O
CORPO
DA
MULHER COMO CAMPO
DE
BATALHA
(EMBORA COMO TEMA,
NUM ESPETÁCULO
TEATRAL,
O ESTUPRO É A MAIS CRUEL DAS
VIOLÊNCIAS.)
Em
1972, apaixonei-me por uma escritora, cheguei a conhecê-la, pessoalmente, e
passei a ser seu grande admirador, por conta de uma crônica que ela publicara
no extinto e saudoso Jornal do Brasil,
no qual tinha um espaço semanal. Falo de Marina
Colasanti e de sua famosa crônica “Eu
sei, mas não devia”. Mais de vinte anos depois (1995), ela deu título a um
dos muitos e excepcionais livros de Marina,
publicado pela Editora Rocco. Se eu
consegui despertar o seu interesse pela crônica, que, continua atualíssima,
como se tivesse sido escrita hoje, basta acessar o Google, digitar seu título e ela aparecerá inúmeras vezes.
O
primeiro parágrafo não ocupava uma linha inteira e era somente isto: “Eu sei que a gente se acostuma. Mas não
devia”. O ponto, substituindo a vírgula, que lá deveria estar, é
proposital. Obriga o leitor a uma pausa maior e, consequentemente, a uma
reflexão: não devo me acomodar, não
posso aceitar.
Uma oferece ajuda; outra a recusa.
A
partir da segunda linha, a autora vai discorrendo sobre a acomodação humana,
que aceita tudo, sem questionar, sem reclamar, segundo ela, ao reproduzir o
nosso pensamento, para nos pouparmos de sofrimentos, sempre procurando uma “justificativa”
ou explicação para o ato de nos acomodarmos, o que, no último parágrafo, se
revela como inútil: “A gente se acostuma, para não se ralar na aspereza, para preservar a
pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e
baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que, aos
poucos, se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma”.
Essa foi a melhor
maneira que encontrei para iniciar uma crítica sobre uma grande peça teatral,
em cartaz, até 19 de junho, na Sala Multiuso do Espaço SESC: “O CORPO DA
MULHER COMO CAMPO DE BATALHA” (Ver SERVIÇO.)
Trata-se
de um espetáculo denso, muito denso, que exige, do espectador, uma
incomensurável resistência emocional, para não sucumbir ao turbilhão de emoções
fortes, concentradas no texto e na
belíssima interpretação da dupla de
atrizes: ESTER JABLONSKI e FERNANDA NOBRE. Tudo por conta da
temática desenvolvida pelo autor do ótimo texto,
o romeno, já tão admirado pelo público brasileiro, MATÉI VISNIEC, muito bem traduzido por ALEXANDRE DAVID: o estupro.
Ester Jablonski e Fernanda Nobre.
Para
todos os que estavam assistindo àquela sessão de estreia, para convidados, foi
uma experiência ímpar e desafiadora para os nossos nervos, uma vez que naquele
dia, 5ª feira, 26 de maio de 2016,
era apenas um após ter vindo à tona, e tomado, por completo, todos os espaços
da mídia, nacional e internacional, além das redes sociais: a notícia do
bárbaro crime em que mais de trinta “monstros”, sob o disfarce físico de seres
humanos, haviam estuprado uma moça, de 16 anos. Um estupro coletivo.
Por oportuno,
deixemos bem claro que não há, aqui, qualquer interesse em discutir nenhuma
circunstância que envolva o fato, que chocou o Brasil e o mundo, menos ainda
tecer qualquer juízo de valor sobre ele e os personagens envolvidos naquela
barbárie. O que está sob o foco dos refletores é o fato de um estupro,
praticado contra alguém, não importando o sexo ou a idade, em qualquer circunstância,
ser considerado o mais cruel, o mais sórdido, o mais vil dos crimes cometidos
pelos que são chamados de “humanos”.
Para
que possam os leitores entender a relação do que estou falando com o espetáculo
a que me propus analisar, passo logo à sinopse
da peça, acrescentando que o material sobre o qual me apoiarei, para
escrever sobre esta encenação, chegou-me por intermédio da assessoria de imprensa (Leia-se
LU NABUCO).
