EU
NÃO DAVA PRAQUILO
(IMAGINA,
SE DESSE...)
Pode
ser que uma andorinha só não faça verão, mas, certamente, um genial ator, sozinho, faz – e muito – um inesquecível
espetáculo, num verão.
Permito-me
uma descontração, para dizer que, o Teatro
I do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro, devidamente
refrigerado, é um oásis, neste verão senegalês da ex-Cidade Maravilhosa, no
qual um único ator, e seu enorme talento, apoiado, evidentemente, em vários
colaboradores, se apresenta num monólogo, de cerca de uma hora, que é daqueles espetáculos
que marcam, sobremaneira, na vida de um amante do bom TEATRO.
O
ator é CASSIO SCAPIN e o espetáculo,
EU NÃO DAVA PRAQUILO.
Depois de uma temporada de
muito sucesso nos palcos paulistanos, que rendeu, inclusive, dois prêmios, o APCA 2013 e o Qualidade Brasil, como melhor ator, para CASSIO, e uma indicação
ao Prêmio SHELL (por São Paulo), de 2014,
além de uma passagem por Belo Horizonte, o espetáculo ficará em cartaz, no Rio de Janeiro, até o dia 1º de março.
O idealizador do espetáculo é o próprio CASSIO, que, juntamente com CÁSSIO
JUNQUEIRA, escreveu o texto, além, obviamente, de interpretá-lo. A ótima direção é de ELIAS ANDREATO.
Aqui vai a sinopse, fornecida pela produção do
espetáculo:
SINOPSE:
EU NÃO DAVA PRAQUILO é um monólogo cômico-dramático, a partir da
biografia da atriz e diretora paulista MYRIAN
MUNIZ, uma das mais influentes personalidades do TEATRO BRASILEIRO das últimas décadas.
Além de contar passagens
da vida, pessoal e profissional, da homenageada, o espetáculo pretende ser uma
ode ao ofício teatral e sua importância como agente de transformação, tanto
individual quanto social.
Mas
o que pode haver de tão especial num monólogo, de cerca de 60 minutos, em que
um ator, sem recursos de maquiagem nem figurinos femininos, interpreta uma
mulher?
T-U-D-O!!!
Não fosse esse
ator CASSIO SCAPIN e a mulher em
questão, a atriz MYRIAM MUNIZ,
falecida em 2004, aos 73 anos de idade, um dos maiores nomes do TEATRO BERASILEIRO de todos os tempos.
A ideia de
manter viva a imagem de uma das mais importantes personalidades do nosso TEATRO foi o que motivou CASSIO, além do desejo de homenagear o TEATRO BRASILEIRO. Trata-se de uma louvação à paixão e à magia
que o TEATRO exerce sobre os que por
ele se interessam, como agentes ou pacientes.
É, acima de tudo, um espetáculo movido a muita paixão. Paixão por um ofício, sem dúvida nenhuma,
daqueles que exigem dedicação total dos que o abraçam, como foi o caso de MYRIAM MUNIZ e é o de CASSIO SCAPIN.
No palco,
quase nu, contando apenas com diáfanas cortinas pretas e uma outra, a última
(uma surpresa, só revelada ao final da peça), um pequeno praticável circular,
sobre o qual está uma antiga cadeira giratória, de madeira, o ATOR, com todas as letras maiúsculas,
vestindo um figurino simples (uma calça e uma camiseta, ambas pretas) e
utilizando, como objetos de cena, apenas um pedaço de pano, preto, como um
xale, que serve para várias composições, e um cigarro, apagado, que ele “fuma’,
durante quase todo o espetáculo, sofre uma metamorfose e “É” MYRIAM MUNIZ.
Sim, num trabalho de construção de
personagem, para o qual não poderiam faltar detalhes, como a mão trêmula, a
voz, ao mesmo tempo, rouca e esganiçada, e outros trejeitos da atriz, é
impossível que alguém não veja, à sua frente, a MYRIAM rabugenta, teimosa, irreverente, desbocada e, acima de tudo,
verdadeira e talentosa. Para CASSIO, “impulsiva, intuitiva e de uma
generosidade, hoje, rara nos palcos”.
Na definição de ELIAS ANDREATO,
diretor da peça, “uma sacerdotisa do teatro, cujos ensinamentos marcaram diversos
artistas”. A verdade é que, entramos
em transe, diante de uma entidade, “ressuscitada” numa interpretação teatral.
CASSIO (ou ela, MYRIAM) nos fala de sua vida pessoal e profissional, de seus
fracassos e sucessos, estes com a maior humildade possível, uma das marcas da
atriz, para a qual a fama nada representava.
Nunca foi de querer aparecer e conquistar espaço na mídia; muito ao
contrário, mantinha-se afastada das luzes que não fossem as dos palcos.
