANDRÉA BELTRÃO, dois “louquinhos”, no sentido mais carinhoso
do adjetivo, haviam aprontado, para contar a história de “ANTÍGONA”, um dos maiores clássicos da
tragédia grega, escrita por SÓFOCLES,
em torno do ano 441 ou 442 a .C. (há controvérsias), numa versão “pocket”, em forma de um monólogo.
Havia,
recentemente, assistido, pela quinta vez, ao musical “Gota D’Água [A Seco]”, uma obra-prima,
de Rafael Gomes, sobre outra, de Paulo Pontes e Chico Buarque, os quais recontaram o mito de “Medeia”, numa versão urbana, dos nossos dias. Rafael, na sua adaptação, não pôs, fisicamente, no palco, todos os
personagens da tragédia, mas os manteve na história, sem alterar, absolutamente,
nada do original, utilizando, apenas, dois personagens, Joana e Jasão, para contar
a saga de Medeia.
A
proposta de Amir e Andréa era mais audaciosa ainda, pois
apenas uma atriz, em cena, deveria conduzir todo o fio do enredo de “ANTÍGONA” sem, obviamente,
descaracterizar o texto original, também não omitindo a participação dos demais
personagens. E não é que o conseguiram?!
E como!!!
E
o que eu vi no palco, em “apenas” sessenta minutos? Resposta muito simples: um dos melhores espetáculos da safra de 2016,
visto que estreou em novembro do ano passado, uma concepção teatral rica em
elementos dramatúrgicos, plásticos e de uma admirável visão histórico-social,
capaz de manter o espectador ligado à atriz, sem conseguir dar uma piscada, do
início ao fim da peça.
Tudo é de uma
intensidade, capaz de atingir as profundezas de cada pessoa presente, naquele
minúsculo e intimista espaço do Poeirinha.
Por
mais interessado em mitologia grega, sempre senti certa resistência, quando se
tratava de ler sobre seus mitos, pela grande quantidade de personagens, pela
complexidade dos nomes e por tantas ligações entre eles. Ficava um pouco “perdido”.
Pois não é que esta montagem de “ANTÍGONA”
é de um caráter didático a toda prova?! Graças, sim, à própria estrutura do texto, que abre espaço
para que a atriz vá mostrando, sem atropelos e de forma muito clara, as
relações e ligações entre os personagens, tudo ilustrado, de forma brilhante,
por uma espécie de “árvore genealógica”,
fixada na parede de fundo do espaço cênico, estabelecendo os laços de
aproximação dos personagens, com a utilização de fitas adesivas, de cores diferentes,
para destacar quem era filho de quem, casado com quem, irmão de quem, rei de
onde... Sem isso, creio que não seria conseguida a necessária atenção do público
nem tanto interesse pela narrativa cênica.
E,
para que não paire nenhuma dúvida, para o público, sobre o caráter didático a que me referi, ANDRÉA, ainda a atriz,
não a protagonista, como numa
espécie de prólogo, remete o texto original à história de Édipo, de quem era filha, contando, na
íntegra, a sua origem e como e por que voltou a Tebas, onde se passa a sua história, ela que, de lá, havia fugido.
SINOPSE:
ANTÍGONA é irmã de Ismênia, Polinice e Etéocles,
todos filhos do casamento incestuoso de Édipo e Jocasta,
sua mãe, como parte do cumprimento de um oráculo.
Há mais de uma versão da tragédia, mas
a clássica foi escrita pelo dramaturgo grego SÓFOCLES,
um dos mais importantes de todos os tempos.
A protagonista
é um exemplo de amor fraternal e, também, de transgressão e
desobediência civil, além de ter sido a única filha que não abandonou Édipo, quando este foi expulso de seu
reino, Tebas, pelos seus dois filhos homens.
Polinice
tentou convencê-la a não partir do reino, enquanto Etéocles ficou indiferente com relação à sua partida.
ANTÍGONA
acompanhou o pai, em seu exílio, até sua morte. Quando voltou a Tebas, seus irmãos brigavam pelo trono.
Polinice
arma um ataque contra Tebas. Como a
guerra não levou a lugar nenhum, os dois irmãos decidem disputar o trono num
combate singular, no qual ambos morrem.
Creonte,
tio deles, herda o trono, manda erguer uma sepultura, com todas as honras, para
Etéocles e deixa Polinice, a quem atribuía a pecha de
traidor, onde tombou, morto, para que o cadáver ficasse exposto à putrefação e
à dilaceração, servindo de alimento para as aves de rapina e os cães famintos, proibindo
qualquer um de enterrá-lo, sob pena de morte. Creonte entendia que isso serviria de
exemplo para todos os que pretendessem se insurgir contra o governo de Tebas.
Ao saber da cruel decisão do tio, ANTÍGONA deixa claro que não permitirá
que o corpo do irmão fique insepulto, sem os ritos sagrados, mesmo que tenha
que pagar com a própria vida, por tal atitude corajosa. Mostra-se insubmissa às leis humanas,
“por estarem indo de encontro às leis divinas”.
