“FESTIVAL
DE CURITIBA”
“REI LEAR”
ou
(A ARTE “DRAG”
EM GRANDE ALTA.)
ou
(MENINOS, EU VI!!!)
O “FESTIVAL DE CURITIBA” recebeu, na sua 33ª
edição, um dos espetáculos mais incensados pelo público e pela crítica especializada,
na temporada de 2024, em São Paulo. Refiro-me a “REI LEAR”, uma montagem arrojada,
interpretada, única e exclusivamente, por “drag queens”, sendo que uma
delas(*), muito merecidamente,
abiscoitou um dos maiores prêmios de TEATRO do Brasil, como “Melhor
Ator”, pela versão paulista do prêmio.
(*) Muito a propósito, faço aqui um parêntese, para um
esclarecimento, com o objetivo de evitar qualquer mal-entendido. Jamais me
passou pela cabeça tal intenção. Existem “drag
queens” que, civilmente (a minoria, quero crer), se
identificam com o gênero masculino, como é o caso
de ALEXIA TWISTER, cujo nome de batismo desconheço e
não vem ao caso, a(o) premiada(o) na categoria “Melhor
Ator”. Ocorre que, sem saber que gênero utilizaria para me referir a elas, até
porque, além de não ter os nomes civis daqueles artistas, não sei com qual
gênero cada um daqueles homens se identifica (Tenho
a impressão, inclusive, de que, no elenco, há uma mulher trans.), e já pedindo
desculpas a todos, decidi-me por empregar o feminino, partindo do
significado do substantivo inglês “queen”, em português “rainha”. Espero, de coração, não criar nenhum tipo de
melindre e ser compreendido.
“REI LEAR” é mais um espetáculo que não
veio para o Rio de Janeiro (Gostaria muito de revê-lo aqui.) e ao qual não
consegui assistir em São Paulo, mas tive a grata
oportunidade de conferi-lo em Curitiba. Sim, eu vivi –
GRAÇAS AOS DEUSES DO TEATRO –, para assistir a uma tragédia de Shakespeare
em que todos os personagens (Houve supressão de alguns, secundários.),
homens e mulheres, são interpretados por um conjunto de excelentes atores que
praticam a arte das “drag queens”, não reconhecida por alguns, porém do agrado da
maioria. Em mim, esse tipo de arte conta com um festejado apreciador. E, com
sua irreverência, os artistas transformaram um tragédia pura numa tragicomédia,
sem, contudo, alterar a costura do enredo e das cenas. É evidente que fica mais
fácil entender a proposta para aqueles que conhecem o texto no seu original, todavia
mesmo os que não são familiarizados com a trama puderam entender o “fio
da meada”. E todos se divertem muito com o espetáculo. Se você não faz parte do clã shakespeariano raiz, os ortodoxos, e, sim, é permeável às novidades inteligentes e criativas, que merecem ser aplaudidas e festejadas, haverá de gostar deste espetáculo.
Nesta
adaptação, para lá de irreverente e corajosa, a “CIA. EXTEMPORÊNEA”, de São Paulo, apostou todas as suas
fichas numa arrojada ideia e, ainda que pudesse perder todas – era
uma incógnita, penso eu –, ganhou a aposta, com direito a pedidos de
novas temporadas e, em Curitiba, recebeu calorosas ovações
das plateias que disputaram ingressos, logo esgotados, para conferir a
encenação. Se fosse feita uma pesquisa entre os que assistiram a muitos
espetáculos do evento, certamente este “REI LEAR” figuraria nos que mais
agradaram, contando, inclusive, com o meu voto, sem precisar fazer “boca
de urna”.
SINOPSE:
Na tragédia de Shakespeare, Lear,
rei
da Bretanha, está muito velho e anuncia que decidiu dividir seu reino
entre as suas três filhas, Cordelia, Regan e Goneril.
Antes de passar a coroa, o monarca
pergunta a elas qual das três o amava mais.
Quem demonstrasse maior amor pelo pai
ganharia a uma porção mais robusta de terras.
A mais nova, Cordelia, a única que o
amava genuinamente, porém, se recusa a participar do ritual de passagem da
coroa, e o rei, furioso, a condena ao exílio.
