sábado, 4 de julho de 2015


CONSERTAM-SE IMÓVEIS

 

 

(“MENTIRAS SINCERAS ME INTERESSAM”.)

 
 

 


 

           

 

Por total falta de oportunidade, não consegui escrever sobre esta peça antes,  durante a primeira temporada, no Espaço SESC, em abril passado.  Agora, após a temporada relâmpago, de cinco dias, no Teatro Glauce Rocha, encerrada, infelizmente, no último domingo, 28 de junho, faço, porém, questão de escrever um pouco sobre ela, por considerá-la um grande espetáculo teatral, um dos melhores deste primeiro semestre / 2015.

 

 

 


Da esquerda para a direita, Suzana Nascimento, Alonso Zerbinato, Jarbas Albuquerque e Raquel Alvarenga.

 

 

            Eis a sinopse, fornecida pela assessoria de imprensa do espetáculo:

 

 
SINOPSE:
 
            CONSERTAM-SE IMÓVEIS conta a história de uma família, cuja trama é firmemente entrelaçada, figurando, no centro, um nó fundamental: a mãe, idosa e enferma.
            Ao se verem diante de situações inesperadas e de um iminente colapso, todos os seus membros se articulam, em desdobrados esforços, para poupar a matriarca de sobressaltos, que podem ser fatais.
            Com relativo êxito, esse controle dura, até que alguns acontecimentos escapam, novamente, do roteiro inicial, obrigando-os a investir toda a energia em empreender novas mudanças, justamente para que nada mais mude.
 

 

 

 


 

 


 

 

            A família é formada por INÊS (SUZANA NASCIMENTO), TIA DORA  (RAQUEL ALVARENGA), IGOR (JARBAS ALBUQUERQUE), TIO DARIO (EDUARDO CRAVO), estes presentes em cena, e INÁCIO, irmão de INÊS e IGOR, que viajara, a trabalho, e “não conseguia tempo para voltar a casa e visitar a família”, o qual é apenas citado, o tempo todo, além da MÃE dos três, que mora na mesma casa, mas vive reclusa, num quarto, enferma, não aparecendo em cena nem participando, sequer, com sua voz em “off”.

            Um dos maiores destaques desta peça é o texto, de KELI FREITAS, a qual bebeu na fonte do escritor argentino Julio Cortázar (1914 / 1984).  Como na obra do consagrado escritor, o estranho, o fantástico, o mágico desfilam, lado a lado, no palco. 

Mais propriamente, o texto da peça baseia-se no conto “A Saúde dos Doentes”, daquele consagrado escritor.  No conto, ocorre a morte de um dos filhos da matriarca, num acidente de carro, fato que a família resolve omitir da velha enferma, para poupar-lhe mais sofrimentos.  Ocorre que a mentira vai tomando grandes proporções, já que o tempo passava e o que esperavam acontecer num breve espaço de tempo, como uma consequência natural do estado de saúde da senhora, ou seja, a sua morte, não ocorre, advindo daí uma situação insustentável, de continuar alimentando uma farsa.

 

 

 


 

 

 

Na peça, da mesma forma como ocorre no conto, a família escreve cartas, supostamente enviadas pelo filho (INÁCIO), que são lidas para a senhora, e esta, no seu leito de enferma, dita respostas, escritas por TIA DORA, para serem remetidas ao filho distante.

Fui levado ao teatro, para ver CONSERTAM-SE IMÓVEIS, com dois pensamentos.  Um deles era sobre o título, que reportava, no plano da lógica, a reparos em casas, apartamentos e congêneres, o que, convenhamos, dificilmente “daria uma bom caldo”, em se tratando de TEATRO.  Depois de ter assistido a peça, na segunda vez, foi que me dei conta da metáfora nele contida, sobre a qual falarei adiante.  O outro me tirava um pouco a expectativa de ver alguma novidade: o tema girava em torno de “família”, sobre o qual tanto já se escreveu, que parece, à primeira vista, estar esgotado.  Ledo engano!  Trata-se de um tema muito rico, que permite a pessoas criativas e inteligentes, como Cortázar e KELI, novas percepções e a exploração de meandros, até então, bastante escondidos.