Indignada, tenta convencer o novo rei
a enterrá-lo, pois “quem morresse, sem os rituais fúnebres, seria condenado a
vagar cem anos, nas margens do rio que levava ao mundo dos mortos, sem poder ir
para o outro lado”.
Não se conformando com a negativa do
tio, ela rouba o cadáver de Polinice,
que estava sendo vigiado, e tenta enterrar o irmão com as próprias mãos, mas é
presa enquanto o fazia.
Creonte
manda que ela seja enterrada viva. Sua irmã, Ismênia, tenta defendê-la e se oferece para morrer em seu lugar, o
que não é aceito por ANTÍGONA, e Hémon,
seu noivo e filho de Creonte, não
conseguindo salvá-la, comete suicídio.
ANTÍGONA
pagou muito caro, com a própria vida, por não aceitar a submissão à tirania
e por pensar que as leis dos deuses são mais antigas e superiores às dos
mortais, uma luta entre a fé nos deuses contra a razão insana do opressor
tirânico.
ANDRÉA BELTRÃO, do alto dos seus cinquenta e poucos anos e completando
quarenta, de profissão, está exuberante, em cena, em plena forma física, tão
necessária para aguentar o “tranco” da montagem, que dura sessenta minutos,
cravados. Creio que, se passasse mais um, nem com todo o seu preparo físico,
ela tombaria, desfalecida, tal é seu desgaste físico e emocional. ANTÍGONA suga as suas energias, porque
a atriz se entrega totalmente à personagem, para o nosso deleite.
O
trabalho de preparação corporal,
creio que formado em academia ou com o auxílio de algum profissional
particular, é mais que necessário, para que ela possa dar conta de toda a
movimentação, em cena, trabalho fantástico, de MARINA SALOMON, que assina a brilhante direção de movimento. ANDRÉA intercala gestos tipicamente
teatrais com bastantes movimentos e posições de artes marciais, como uma grande
guerreira / atleta.
O trabalho da atriz e a excelente direção, de AMIR HADDAD fazem com que o espetáculo
se torne muito comunicativo e, em consequência disso, bastante popular, no sentido exato da palavra, de “para o povo” (άνθρωποι, em grego; populo, em latim), visto que, apesar da complexidade aparente dos clássicos gregos, não podemos nos esquecer de que o povo comparecia aos anfiteatros, nos festivais organizados, nesse sentido, e entendia tudo o que lhe era contado, uma vez que todos os personagens e elementos cênicos lhe eram familiares. AMIR e ANDRÉA resgataram isso para nós, transformaram os anfiteatros gregos nas nossas salas de estar, criando uma intimidade entre palco e plateia, a começar pela excelente ideia de manter (de propósito, é claro), durante boa parte do espetáculo, a porta do camarim aberta, deixando à mostra seus mistérios e intimidades, para quem nunca entrou num, inclusive com as luzes acesas, vazando para o espaço cênico. Parece que estamos em nossas próprias casas, e não visitando alguém, em seu espaço particular, privado, sem falar no total despojamento da atriz, que vai ao encontro do público, recebendo-o, à porta de entrada do salão, e cumprimentando a todos. No dia em que assisti à peça, AMIR a acompanhou nesse “ritual”; não sei se o faz todos os dias.
No
início, antes de a porta do camarim se fechar, não parece TEATRO, e sim uma palestra, ainda que meio informal, até com
algumas pinceladas leves de humor, didática por excelência. Muito bom isso!!! Depois, o texto, de SÓFOCLES, traduzido por MILLÔR FERNANDES e adaptado por ANDRÉA e AMIR, os quais, inclusive, contribuíram
com ótimas inserções dramatúrgicas, vai sendo desenrolado.
ANDRÉA,
além de narradora, interpreta a protagonista,
mas, também, reserva momentos, de ótimos resultados, para dar vida a Ismênia, Creonte, Tirésias, Hémon, gente do Coro...
Nas
palavras de AMIR HADDAD, ANTÍGONA, simplesmente, “reivindica
o amor, o respeito aos antepassados e a tudo o que vem antes e nos compõe.
Sófocles diz que nenhum governo ou poder pode ignorar o ser humano e a sua
história e privilegiar a ordem púbica da cidade”. Só por isso, podemos
dizer que o texto é mais do que atemporal e muito característico dos nossos
dias, infelizmente, ainda mais em tempos em que governos, a grande maioria
formada por corruptos e déspotas, não respeitam os anseios e os direitos do
povo, e as mulheres continuam na luta por marcar território, num mundo misógino,
que insiste em ignorar a sua força, inteligência e direito à igualdade. Desafiam,
com ANTÍGONA. Demonstram sua força e
são guerreiras e justas, como ANTÍGONA.
