PARADINHA
CEREBRAL
(NEM MELHOR, NEM PIOR;
APENAS UM ESPETÁCULO TEATRAL “DIFERENTE”
E DE EXCELENTE QUALIDADE.)
Para início de
conversa, que fique bem claro que o “diferente”,
a que se refere o subtítulo, foi empregado com o melhor sentido, unicamente denotativo. É diferente, porque o protagonista (CASSIANO FERNANDEZ – CACÁ) - porque também há uma protagonista (MIRNA RUBIM – MADALENA / MADÁ) - não é
um ator profissional (é a primeira vez
que atua), embora se saia muito bem no palco, dentro de suas limitações, já
que, ao nascer, sofreu uma paralisia cerebral, que o atingiu nos movimentos,
“compensando-o” com uma inteligência prodigiosa e uma alegria e força para
viver, que servem de exemplo a muitas pessoas ditas “normais”. Por falar nisso,
CACÁ é uma das pessoas mais NORMAIS (sem aspas e com todas as maiúsculas) que eu conheço.
Ninguém foi
mais crítico do que eu, com relação à infeliz ideia de o Rio de Janeiro, com tantas carências, no
campo da educação, da saúde, dos transportes públicos, do saneamento, das
moradias, além de outras, sediar e bancar as Olimpíadas e, na garupa, as ParaOlimpíadas. Não posso, entretanto, me omitir e não dizer que, se houve
viabilidade, para que “PARADINHA
CEREBRAL” fosse encenada, garantindo seu sucesso, tanto de público quanto
de crítica, isso só ocorreu graças à condição de o projeto ter sido vencedor de
um edital especial, o “Cidade Olímpica”,
lançado pela Secretaria Municipal de
Cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro. Tal escolha, além da qualidade do texto e da importância do projeto, deve estar relacionada ao fato
de a peça tratar de um tema ligado às limitações físicas e/ou mentais do ser
humano. O espetáculo foi programado, cumprindo o já citado edital, para ser
encenado, paralelamente, durante a realização dos dois eventos esportivos já
citados. E acabou se estendendo até o
dia 29 de setembro / 2016.
E digo isso
muito feliz, pois valeu muito a pena ter ido, no dia 14, próximo passado, quase
ao final, infelizmente, da temporada, à sala
2 do Teatro Fashion Mall, para
aplaudir os talentos de CASSIANO e MIRNA.
O texto e a direção da peça são assinados por IURI SARAIVA, um jovem ator, que também joga bem em outras
posições.
SINOPSE:
Preocupados com uma curva
de baixa audiência, os produtores do “talk show” “Show da Madá” resolvem trazer um convidado inusitado ao programa:
o jornalista, cantor lírico, cadeirante e paralisado cerebral CASSIANO FERNANDEZ (CACÁ).
A apresentadora MARIA MADALENA, interpretada pela
cantora lírica e preparadora vocal MIRNA
RUBIM, que, na vida real, também é professora de canto de CASSIANO, é tomada de surpresa, por um
entrevistado livre de neuroses e com um humor peculiar.
Nesse encontro, regado a
muita música, rivalidade e recalque, MADÁ
terá que encarar seu sonho frustrado de ser cantora lírica e CACÁ lhe dará lições ácidas e
divertidas, encorajando-a a realizar o seu tão almejado sonho.
A história de
“PARADINHA CEREBRAL” se desenvolve a
partir de uma entrevista fictícia, em que o entrevistado não representa uma
pessoa sequelada, alguém que sofreu uma paralisia cerebral; é o contrário: uma
pessoa com comprometimentos de mobilidade, por conta de ter sofrido uma lesão
cerebral, faz um trabalho de ator, representando um personagem sagaz, irônico,
perspicaz, mordaz, ferino, cáustico... e, TAMBÉM
MUITO ENGRAÇADO.
Com a maior
naturalidade, mais para o desinibido, e “exibido”, entrevistado do que para a
embaraçada entrevistadora, fala-se de tudo, durante o programa, desde questões
ligadas a preconceitos e trabalho, passando por uma invasão na privacidade
sexual do entrevistado, não deixando de valorizar – é claro – a discussão sobre
o relacionamento das pessoas com quem é portador de alguma necessidade especial
e a tão falada inclusão social, muito discutida e pouco praticada.
Gostei muito
do formato da peça. Além dos diálogos, durante a “entrevista”, com boa dramaturgia, os dois personagens
ainda conversam durante os intervalos de gravação do programa, sem falar nos
excelentes vídeos que são projetados, mostrando depoimentos dos pais de CACÁ, bem como cenas do cotidiano do
rapaz, em casa, vestindo-se, tentando entrar num ônibus e em ação no trabalho.