A terapeuta Kate.
SINOPSE:
Duas mulheres se cruzam, depois do conflito
bósnio: uma terapeuta norte-americana, KATE
(ESTER JABLONSKI), e uma jovem bósnia violentada durante a guerra, DORRA (FERNANDA NOBRE).
Ambas revelam suas histórias, numa
tentativa, desesperada, de encontrar forças para continuar suas trajetórias.
O espetáculo retrata duas mulheres
arrasadas, feridas, que tentam reconstruir a percepção sobre si mesmas e sobre
o mundo.
Kate tenta “erguer” Dorra.
A
peça faz parte de um projeto maior: “Mulheres
Em Cena: Corpo e Violência”, que reúne filmes, leituras, uma oura peça,
além da que está sendo motivo desta crítica (“Bonecas Quebradas”, a estrear) e debates sobre a condição da
mulher, envolvendo artistas, ativistas, juristas e advogados
Mas
o que pretende VISNIEC passar ao
público? Que tipo de mensagem ele espera que fique em cada espectador? Que
espécie de polêmica deseja criar? A que reflexão ele nos conduz, ou, pelo
menos, tenta?
Começando
pelo título da peça, não há, em princípio, como ligar o corpo da mulher à ideia de “campo
de guerra”. O corpo, não só o feminino, mas também o masculino, não pode
servir de moeda de troca ou troféu, antes, durante ou após uma guerra. Trata-se
o título de algo bastante instigante, que, por si, já deve atrair o público ao
teatro.
Do
ponto de vista psicanalítico, o estupro é considerado uma das mais violentas e
“eficazes” formas de humilhar e derrotar um semelhante, um “inimigo”. O
encontro entre as duas protagonistas se dá após DORRA, a jovem bósnia, ter sido violentada por soldados inimigos,
fato mais do que comum e corriqueiro, em tal situação, infelizmente, comprovado
em todas as partes do mundo, em qualquer conflito bélico e, ao que parece, desde
que o mundo é mundo, aumentando, em proporções, nos últimos tempos.
Inquietação.
“KATE
(ESTER JABLONSKI) é uma psicoterapeuta norte-americana, que trabalha, como
voluntária, para atender a pessoas semidestruídas, moralmente, pelo horror da
guerra, e DORRA (FERNANDA NOBRE), uma refugiada bósnia, marcada pelo ultraje de
uma violação não consentida.
O
autor, pela boca das duas, denuncia tal afronta e lança, no ar, um grito sobre
a condição da mulher, durante a guerra, por meio de uma dramaturgia que tem a
potência de traduzir o ser humano, ao trazer, para a cena, a questão da
violência contra a mulher, sem derrotismo, mas sob o ponto de vista da luta e
resistência em todas as guerras, até mesmo as do dia a dia.”
Não é um confronto;
ao contrário, é uma tentativa de
reconstrução de uma vida.
(Foto de David Seale, publicada por Nando Jab.)
A personagem DORRA, aterrorizada pela violência,
física, psicológica e moral, representa, para os órgãos que se preocupam com o
problema do estupro, apenas um número, numa estatística extremamente bárbara e
volumosa, de milhares de outras “dorras”,
que passaram, e continuam passando, por semelhante humilhação, subjugadas e
rebaixadas a trapos humanos.