Independentemente
da dimensão de sua personagem, como protagonista ou coadjuvante, MYRIAM sempre roubava a cena, era uma
giganta no palco ou nas telas, e era impossível não se deixar hipnotizar por
sua incomensurável carga emotiva em cena.
Isso fica bem patente, por exemplo, quando, em 1969, estreou, no cinema,
no filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, um marco da
filmografia brasileira, ao fazer um papel “menor”, de pouca duração na tela,
mas marcante, como poucas vezes já tive a oportunidade de ver. Sempre que assisto, em dvd, a essa obra-prima,
comovo-me com a cena dela.
Um
pouco sobre a trajetória de MYRIAM MUNIZ:
Myriam Muniz (foto: fonte
desconhecida)
Idem.
Estudou,
e praticou, enfermagem no Hospital Samaritano, mas não precisou de muito tempo
para perceber que estava no lugar e na profissão errada. Tentou a dança e chegou a fazer parte do Corpo
de Baile do Teatro Municipal de São Paulo, o que logo a fez constatar que se
tratava de um novo equívoco na escolha da profissão. Por um milagre, talvez, dos deuses do TEATRO, em 1958, matriculou-se na Escola de Arte Dramática de São Paulo (EAD).
Sua estreia, como atriz profissional, deu-se
em 1961. E começou bem, sendo dirigida
por nomes representativos, como os dos consagrados dramaturgos e diretores Augusto Boal, Zé Celso Martinez Correa e Antônio
Abujamra, dentre outros. Mais tarde,
fez parte do Teatro de Arena e do
corpo artístico da Cia. Dulcina de
Moraes.
Ampliando seu
leque de atividades ligadas ao TEATRO,
em 1975, foi uma das fundadoras do Teatro-Escola
Macunaíma, centro experimental de formação teatral, onde dava aulas de TEATRO.
E de vida, eu diria.
Além disso,
diversificando, mais ainda, o seu trabalho em cima de um palco, revelou-se
excelente diretora, de TEATRO e de “shows
musicais”, com destaque para o inesquecível Falso Brilhante, de Elis
Regina, também um marco nesse tipo de espetáculo.
Quem
se interessar por saber mais sobre sua vida e obra, procure o livro Giramundo: O Percurso de Uma Atriz - Myriam
Muniz, organizado por Maria Thereza
Vargas, que ganhou o Prêmio Shell de
Teatro, categoria especial, em 1998.
Sobre
o espetáculo, vale a pena ressaltar:
- O texto, de extrema qualidade, foi escrito a quatro mãos, numa simbiose perfeita, e parece que foram pinçadas, uma a uma, as palavras e frases que seriam ditas por Myriam, o que confere a ele muita credibilidade. Não se trata, de modo algum, de uma mera biografia, “engessadinha”, banal, como tantas, e não há como não ver e ouvir MYRIAM falando, vociferando, protestando, esbravejando, xingando, debochando, criticando, instruindo... Tudo com muito bom humor. É marcado por muitas sutilezas e filigranas, não de vocabulário, mas de sentido, e, nele, podem ser identificados, sem muito esforço, vários subtextos, tão ou mais valiosos quanto o que é dito, verbalmente, sem falar nas ironias. Diante da ignorância alheia, MYRIAM aconselhava: “Vai se informar!” “Vai pesquisar!”, equivalentes ao atual “Vai procurar no Tio Google!”.
- Não me lembro se está no texto da peça, mas me recordo de uma outra frase marcante de MYRIAM: “Ter o dom não basta; sem formação, o ator enlouquece!” E era, exatamente, para que isso não acontecesse com ela, que se dedicava, todos os dias, a aprofundar, mais e mais, os seus conhecimentos e suas técnicas teatrais. E, com toda razão, exigia o mesmo de seus pares.
- O título da peça é repetido várias vezes, sempre que o texto toca em algum dos fracassos da atriz, na tentativa de abraçar uma outra atividade profissional, todas anteriores à que a consagrou. Ao mesmo tempo, serve para que a personagem ratifique, sempre, que nasceu para o TEATRO. Eu, atrevidamente, diria: para a representação.
- O espectador sai do teatro com a certeza absoluta de ter assistido a um espetáculo que homenageia o ofício teatral e a importância deste como agente de transformação individual e social, como diz a própria sinopse da peça e é o pensamente de MYRIAM, de CÁSSIO e de ANDREATO. E, graças a Deus, da maioria dos que se dedicam a tão nobre arte.