Sim! CASSIANO é jornalista e
publicitário, e trabalha numa das maiores agências de publicidade mundiais, a NBS, o quinto maior grupo de
comunicação do mundo, com escritórios espalhados por cento e dez países e nos
cinco continentes. Além disso, é o idealizador e administrador da página Código da Ópera, manifestação artística
da qual é um grande admirador e conhecedor. Foi editor da coluna sobre ópera do
informativo quinzenal do Instituto
Brasileiro de Defesa da Pessoa com Deficiência. É, também, um grande fã de novelas
e palestrante em eventos sobre pedagogia inclusiva.
Conheci CASSIANO, quando vi a peça, e já o
considero meu amigo, por se tratar de uma criatura adorável, extremamente
alegre, nos seus 29 anos. Ele se considera –
e é mesmo – uma pessoa “descolada”,
a despeito de sua condição física. Extremamente inteligente e independente,
fala quatro idiomas e frequenta, há cinco anos, as aulas de canto de MIRNA RUBIM. Afirma que é quase
impossível alguém o ofender com questões de deficiência e que a ideia de “alfinetar”
a personagem MADÁ, em cena, é muito
intencional, com o objetivo de “acordar o público”.
CACÁ, de forma muito linda e carinhosa,
faz, em cena, um agradecimento a seus pais, os quais ele considera os
arquitetos da maneira como ele enxerga, hoje, o mundo, uma vez que era muito comum,
quando ele nasceu, e ainda ocorre, com menos intensidade, nos dias de hoje, que
os pais evitassem a exposição de um filho deficiente, mantendo-o, quase sempre
recluso, em casa, para que não passassem, pais e filhos, por situações
“constrangedoras”. Ao contrário disso, seus pais sempre o trataram como
qualquer criança, levando-o ao clube, aos “shoppings” e a reuniões sociais, o
que lhe possibilitou ter uma visão diferente da sua condição. “Eu
sou tão em paz comigo, que, quando eu vejo pessoas que se lamentam por serem
deficientes, fico um pouco chateado” — diz CACÁ.
A simples ideia da realização
do espetáculo é digna de todos os aplausos, até mesmo se ele não fosse de boa
qualidade, o que não é o caso, pois
é uma oportunidade ímpar de mostrar que qualquer tipo de deficiência, nas
pessoas, não deve ser “desculpa” para fracassos e acomodação. Elas têm seu
espaço, no universo cultural, e abordar o tema pode ser é uma tentativa de conclamar
a população a respeitar e reconhecer o valor daquelas pessoas. Essa é a
intenção maior da peça.
O
espetáculo, do ponto de vista técnico, é simples, modesto, mas nem por isso é
de qualidade duvidosa. Muito pelo contrário! É mais uma prova de que se pode
montar um grande espetáculo de TEATRO
com limitados recursos de cenografia,
figurino e iluminação, por sinal, três ótimos elementos na peça, desde que sejam colocados a alma e o amor ao TEATRO
em primeiro plano.
A propósito, o cenário, assinado por JOÃO DE FREITAS, é formado apenas por
um piano de cauda (falso, cenográfico; na verdade, um piano elétrico, acoplado
a uma carcaça de um piano de cauda) e uma tela, para projeções, limitada por
uma bela moldura de um quadro. Não há necessidade de nada mais.
JOÃO também assina os figurinos,
completamente integrados às exigências da peça e condições dos personagens. MIRNA, como a apresentadora de um
programa de TV, veste um traje mais sofisticado e CACÁ se apresenta num estilo “casual”, como um jovem classe média de
sua idade.
É correta a iluminação, de RAFAEL ANDRADE e também me agradou a trilha sonora da peça, cujo nome do responsável não encontrei, na ficha técnica. Talvez seja de MIRNA RUBIM, que
assina a direção musical da peça.
Um crédito especial deve ser
atribuído a DANIEL GONÇALVES,
responsável pelos vídeos e por toda
a parte relacionada à videografia.
Esse destaque é merecido por dois motivos; primeiro, pela ótima qualidade do material
e do trabalho e, segundo, pelo fato de que ele também sofreu paralisia
cerebral.
Depois de tanto ter falado do talento de CASSIANO,
preciso, também, destacar a excelente atuação de MIRNA RUBIM, que não é novidade, para quem já a conhece, e uma gratíssima
surpresa, para os que nunca tiveram a oportunidade de vê-la, em outros
trabalhos, tanto como cantora lírica quanto como atriz, em, por exemplo, “A Noviça Rebelde”, como a Madre Superiora, e em “A Gaiola das Loucas”, como Mme. Renauld, Mme. Dindon, além de ter sido a supervisora vocal do musical. Na
televisão, é meio bissexta, embora já tenha atuado em novelas e seriados. É uma
das mais requisitadas preparadoras vocais dos espetáculos musicais do Rio de
Janeiro e Coordenadora do Núcleo de
Teatro Musical da CAL - Centro de Artes de Laranjeiras.