Segundo o diretor do espetáculo, FERANDO PHILBERT, “Este espetáculo fala,
objetivamente, de uma jovem que foi uma das milhares de mulheres estupradas na
guerra da Bósnia e que ficou grávida. Nasceram, após a guerra, mais de
trezentos bebês, resultado de mais de duas mil mulheres grávidas, devido aos
estupros. O espetáculo busca ampliar o universo desta personagem, sua dor, seu
isolamento em uma clínica, o ódio de si mesma, a revolta com o mundo, a
impotência, mas entende que a vida é mais forte, e ela, a vida, vai voltando,
para a personagem, vai expulsando a dor e a revolta. No contraponto, existe a
figura de uma psicóloga, KATE, que vai
para a Bósnia, a fim de trabalhar com as equipes que abrem as valas comuns, onde
os corpos das vítimas de execuções em massa foram jogados. Ela também sofreu a
violência da crueza dos fatos, da imagem descomunal de muitos corpos
enterrados, e, não suportando mais, pede para ir trabalhar numa clínica, entre
a Suíça e a Alemanha, que recebe algumas
mulheres refugiadas da guerra. É lá que ela descobre que, para ter um
equilíbrio, precisa interagir e buscar tirar, do isolamento voluntário, DORRA,
a jovem refugiada. Apesar de contar uma história dura e verdadeira, o
espetáculo encontra caminho na força que a vida tem, na força que a vida exerce
sobre cada um, mesmo vivendo a pior das tragédias, pois, lá fora, há gente, e o
dia segue, E, mesmo não acreditando que se possa contar tudo, que o tempo cure
tudo, como diz a jovem violentada, o espetáculo se lança na força destas
mulheres que sobreviveram e estão diante da vida”.
Frente a frente, refletidas no espelho da
vida.
O texto é bastante contundente e seu autor não tem a menor
parcimônia, para pressionar o dedo sobre feridas, atribuindo-lhe uma força
descomunal, parecendo não querer poupar o espectador de uma situação de
desconforto. Ao contrário, seu texto
atrai, como um ímã, cada uma das pessoas que assistem à peça, para o espaço cênico,
fazendo com que todos participem, intensamente, daquele drama, se envolvam,
emocionalmente, com ele, ainda que isso lhes custe uma sensação de desassossego
e impotência, obrigando o ar a forçar passagem, pelas vias respiratórias de
cada uma dos espectadores, para que não morram sem ar. Todos torcem, para que
as duas vítimas, por caminhos diferentes, de uma guerra possam encontrar, juntas,
um bálsamo para tanto sofrimento.
“Escondendo” a dor.
MATÉI
VISNIEC, considerado um “herdeiro” de Eugène
Ionesco, o grande representante do “Teatro do Absurdo”, já teve suas peças
traduzidas para muitos idiomas e representadas em vários países, com bastante
sucesso. No Brasil, nos últimos anos, vem conquistando admiradores e seus textos, merecedores de excelentes
montagens, têm sido alvo de sucesso de público e de crítica, como é o caso de “2 x Matéi” (2014), reunindo duas de
suas peças curtas, “O Último Godot”
e “O Rei, O Rato E O Bufão Do Rei,
em 2014, no Rio de Janeiro, com direção de Gilberto
Gawronski; “A Volta Para Casa”,
no ano passado, em São Paulo, um
interessantíssimo espetáculo, com direção de Regina Duarte, com várias temporadas de sucesso; ainda, em 2015, no
CCBB do Rio de Janeiro, “Paparazzi”
ou “A Crônica De Um Amanhecer Abortado”,
dirigida por Adriana Maia; e, para
citar apenas quatro, “Aqui Estamos Com
Milhares De Cães Vindos Do Mar”, um espetáculo que reúne uma coletânea de
quinze pequenas peças do autor, dirigida por Rodrigo Spina, que iniciou carreira, em São Paulo, em 2015 e que
entrou por 2016, com várias indicações a prêmios, encenada pela Cia. Os Barulhentos. Espero que venha
para o Rio de Janeiro.
Mais uma tentativa...
