domingo, 8 de maio de 2016


SE EU FOSSE IRACEMA

 

 

(UM GRITO DE SOCORRO.

ou

UMA JUSTA DENÚNCIA.

ou

VOCÊ, ADASSA MARTINS, É IRACEMA.)

 

 

 

 


 

 

 

            Infelizmente, só pude assistir a este espetáculo na penúltima semana da curta temporada, no Teatro do SESC Tijuca, motivo pelo qual não deu tempo de escrever sobre ele, naquele momento, pois estava bastante atarefado, e só agora o faço, com muita alegria, pelo que me foi dado ver e, ao mesmo tempo, com um pouco de tristeza, pelo fato de a peça ter ficado tão pouco tempo em cartaz, uma vez que merece ser vista por um grande público, para que se entenda como é possível montar um grande espetáculo, de indiscutível qualidade, com poucos recursos, em todos os sentidos.

 

            Apoiado no “release” da peça, que me chegou às mãos por intermédio de BIANCA SENNA, assessora de imprensa, digo se tratar de um monólogo, com dramaturgia de FERNANDO MARQUES, direção de FERNANDO NICOLAU, magistralmente interpretado por ADASSA MARTINS.

 

            O espetáculo foi idealizado por FERNANDO NICOLAU e FERNANDO MARQUES e, nele, ADASSA dá voz a diversos personagens, ligados à questão indígena.

 

A montagem, cujo processo demorou sete meses, é o primeiro trabalho do COLETIVO 1COMUM, movimento que pretende agrupar artistas de linguagens distintas, para promover pesquisas cênicas em TEATRO, dança e criar um diálogo com as artes visuais, em cuja área ADASSA MARTINS tem formação acadêmica.

 



 


Mãe e filho.

 

 

 

 
SINOPSE:
 
A peça tem início com a figura do pajé, pessoa de extrema importância na tribo, que representa a sabedoria, e que traz ADASSA interpretando um texto, em guarani, inspirado no cacique Raoni, o qual participa do documentário “Belo Monte, Anúncio De Uma Guerra”, de André D’Elia. Em seguida, a atriz vive uma mulher bêbada, lendo os primeiros quatro artigos da Constituição de 1988.
 
E sucedem-se outros personagens.
 
Após o prólogo, a dramaturgia une mitos e ritos de passagem, não necessariamente de forma linear. “Escolhemos trabalhar o ciclo da vida: a origem do mundo, a infância, a adolescência, a fase adulta, na figura da mulher, e o ancião, na figura do pajé, chegando ao fim do mundo”, explica o diretor.
 
Alguns trechos foram traduzidos para o guarani pelo cineasta indígena Alberto Álvares. Para dar voz a alguns personagens, ADASSA desenvolveu uma interlíngua: “Ouvi os pajés e diversos índios, falando, em documentários, e percebi os fonemas mais presentes. A ideia é criar uma fusão do português com uma língua indígena”, conclui a atriz.
 

 

 


 


A cor da minha pele difere da do branco,

mas a cor do sangue é igual.

 

 

A ideia para a construção do espetáculo surgiu com uma carta, escrita pelos índios guarani kaiwoá, em 2012, a qual despertou o interesse do ator e diretor FERNANDO NICOLAU para a condição indígena no país. No texto, pediam que sua morte fosse decretada, em vez de tirarem sua terra. Sensibilizado, convidou o dramaturgo FERNANDO MARQUES para um mergulho numa profunda pesquisa. Juntos, iniciaram o processo de criação do monólogo.

 

A peça não tem a intenção de levantar uma bandeira e, sim, a de provocar uma reflexão. Branco, mestiço, índio, ocidental. É possível coexistir? Abordando a questão indígena no Brasil, a montagem examina a questão da possibilidade de convivência das diferenças.

 

“As contradições estão presentes em diversos relatos e textos documentais que usamos na concepção”, explica o diretor.

 

“O FERNANDO apresenta o projeto de forma tão apaixonada, que me senti honrada pela possibilidade de falar sobre este assunto. Olhamos tão pouco para os índios, parece que ficaram em 1.500”, destaca ADASSA.

 

“SE EU FOSSE IRACEMA” teve, como inspiração e referência, os seguintes filmes: “Índio Cidadão?”, de Rodrigo Siqueira; “Belo Monte, Anúncio De Uma Guerra” e “A Lei Da Água”, ambos de André D’Elia. Recém-lançado no Brasil, o livro francês “A Queda do Céu – Palavras De Um Xamã Yanomâmi”, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, também foi uma importante referência, tanto para o autor quanto para o diretor. Obras de Darcy Ribeiro, Alberto Mussa, Betty Mindlin e Manuela Carneiro da Cunha também fizeram parte do processo de pesquisa, assim como encontros e entrevistas com estudiosos.