- O trabalho de CASSIO SCAPIN é ímpar, superlativo, perfeito. Não se trata de uma simples mimese, bem elaborada. O trabalho de composição da personagem vai além de fazer uso de detalhes, cuidadosamente observados pelo ator, em MYRIAM, e repetidos em cena, como cusparadas, mãos trêmulas, o cigarro sempre entre os dedos, a voz característica da atriz, os olhares, as expressões faciais... Tudo isso não passa de elementos de apoio ao casamento da alma do ator com a da atriz. E o resultado é magnífico! Abençoadas bodas!!! É impressionante como o CASSIO SCAPIN assume e domina a personagem, entrando nela, e saindo da própria, da mesma forma, por vezes, como uma naturalidade invejável, contando com quase nada de elemento de apoio, a não ser os que já foram citados e o seu incomensurável talento dramático. Em três ou quatro vezes, se muito, o ator deixa de ser a personagem e pega o que seria o “script” de uma peça (A que ele está fazendo?) e finge estar decorando o texto, para, logo em seguida, voltar a vestir a pele de MYRIAM MUNIZ. Soa naturalíssima a postura física do ator, assim como todo o seu gestual. Ele se doa totalmente à personagem. Estamos diante de uma perfeita aula de representação teatral.
- É muito interessante e divertida a cena em que CASSIO SCAPIN brinca, direta e respeitosamente, com o público, como se MYRIAM ministrasse uma de suas aulas de TEATRO. Eu, que sou avesso à interatividade direta ator/plateia, aplaudo a cena, que fez com que eu, como todo o auditório, me levantasse e seguisse as instruções da “Mestra”. Leve, divertida e respeitosa a cena.
- Quanto à direção, de ELIAS ANDREATO, não há muito o que falar, pois, com sua inteligência, sensibilidade e tarimba, não se preocupou em “inventar a roda” nem com detalhes sofisticados, para marcar seu trabalho. Optou, de forma muito acertada, por, simplesmente, orientar o ator quanto à sua postura e posicionamento em cena, com não muitos movimentos, apenas em momentos necessários a tais deslocamentos. Se o ator ficasse sentado o tempo todo naquela cadeira, creio que o resultado seria o mesmo: CASSIO hipnotiza as pessoas. MYRIAM e CASSIO era/é/SÃO, praticamente “autodirigível(is)”. Excelente direção!
- Os cenários e os figurinos, de FABIO NAMATAME, lembram muito os de REI LEAR, também assinados por ele, espetáculo recentemente encenado no Rio de Janeiro, monólogo com Juca de Oliveira. Isso, porém, não significa nada de negativo; pelo contrário, conta, positivamente, para o cenógrafo e figurinista, porque, tanto lá quanto aqui, esses dois elementos deveriam mesmo ser discretos, parcimoniosos, para que todo o foco recaísse sobre os dois atores, Juca e CASSIO. O palco quase vazio valoriza a ação e o trabalho do ator, porquanto, neste espetáculo, MYRIAM e o TEATRO são os personagens centrais, ou o personagem central, já que os dois se fundem numa só entidade.
- É formidável a iluminação de WAGNER FREIRE, não muito intensa, ajudando a criar um ambiente minimalista, intimista e, por vezes, misterioso.
- A trilha original, de JONATAN HAROLD, também é um ótimo elemento de apoio para a encenação.
EU NÃO DAVA PRAQUILO é uma celebração a MYRIAM MUNIZ, ao TEATRO e a tudo a eles relacionados.
RECOMENDO, COM EMPENHO, E PRETENDO REVER TÃO MAGNÍFICO ESPETÁCULO.
FICHA
TÉCNICA:
Roteiro: CÁSSIO JUNQUEIRA e
CASSIO SCAPIN
Elenco: CASSIO SCAPIN
Direção: ELIAS ANDREATO
Figurino e Cenário: FABIO NAMATAME
Iluminação: WAGNER FREIRE
Trilha Sonora: JONATAN HAROLD
Assistente de Direção: ANDRÉ ACIOLI
Produção Executiva: ANGELA DÓRIA
Fotos: JOÃO CALDAS
Programação Visual: DENISE BACELLAR
Produção Local: RUBIM PRODUÇÕES
Direção de Produção: FERNANDA SIGNORINI
Assessoria de Imprensa: DANIELLA CAVALCANTI
Patrocínio: BANCO DO BRASIL
Realização: CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL
SERVIÇO:
Temporada: Até 1º de março
Local: Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Primeiro de Março, 66 – Centro) –
Teatro I
Horários: De quinta-feira a domingo, às 19h
Ingressos: R$ 10,00 (inteira)
Capacidade: 172 lugares
Duração: 60 minutos
Classificação: 16 anos
Gênero: Comédia dramática
Bilheteria: De quarta-feira a domingo, a partir das 10h
Informações: 3808-2020
(FOTOS: JOÃO CALDAS)
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