VISNIEC é romeno, naturalizado francês, após, para fugir da ditadura de Nicolae Ceaușescu, ter pedido asilo político, na França, em 1987, onde vive até hoje, trabalhando, inclusive, na Rádio França Internacional. Um marcante traço de seus trabalhos é o olhar crítico do autoritarismo e as contradições inerentes ao ser humano. São suas estas palavras, que servem para longas e profundas reflexões, além de espaço para uma “mea culpa”: “Descobri, quando vim morar no Ocidente, que as pessoas podem ser manipuladas, mesmo em uma sociedade livre e democrática, e que isso pode ser feito em nome da liberdade e da democracia. Descobri que a luta pelo poder pode tornar-se um espetáculo grotesco, que a demagogia tem sutilezas, que se pode facilmente confundir com reflexão filosófica; e que, o que é ainda mais grave, a demagogia casa-se muito bem com os poderes das mídias. Descobri que a liberdade pode ter um lado selvagem, que a informação pode matar a comunicação, que nada jamais é definitivamente adquirido e que o ser humano deve lutar sempre por seus direitos, para preservar sua liberdade, ameaçada pelos efeitos da liberdade. Acho que o teatro pode, e deve, falar disso, falar dos múltiplos paradoxos da sociedade industrial, moderna e democrática. A sociedade civilizada, evoluída, não está protegida dos numerosos poderes obscuros que a rondam, que a desumanizam(...)”.
Sim, senhor VISNIEC! O senhor tem toda razão. Para isso, também, serve o TEATRO.
A simbologia das pedras no espetáculo.
O texto, ainda que escrito nos anos 90, é atualíssimo e, por uma infelicíssima, coincidência, vem à cena no momento em que se dá o já citado episódio do estupro coletivo. Deve ser lembrado o fato de que, pelas estatísticas, esse tipo de crime ocorre, e é denunciado, em mais de dez casos, por dia, apenas no Rio de Janeiro, sem contar os que não são notificados ou registrados e sem considerar que, no Brasil, a cada onze minutos, uma mulher sofre esse tipo de violência, segundo dados estatísticos.
Os que me conhecem sabem que, quando assisto a uma peça de TEATRO, faço muitas anotações, durante a encenação, que me se servem de base para as minhas críticas. Quando assisti à peça aqui considerada, só o fiz nos quinze minutos iniciais, uma vez que a minha tensão era tal, que os meus dedos, meio enrijecidos, não obedeciam aos comandos do meu cérebro. Eu, simplesmente, não conseguia anotar mais nada, à medida que a tensão ia aumentando, a ponto de me provocar um desejo de sair daquele lugar, que me parecia claustrofóbico (e eu nunca sofri de claustrofobia), ainda que estivesse gostando muito do espetáculo, como tal.
“Surto”.
FERNANDO PHILBERT, que já atuou muito na assistência de direção de grandes diretores, como Aderbal Freire-Filho, por exemplo, desde que passou a assinar como titular de direções, vem demonstrando bastante competência para tal função e, com este espetáculo, só faz se fortalecer, nessa área, executando um ótimo trabalho, no qual consegue mergulhar, profundamente, nas intenções do autor, conduzindo o trabalho da dupla de excelentes atrizes com precisão, sem exageros, não permitindo que o espetáculo se desvie para o lado piegas, para o qual muitos apelam, com a melhor das intenções, diga-se de passagem, com o único objetivo de tocar o coração do público. FERNANDO, ESTER e FERNANDA o fazem, apropriam-se dos nossos corações, equilibrando o emocional com o racional. Ninguém, na plateia, apenas se condói com o sofrimento e o drama das personagens, mas também encontramos espaço para refletir, mais, evidentemente, após o término do espetáculo, porém, também, durante os 70 minutos de ação, sobre a triste condição de exploração da mulher, com foco no seu corpo, numa sociedade que ainda não consegue, na sua totalidade, enxergá-la como um ser igual a qualquer humano, digno de todo respeito e consideração.
Humilhação.
Deve ter sido muito doloroso o processo por que passaram as duas atrizes, durante os ensaios, até o dia da estreia, e deve continuar a cada sessão, até a última da temporada, pois a condição feminina de ambas as actantes e o potencial dramático do texto, da situação, em si, exigem delas uma interpretação visceral, gigantesca, uterina, que ambas atingem, com muita verdade, graças ao talento das duas.