Talvez em função do relacionamento profissional e afetivo entre os dois, na vida real, em
cena, tudo é muito natural, mérito também para a direção, que, de forma inteligente, procurou não interferir nesse
aspecto, fazendo com que o público ganhasse com isso. IURI SARAIVA, além de bom autor
de TEATRO, também se apresenta,
aqui, como um diretor que demonstra
conhecer bem os limites e o potencial interpretativo de seus atores e sabe, e
forma perfeita, explorar tais aspectos.
Algumas cenas
e detalhes da peça que mais me agradaram:
1)
A exímia atuação, também, ao piano, de MIRNA RUBIM.
2) A brilhante
interpretação de MIRNA, para a canção
“Cry Me A River”, de Arthur Hamilton, uma das minhas preferidas.
3) O
tom didático e simples como CACÁ
conta a história de Maria Callas, a
diva do canto lírico.
4) A cena em que CACÁ fala sobre a ignorância das pessoas, em geral, acerca do que é a paralisia cerebral, explicando, de forma bem simples, os vários níveis de
comprometimento causados pela doença.
5) A cena em que CACÁ
e MIRNA cantam, juntos, um trecho de uma ópera.
Ela, com a técnica; ele, com o coração.
6)
O momento em que CACÁ
passa da posição de entrevistado a entrevistador, causando um “constrangimento”
na apresentadora do programa, provocando as melhores gargalhadas que a peça nos
proporciona.
7) A cena em que MADÁ,
incentivada por CACÁ, canta um
trecho de “La Traviata”, de Verdi.
8)
A hilária cena em que CACÁ conta uma experiência sexual num motel.
Não se pode
classificar o espetáculo como um musical,
embora haja alguns bons números musicais da peça.
Segundo CACÁ, é polêmico falar sobre pessoas
que vivem reclamando de sua condição de portadoras de necessidades especiais,
que vivem maldizendo sua “sorte”, colocando-se na condição de vítimas. Ele
espera que a peça possa levar essas pessoas a esquecer essa vitimização e
apostar numa vida “normal”.
Para encerrar
esta crítica, por oportuno, deixo a fala final do personagem CACÁ, que é uma lição de vida e um
recado muito importante para a conscientização de quem não é cadeirante, ou
coisa parecida, e não sabe valorizar o que a vida lhe oferece:
ESTA CADEIRA DE RODAS É, PARA MIM, O QUE A MÃE DE CALLAS FOI PARA ELA.
TODO DIA, A CADEIRA ME DIZ QUE NÃO VOU CONSEGUIR, QUE O MUNDO NÃO TEM ESPAÇO
PARA MIM, QUE EU NÃO ME ENCAIXO.
ÀS VEZES, DEMORA ALGUMAS HORAS, PARA EU PERCEBER QUE NÃO É ELA QUE ME LEMBRA DISSO. SOU EU.
A CADEIRA DE RODAS É UM
CONVITE DIÁRIO À SABOTAGEM.
NÃO É UM CASTIGO, PUNIÇÃO, PROVAÇÃO.
SIMPLESMENTE,
ACONTECE E NINGUÉM ESTÁ A SALVO.
ENTÃO, MEUS LINDOS, SE, UM DIA, VOCÊS
ESTIVEREM DO LADO DE CÁ, NÃO SE LAMENTEM OU SE VITIMIZEM.
O DIA SEGUINTE VIRÁ
E VAI TE COBRAR, COM OU SEM CADEIRA.
UM BEIJO DO CACAZINHO!
FICHA TÉCNICA:
Texto:
Iuri Saraiva
Direção:
Iuri Saraiva.
Elenco:
Cassiano Fernandez e Mirna Rubim
Cenário:
João de Freitas Henriques
Iluminação:
Rafael Andrade
Figurino:
João de Freitas Henriques
Videografia:
Daniel Gonçalves
Direção
Musical: Mirna Rubim
Fotografia:
Fabrício Mota
Projeto
Gráfico: Aline Carrer
Assessoria
de Imprensa: Contexto e Comunicação
Conceoção
e Produção: Lara Pozzobon.
Produção Executiva: Tiago Moreno
Patrocínio:
Secretaria Municipal de Cultura / Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
SERVIÇO:
Temporada: De 20 de julho a 29 de setembro.
Local: Teatro Fashion Mall – Teatro 2
Endereço: Estrada da Gávea, 899 – loja 213 – São Conrado – Rio de
Janeiro
Telefone: (21) 2422-9800
Dias e Horários: Às 4ªs e 5ªs feiras, às 21h30min
Valor do Ingresso: R$60,00 (Com direito a meia-entrada a todos os que
fizerem jus ao benefício.)
Indicação Etária: 12 anos
(FOTOS: FABRÍCIO MOTA
e DIVULGAÇÃO)
Cassiano Fernandez, Iuri Saraiva (autor do texto e diretor),
Mirna Rubim e a atriz Giulia Nadruz.
Cacá, Iuri Saraiva, Mirna Rubim e eu.
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