Por
oportuno, devo transcrever o que, no programa da peça, AMIR HADDAD diz sobre o espetáculo: “Cada vez que um diretor monta
uma peça, ele estará reescrevendo, da melhor maneira possível, a peça que
aquele autor escreveu. No caso de uma obra-prima, como ‘ANTÍGONA’, trata-se de
uma viagem vertiginosa até a raiz do mito e, de lá, uma volta palpitante até a
peça e seu autor. É isto que estamos fazendo com SÓFOCLES e sua ‘ANTÍGONA’.
Reescrever SÓFOCLES. Reescrever ‘ANTÍGONA’. Da peça ao mito. Do mito à peça.
Num eterno retorno.”
Se
quiséssemos resumir a ação da protagonista,
na trama, poderíamos dizer que ela patrocina um “duelo”, baseado no conflito
entre as leis divinas e as leis dos homens, além de pôr em evidência um dos
sentimentos mais lindos, que é o amor fraternal, de que tanto carecemos, nos
dias de hoje.
Dentro
da proposta do espetáculo, o cenário,
com perdão dos cenógrafos, que
haverão de entender o que estou querendo dizer, seria “dispensável”, entretanto
há a utilização de alguns elementos cênicos - os fixados nas paredes - de
extrema necessidade, para a compreensão da narrativa, como já tive a oportunidade
de dizer. Além da “arvore genealógica”,
ao fundo, há, numa das paredes laterais, um desenho, mapa, da Grécia, com realce, para os nomes das
cidades de Atenas e Tebas; na outra, oposta, um pequeno
planisfério, desenhado a giz, como o anteriormente citado. Além disso, apenas
uma cadeira e uma mesa, sobre a qual ficam alguns elementos utilizados durante
a peça, como um par de sapatos de salto agulha e uma “écharpe” vinho, quase uma
“personagem”, nesta montagem. Há, ainda, um pequeno amplificador, operado pela
própria atriz, quando precisa, em algumas cenas, fazer uso de um microfone, que
distorce, completa e intencionalmente, a sua voz.
A
propósito, é fascinante a “brincadeira” que ANDRÉA faz com essa peça do vestuário, a “echarpe”, transformando-a
em vários objetos, contando com a imaginação do espectador, tanto para compor figurinos como para ajudar na criação de cenas, como um enforcamento,
por exemplo.
Já
que falei na famosa, e necessária, “écharpe”, devo dizer que me agradou o figurino, de ANTÔNIO MEDEIROS e GUILHERME
KATO, que não se preocuparam com detalhes dos trajes de época e criaram uma
roupa totalmente à vontade, para os movimentos da atriz e para situar a
personagem, atemporalmente, na história.
Tenho
tido vivências de encantamento, nos últimos tempos, pelo trabalho de iluminação. Passei a enxergar esse
elemento com mais interesse e venho observando projetos brilhantes, dos nossos
mestres da iluminação, já há algum
tempo. Neste espetáculo, não há grandes recursos nesse campo; ou melhor, há, de
uma simplicidade franciscana. Parece-me que houve uma preocupação, do grande AURÉLIO DE SIMONI, em não tirar o
brilho da estrela, já que ela tem luz própria. Explicando melhor: talvez, como
mais um elemento de integração entre o espaço cênico e plateia, entre atriz e público,
AURÉLIO optou por uma luz perene,
praticamente “de salão”, do início ao fim da peça, mais intensa, antes do
início, propriamente dito, da história. Por mais paradoxal que possa parecer, uma bela luz, porque a “ausência” também
tem seus ganhos.
E
por falar em “ganhos”, algumas cenas recebem um “up”, graças à boa trilha
sonora, de ALESSANDRO PERSAN.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Sófocles
Tradução: Millôr Fernandes
Dramaturgia: Amir Haddad e Andréa Beltrão (Textos
Complementares)
Direção: Amir Haddad
Elenco: Andréa Beltrão
Iluminação: Aurélio de Simoni
Figurino: Antônio Medeiros e
Guilherme Kato
Direção de Movimento: Marina
Salomon
Ambientação e Projeto Gráfico:
Fábio Arruda e Rodrigo Bleque (Cubículo)
Fotos: Guga Melgar
Trilha Sonora: Alessandro
Persan
Camareira: Conceição Telles
Operação de Luz e Som: Bruno
Aragão
Produção Executiva: Rosa
Beltrão e Sérgio Canizio
Realização: Boa Vida Produções
SERVIÇO:
Local: Teatro Poeirinha
Endereço: Rua São
João Batista 104, Botafogo – Rio de Janeiro
Telefone: (21)
2537-8053
Temporada: Até 19
de fevereiro (2017)
Dias e Horários:
De 5ª feira a sábado, às 21h; domingo, às 19h.
Duração: 60
minutos.
Valor do
Ingresso: R$80,00 (com direito a meia-entrada, para os que, legalmente, fizerem
jus a ela).
Classificação
Etária: 12 anos.
Gênero: Tragédia.
Infelizmente,
não terei oportunidade - a não ser que a temporada seja prorrogada (torço para isso) - de rever a peça,
mas preciso dizer que esta “ANTÍGONA” é
para ser vista mais de uma vez.
(FOTOS: GUGA MELGAR.)
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