Após o banimento da irmã, Regan
e Goneril
começam uma luta violenta pelo poder.
O exílio de Cordelia põe em marcha a
completa desagregação do reino.
Traído pelas filhas e sem sua coroa,
o velho rei vê seu reino à beira de uma guerra e afunda em uma espiral de
loucura, arrependido por banir a única pessoa que o amou de verdade.
Tudo,
nesta montagem, corresponde a acertos, desde a adaptação do texto,
passando por todos os nomes da FICHA
TÉCNICA, até chegar ao destaque maior, que é o fabuloso elenco. O mais
importante, nesta produção, não é ser mais uma encenação, embora “diferente”,
da famosa tragédia de Shakespeare – poderia ser de um Nelson
Rodrigues, um Dias Gomes, um Tennessee Williams ou outro grande dramaturgo
qualquer -, mas sim que isso fosse posto em prática, pelos corpos de “drags
queens”; é, antes de tudo, uma
homenagem à arte dessas valorosas artistas.
Acredito que uma das coisas mais
difíceis de se conseguir, nesta encenação, e totalmente alcançado, foi dosar alguns
dos elementos que caracterizam a tragédia shakespeariana, como o
protagonista ser uma pessoa de bom caráter, mas que se destrói por causa de um
erro cometido, que o leva à ruína; o herói enfrentar um dilema crítico e sofrer,
por causa de suas próprias decisões; o herói se perder na luta entre o bem e o
mal; e o acaso e o
destino desempenharem um papel importante, amalgamar tudo isso com a linguagem e o comportamento “drag” contemporâneos, “sem
que nem uma (característica) nem outra
se desfigurem no processo”, ou seja, “sem que Shakespeare perca em
poesia e tragicidade e sem que a ‘drag’ se descaracterize naquilo que ela tem
de mais autêntico: a dissolução das fronteiras estéticas e o desafio aos papéis
tradicionais de gênero”.
Curiosamente, e não sei se
intencional ou não, com relação a quem se apresenta no palco nesta peça, não
devemos abandonar a origem do vocábulo “drag”, somado àquelas que são as “queens”.
Em outras palavras, o que o bardo inglês teria a ver com o vocábulo “drag”?
Ainda que baseado em hipóteses: no Teatro elizabetano, as mulheres não
podiam atuar e eram os homens que interpretavam os papéis femininos (Conferir
o filme “Shakespeare Apaixonado”.), e sabe-se que Shakespeare anotava a
palavra “drag” antes das falas dos personagens femininos representados
pelos homens. Há, ainda, outra explicação para a palavra, que pode ser uma
redução, em forma de sigla, para a expressão “Dressed as Girl” (em
português, “vestida como menina") ou “Dressed resembling a girl” (“vestido semelhante a uma
garota”, na nossa língua), ainda que esta justificativa também seja
incerta. Acho improvável, inclusive.
A
ideia à qual a figura de uma “drag” nos remete é a de festa,
alegria e humor, substantivos incompatíveis (aqui, até a página 5)
com uma tragédia - e essa positividade também existe em cena -, no entanto elas,
as “drags”,
embora vestidas com figurinos exóticos, femininos, criativos e interessantíssimos (Leia-se
SALOMÉ ABDALA) e estejam exageradamente maquiadas (Visagismo de MALLONA e POLLY),
conseguem absorver toda a carga dramática que o original do texto apresenta e
pede. Sobre isso, assim se pronunciou, magnificamente, a diretora da peça, INES BUSHATSKY, que faz um excelente
trabalho, diga-se de passagem, impecável: “quem está em cena é aquilo que, ao
longo do processo, chamamos de ‘a drag total’. Para além da comicidade em que
já estamos habituados a vê-la, é a ‘drag’ nesse registro trágico. Vamos do
cômico ao trágico, do performático ao teatrão, às vezes dentro de uma mesma
cena”.
Além de ALEXIA TWISTER (Adoro os nomes artísticos dessa
gente engraçada.), que, merecidamente, teve seu talento reconhecido, na
forma de uma premiação e pelos calorosos aplausos que recebe, a cada sessão, todas
as demais “drags” se incumbem de dar o seu “show” particular, em
harmonia com o todo, com muita maestria e profissionalismo. Já estava mais que
na hora de as “drags” provarem que não existem só para fazer dublagens, o que
já é excelente, a meu juízo, mas, sim, que podem interpretar um papel
tragicômico. Mais do que isso, era mister que lhes fosse dada essa
oportunidade, que as 9 grandes artistas agarram com unhas, muito bem feitas (momento
descontração) e dentes.