Muitas surpresas, curiosas revelações, um emaranhado de conflitos, dúvidas aos borbotões, tudo isso está lá, no texto, para que possamos olhar para dentro de nós, para o seio da nossa própria família, e fazer muitas reflexões, com o objetivo de chegar, ou não, a conclusões acerca do que ela representa para cada um de nós e do quanto, e como, estamos engajados nela.

 

 


 

 

CYNTHIA REIS conduz a direção do espetáculo com maestria, revelando muita sensibilidade e criatividade.  Imprime, à peça, um ritmo “primoroso”;  primeiro”, no sentido qualitativo, e moroso, como o passar dos dias dos membros daquela família, o que não torna o espetáculo lento; ao contrário, paradoxalmente, ele prende a atenção do espectador, do princípio ao fim.  Há momentos em que, por exigência da situação, o ritmo cresce um pouco em intensidade. 

A “sacada” de os atores jogarem chaves ao chão, para segredarem, uns com os outros, é genial.  É engraçado, alivia as tensões que atrama proporciona.

 

 


O elenco, com Eduardo Cravo, último à direita, substituindo Alonso Zerbinato, e, ao fundo, Federico Puppi, com seu violoncelo.

 

 

Palmas para LORENA LIMA, pelo espetacular cenário, simples, em elementos cênicos, e rico, em significados.  Apresenta cômodos ou partes de uma casa, com seu mobiliário, delimitados por fita crepe, aplicada no piso.  O detalhe marcante, no que se refere à cenografia, e que tem o dedo da direção, é claro, é o fato de esses espaços distintos (a sala, a oficina do TIO, um escritório...) irem, ao longo da peça, se transferindo de um ponto para outro do palco, dentro das referidas delimitações do terreno.

 

 


Detalhes da cenografia e da iluminação.

 

 

É aqui que cabe a explicação referente ao que entendi pelo termo “imóveis”, contido no título da peça.  Creio não se tratar do substantivo, mas, sim, do adjetivo, substantivado, significando aquilo, ou aqueles, que não consegue(m) mover-se, mudar, transformar-se, como é o caso dos elementos daquela estranha família.  Tudo é móvel, no cenário, mas de nada vale tal mobilidade, se esta não existe dentro de cada um dos personagens.  Além de INÊS, que, ao menos, tenta, com o seu estudo do inglês, ninguém muda ou demonstra desejo em fazê-lo.  É uma outra mentira.

 

 


 

 

São bons os figurinos, de BRUNO PERLATTO, assim como excelente é a luz, de PAULO CÉSAR MEDEIROS, que não vem de cima, como de hábito, mas tem sua origem no chão e nas laterais do palco, numa altura, no máximo, igual à dos atores, produzindo um belo efeito plástico.  Tripés, com refletores, também são movidos pelos que estão em cena.

Um grande diferencial, neste espetáculo, recai sobre a ótima música, composta e, brilhantemente, executada, ao vivo, por FEDERICO PUPPI, ao violoncelo, instrumento cuja sonoridade me agrada muito, principalmente quando bem executado, como é o caso em tela.

 

 


 

  

No elenco, ainda que todos estejam em perfeita harmonia, no que diz respeito à qualidade das interpretações, é RAQUEL ALVARENGA quem consegue aplausos em cena aberta, por conta de sua magnífica construção da personagem TIA DORA, com sua compulsão por falar; seu marcante sotaque mineiro; seus erros de decodificação, por conta de uma surdez; e pela repetição de frases feitas.  Quando conta, aos outros, os sonhos que, diariamente, tem, ela o faz de uma forma muito engraçada, pelos exageros e pelas situações inusitadas neles contidos.  E quando resolve falar com sotaque lusitano?!  TIA DORA é o elemento cômico, nesse oceano de dramas e conflitos, fazendo um excelente contraponto.