ESTER, minha velha conhecida dos palcos, faz um trabalho corretíssimo, brilhante, principalmente se considerarmos a volta que sua personagem dá, na trama. Ela inicia a ação com um determinado temperamento, com atitudes e gestos comedidos e generosos, voltada a socorrer alguém em estado quase catatônico, e volta a essa postura, no final da peça. Ocorre que, no meio da trama, ela também demonstra a sua fraqueza, em função de outro tipo de violência que sofre, o que a leva a uma catarse, completamente necessária a que a personagem possa voltar ao seu equilíbrio interior, exigido pela profissão exercida por ela. Mas não se pode desprezar nem desconhecer o fato de que, afinal de contas, o terapeuta também é um ser humano e, como tal, está sujeito a que seu copo d’água transborde, quando lhe é acrescida aquela gota d’água excessiva. Todos os meus aplausos e reverência a ESTER JABLONSKI, por sua KATE!
Ester Jablonski.
Quanto a FERNANDA, além de alguns trabalhos na TV, o último dos quais algo lamentável (não o seu trabalho, mas o “programa” – o “sitcom” “ACREDITA NA PERUCA”, uma das piores produções televisivas), creio que só a vi em um ou outro espetáculo infantil. Para mim, foi uma gratíssima surpresa vê-la em cena, neste espetáculo, demonstrando, aqui, sim, ser a maturidade de uma atriz de grandes possibilidades, uma atriz dramática com um ótimo potencial, conduzindo sua DORRA por um caminho correto, sem exageros, tanto nos momentos em que contracena com ESTER, por meio de diálogos, quanto nas cenas em que a personagem explode, em desabafos e demonstração de ódio ao mundo e ao ser “humano”. Na verdade, ESTER também se comporta da mesma forma e, mais ainda, mesmo nos momentos de “bifes’ ou solilóquios, as duas não perdem a ligação, o que equivale dizer que contracenam, que interagem durante todo o tempo da peça.
Assim como KATE, DORRA sofre uma transformação, esta graças ao trabalho da terapeuta, porém só ocorre uma simbiose entre ambas, após KATE ter-se revelado tão frágil e sofrida quanto a paciente, tão vítima quanto a outra, por motivos, obviamente, diferentes. Naquele momento, elas se igualam, na condição de humanas, vítimas, desrespeitadas, sofridas, ultrajadas, humilhadas, e uma encontra apoio na outra, o que fará com que a jovem DORRA passe a confiar nos propósitos de KATE, e, felizmente, isso levará o encontro das duas a um final feliz.
Eu disse “feliz”? Até a página cinco, talvez, uma vez que certos tipos de violência ficam, indelevelmente, marcados na mente de quem passou por aquelas situações. No caso de DORRA, a marca ainda permanecerá mais presente, materializada, na forma de um filho, o fruto do desrespeito, a criança, cuja ideia de existência ela repudiava e que... Bem, não vale a pena entrar em mais detalhes, sob a iminência do repúdio dos leitores a esta crítica.
Ódio! Ódio! Ódio!
O espetáculo, em termos de suporte técnico, é bem simples, mas nem por isso pouco interessante. Pelo contrário. A cenografia, a iluminação e os figurinos são excelentes, sem complicações, mas muito adequados ao espetáculo.
O fato de ter sido planejado para uma arena, ainda que, certamente, se adéque bem a um palco italiano, desde que sejam feitas as devidas adaptações, a montagem aproxima a plateia, dividida em dois lados, da ação, que se passa sobre uma passarela de linóleo, num tom de cinza azulado, de, aproximadamente, dois metros de largura, cortando a Sala Multiuso do Espaço SESC, meio em diagonal, subindo, uma das extremidades, por uma parede, dando a ideia de infinito, de que tudo o que se passa ali se expande pelo mundo. Sobre ela, fotos, recortes de jornais e revistas e fragmentos de relatórios sobre a paciente DORRA, além um espelho de dupla face, sobre uma base fixa e uma cadeira, que a jovem bósnia vive a carregar, de um lugar para outro, como em busca, talvez, de um porto seguro para descansar.