 

O espetáculo se resume em 60 minutos de pura beleza e emoção, durante os quais o público se sente completamente atraído pelo trabalho da atriz, como num transe coletivo, e, mesmo durante as falas, a da primeira cena, principalmente, que é um pouco longa, mas, de maneira alguma, longe de ser cansativa, sem entender o significado das palavras, ditas numa língua completamente estranha, sente a emoção e a força do que elas representam, o que há de lamento e denúncia nelas, em função da brilhante interpretação de ADASSA. Seu belo trabalho de voz, aliado ao fantástico tratamento corporal e às suas expressões faciais, o “falar pelos olhos”, todo o conjunto é responsável por um dos melhores trabalhos de atriz que já tive a oportunidade de ver nos últimos tempos.

 

 

 


Os olhos falam.

 

 

Sempre fui um grande admirador do talento de ADASSA, que está sempre emendando uma peça em outra, isso quando não faz dois trabalhos simultaneamente, mas, com este, ela passa a fazer parte da minha galeria das grandes atrizes brasileiras.

 

Um monólogo sempre dá, ao ator, a oportunidade de mostrar sua versatilidade, como intérprete, e isso ADASSA MARTINS provou que tem, para dar e vender, e o mostra nos sutis detalhes, observados nas mudanças de um personagem para outro.

 

FERNANDO MARQUES foi muito feliz na dramaturgia, pois o texto contempla fatos, constatações e denúncias sobre o pouco, ou nenhum, caso que se atribui aos verdadeiros donos da terra, aqueles que, ao longo de mais de 500 anos, viram, e ainda veem, sua cultura sendo massacrada, exterminada, vilipendiada pela ganância do conquistador, pela falta de sensibilidade do homem branco, dito membro de uma civilização “culta e progressista”.

 

Há trechos, praticamente todos, de profunda beleza e, ao mesmo tempo, que nos levam a uma reflexão, de causar muita tristeza. Porque não é ficção; está muito bem escrito, no papel; foi decorado por uma grande atriz; mas representa a mais pura e triste realidade.

 

A simplicidade da peça, em termos técnicos, é diretamente proporcional à sua grandeza, como espetáculo.

 

Não é preciso mais do que um tronco cortado por uma lâmina de vidro, no centro do palco/arena, para que a atriz desenvolva o seu trabalho. Um cenário, de LICURGO CASEIRA, simples, original, lindo e, ao mesmo tempo, funcional, assim como a iluminação, trabalho do mesmo artista, que apresenta detalhes riquíssimos e da maior importância nesta montagem, limitando o espaço cênico, com paredes de luz, e destacando os olhos da atriz, numa das melhores sequências da peça, apenas para citar alguns detalhes.

 

 

 


Não precisa mais do que isto.

 

 

E o que dizer do figurino, de LUIZA FRADIN, também responsável pela caracterização? Reproduzindo o “release”, o figurino “não faz um retrato carnavalesco da cultura indígena”. De forma interessantíssima, ELISA desenhou uma saia longa, de látex e borracha, material que vem da terra, na Natureza, que proporciona, à atriz, um movimento livre, ao mesmo tempo em faz emitir sons, em seus deslocamentos em cena, que parecem ajudar na, ou fazer parte da, ótima trilha sonora original, de JOÃO SCHMID, que também assina o desenho de som. Acima da cintura, apenas um pequeno bustiê, de tecido fino e delicado, que a atriz usa apenas por um tempo, e um belo adereço, um significativo colar.

 

 

 

Texto expõe referências de etnias originárias no país, demarcação de terras e direitos fundamentais dos índios (Foto: Divulgação/Adassa Martins)

Figurino.

 

 

 

            Saí do Teatro II do SESC Tijuca, naquela noite de domingo, não encontrando palavras que conseguissem expressar toda a minha emoção e agradecimento a todos os envolvidos no projeto, digno de muitos prêmios.

 

 




FICHA TÉCNICA:
 
Dramaturgia: Fernando Marques
Direção: Fernando Nicolau
Assistência de Direção: LuCa Ayres


Elenco: Adassa Martins

Cenografia: Licurgo Caseira
Iluminação: Licurgo Caseira
Figurino: Luiza Fradin
Caracterização: Luiza Fradin
Trilha Sonora Original: João Schmid
Desenho de Som: João Schmid
Direção de Arte e Projeto Gráfico: Fernando Nicolau
Escultura do Busto: Bruno Dante
Fotografia: João Júlio Mello (Imatra)
Direção de Produção e Produção Executiva: Clarissa Menezes
Realização e Produção: 1COMUM
Idealização: Fernando Nicolau e Fernando Marques
 

 

 


 

O espetáculo multilinguagem mistura teatro, dança e performance (Foto: Divulgação/Adassa Martins)

Evocação!

 



Da zona norte para a zona sul, a fim de atender a uma outra fatia do público que se interessa pelo bom TEATRO, felizmente, está prevista a reestreia deste excelente espetáculo para o próximo dia 14 de maio, numa sala do Espaço Cultural Sérgio Porto.

 

Como o espetáculo é bastante intimista e só funciona em espaços que comportem um número reduzido de pessoas, chamo a atenção para a necessidade de reservar, com antecedência, o seu ingresso, para não correr o risco de perder uma das melhores peças deste primeiro semestre de 2016, que se aproxima de seu final.

 

 




A tristeza do pajé.



 

(FOTOS: JOÃO JÚLIO MELLO

– IMATRA.)










Com Adassa Martins – Foto: Marisa Sá.)





 

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