SUZANA NASCIMENTO, ótima, como sempre, também arranca muitas gargalhadas, às vezes, nervosas, principalmente quando INÊS tenta aprender inglês, por método auditivo, repetindo, com uma pronúncia duvidosa, o que está gravado nas fitas cassete (Olha o arcaísmo aí, gente!) que ouve.  Uma total inutilidade é aprender inglês naquela altura do campeonato.  Ela o faz às escondidas, durante a madrugada, e, por várias vezes, é interrompida pelos outros da casa, gerando momentos divertidíssimos.  A cena em que ela lê, para os demais membros da família, as “atas” referentes às tarefas de cada um, na casa, é, simplesmente, hilária e quase surreal.

 

 


 

 

ALONSO ZERBINATO interpreta o TIO DARIO, que vive construindo frutas de madeira, com o objetivo de encher uma fruteira, o que nunca consegue terminar.  Tem um objetivo, na vida, jamais alcançado.  Na segunda temporada, foi substituído, à altura, por EDUARDO CRAVO.  Ambos fazem um bom trabalho.

Completa o quarteto de ótimos atores JARBAS ALBUQUERQUE, IGOR.  A cena em que ele faz a leitura de uma das “cartas de INÁCIO, enquanto INÊS treina o seu inglês, é ótima.

Aos poucos, a MÃE vai perdendo o interesse pelo filho ausente, sinal de que, talvez, já desconfiasse de que estava sendo enganada, havia tempo, e não desejava decepcionar os outros, preferindo permitir que eles pensassem que ela acreditava em toda aquela farsa.

Enquanto TIA DORA vai lendo uma das respostas ditadas pela MÃE, numa das  cartas a INÁCIO, IGOR e INÊS vão decorando a casa, com ridículos elementos de festa infantil, para a comemoração do aniversário da MÃE.  É bem interessante a cena, já que os festejos ocorrem no quarto da aniversariante; fora de cena, portanto.  Apenas o que dizem é ouvido, enquanto o palco está vazio.  

            Como ainda somos livres para pensar e refletir, não nos cobram, por enquanto,  impostos ou taxas para que isso aconteça, ocorreu-me uma outra leitura para a ausência de INÁCIO, que pode ser um grande voo da minha imaginação, um exagero de fertilidade criativa, mas que encontra justificativa plausível na peça.  É possível que o filho “desertor” não tenha morrido, e sim, simplesmente, abandonado os parentes, por ter enxergado ser ele o único lúcido numa família de loucos.  Talvez não quisesse se deixar contaminar por aquele ambiente dessincronizado com a realidade.  Alguém embarca comigo neste “balão mágico”?

            CONSERTAM-SE IMÓVEIS merecia uma carreira mais longa, por sua qualidade, alcançada com bastante trabalho e competência de todos os envolvidos no projeto.  

           

 


 

 

 

 
FICHA TÉCNICA:
 
Idealização e direção: Cynthia Reis
Texto: Keli Freitas

Elenco: Alonso Zerbinato (depois, Eduardo Cravo), Jarbas Albuquerque, Raquel Alvarenga e Suzana Nascimento

Cenário e Produção de Arte: Lorena Lima
Figurino: Bruno Perlatto
Iluminação: Paulo César Medeiros
Composição e Direção Musical: Federico Puppi
Orientação Filosófica: Alexandre Mendonça
Fotografia: Guga Millet
Projeto Gráfico: Raquel Alvarenga
Assessoria de Imprensa: Minas de Ideias
Produção: Cynthia Reis e Raquel Alvarenga
Direção de Produção: Aline Mohamad
Realização: Tucanae Produções
 

 

 



(FOTOS: GUGA MILLET.)

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