Mas a passarela não é o limite para as ações, que extrapolam aquela demarcação e ocupam parte do centro da Sala. Duas pedras são colocadas em lugares estratégicos, uma por cada atriz, logo no início da peça, e têm um valor simbólico importante na trama. A ideia do espelho é brilhante, pois representa uma dupla face da visão do mundo e das coisas, além de refletir a realidade, que não queremos enxergar (“Eu sei, mas não devia”). Graças ao espelho, não cabem pensamentos como “nem sei onde fica a Bósnia” ou “eu não participei de guerra nenhuma” ou “isso não me atinge”.
Fora do foco das luzes, uma pequena plataforma, para que a atriz que não está em cena possa se sentar e, mesmo assim, participar da ação. Faltou dizer que o cenário é assinado por Natália Lana, também responsável pelos figurinos.
Faz parte do cenário.
Quanto aos figurinos, NATÁLIA foi muito feliz. A personagem KATE veste um traje bem próprio do dia a dia do americano: uma calça comprida, marrom, e uma blusa de malha, complementada por um cachecol, tendo como acessório uma sandália simples e confortável. Roupa do dia a dia, roupa de trabalho. Já DORRA veste um vestido de malha azul, sem qualquer destaque decorativo, complementado, em algumas cenas, por um cardigan de lã, cinza, fornecido pela terapeuta, simbolicamente, um protetor para o “frio”, para o corpo e para a alma sentido pela personagem, descalça o tempo todo, para lhe proporcionar um certo “conforto”. Dorra troca o figurino, por um vestido mais alegre, ao final da história, simbolizando um aparente “up” na sua vida.
A iluminação, de VILMAR OLOS, parece-me que de propósito, não se preocupa tanto em evidenciar qualquer coisa ou detalhe e funciona muito bem, de acordo com as exigências do texto e da visão do diretor.
Boa parcela da excelente qualidade da atuação das atrizes se deve ao trabalho de direção de movimento de MARINA SALOMON. Além do lado emocional, o espetáculo exige muito, fisicamente, das duas, principalmente de FERNANDA.
Merece uma citação a boa trilha sonora e música original, de TATO TABORDA.
Tentativas...
Eu recomendo muito este espetáculo, não como forma de lazer, mas, sim, como uma oportunidade para o espectador refletir sobre uma problemática tão merecedora da nossa atenção, de uma mobilização geral, no mundo inteiro, para que a torpeza do crime de estupro fique, para sempre, no passado e que não mais faça parte do presente, menos ainda, do futuro, por não combinar, em nada, com a condição de humanidade.
Preparando-se
para a virada.
FICHA
TÉCNICA:
Texto:
Matéi Visniec
Tradução:
Alexandre David
Direção:
Fernando Philbert
Elenco:
Ester Jablonski e Fernanda Nobre
Cenário
e Figurino: Natália Lana
Iluminação:
Vilmar Olos
Trilha
/ Música Original: Tato Taborda
Direção
de Movimento: Marina Salomon
Direção
de Produção: Sérgio Canizio
Fotos:
Nil Caniné
Realização:
Jablonsky Produções Artísticas Ltda.
Assessoria
de Imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Coordenação
dos Debates: Adriana Novis Leite Pinto
Não precisa de legenda.
Voltando
ao início desta crítica, “Eu sei, mas
não devia”. Leiam a crônica e não se acomodem! “Estupro” é uma das mais horrorosas e disfônicas palavras do nosso
léxico e deveria não fazer parte dele.
Devo confiar?
SERVIÇO:
Temporada:
De 26 de maio a 19 de junho.
Dias
e Horários: De 5ª feira a sábado, às 19h e domingo, às 18h.
Local: Espaço SESC Copacabana / Sala
Multiuso.
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160,
Copacabana - Rio de Janeiro / RJ.
Tel.: (21) 2547 0156.
Valor
do Ingresso: R$20,00 (inteira), R$10,00 (meia-entrada), R$5,00 (associados
SESC)
Duração:
70 minutos.
Classificação
Etária: 14 anos.
Gênero:
Drama.
Uma nova Dorra.
Obrigado, Kate!
(FOTOS: NIL CANINÉ.)
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