A estética “drag”
foi explorada à farta, pela direção e o elenco, fazendo com que o espetáculo
seja muito alegre, embora pautado numa tragédia. Parece estranho? Façam preces aos
“DEUSES
DO TEATRO”, para que o espetáculo volte ao cartaz e possam conferir, os que a ele ainda não assistiram!
Uma declaração provocativa, da parte de JOÃO MOSTAZO, adaptador do texto e assistente de direção: “O que
fomos descobrindo é que a ‘drag’ tem, em si, toda a potência trágica, ela
acessa toda a complexidade de emoções que compõe a tragédia. E, por outro lado,
com as suas sacadas de linguagem, provocações e irreverência, Shakespeare é
também muito mais ‘drag’ do que, normalmente, se supõe”.
Muito da
plasticidade do espetáculo é devido à cenografia, de FERNANDO PASSETTI,
assim como à iluminação, de ALINE SANTINI. Tive a oportunidade
de ouvir, em tom de depoimento ao pé do ouvido, de alguns atores, diretores e
técnicos, após os espetáculos, que “a luz não era, exatamente, a original”, em função das dificuldades
de serem montadas num “Festival” de alta rotatividade, como
o “de
Curitiba”, e que aquela, sim, era bonita. Sinceramente, se há algo mais
encantador do que os desenhos de luz que vi nos palcos, os "originais" devem ser o “suprassumo do ótimo”.
FICHA TÉCNICA:
Texto adaptado do original de William
Shakespeare: João
Mostazo
Direção: Ines Bushatsky
Assistência de Direção: João Mostazo
Elenco: Alexia Twister,
Antonia Pethit, DaCota Monteiro, Ginger Moon, Lilith Prexeva, Maldita Hammer,
Mercedez Vulcão, Thelores, Xaniqua Laquisha
Cenário: Fernando Passetti
Figurino: Salomé Abdala
Iluminação: Aline Santini
Visagismo: Malonna e Polly
Assistente de Perucaria: Yuri
Tedesco
Trilha Sonora e Operação de Som: Gabriel
Edé
Preparação Vocal: Felipe
Venâncio
Operação de Luz: Cauê
Gouveia
Microfonista: Viviane Barbosa
Contrarregragem: Felipe
Venâncio, Matias Ivan Arce
Costura: Caio Katchborian,
Nana Simões e Salomé Abdala
Sapatos: Porto Free
Calçados
Bordados: Alesha Bruke,
Salomé Abdala
Fotos: Annelize Tozetto
Arte Gráfica: Lidia Ganhito
Redes Sociais: Mariana
Marinho
Assistente de Produção: Gabriela
Ramos
Direção de Produção: Tetembua
Dandara
O espetáculo figurou em
mais de uma lista dos melhores encenados na capital paulista, em 2024,
como irreverente, visceral e verdadeiro, com o que concordo, mesmo tendo
assistido a apenas alguns outros. Trata-se de uma acertadíssima montagem,
por desafiar discursos normativos sobre a arte “drag”; resgatar o caráter
insurgente e combativo da “drag”; fazer uma leitura ousada e
diferente da obra de Shakespeare, reafirmando sua
essência; colocar em cena um diálogo entre a tradição e o contemporâneo; transitar
da luz da alegria irreverente para momentos escuros de intensidade trágica; destacar a diversidade estética do universo “drag”; e reforçar a importância política de dar protagonismo à arte “draguiana”
(Criei
um neologismo.)
OBSERVAÇÃO: Não posso me furtar, mais uma vez, a tecer elogios ao brilhante e impecável trabalho de Annelize Tozetto, com relação às fotos, que ela me cedeu, como uma das fotógrafas oficiais - Havia homens também. - do "Festival de Curitiba".
FOTOS:
ANNELIZE TOZETTO
É preciso ir ao TEATRO, ocupar todas as salas de espetáculo, visto que a arte educa e constrói, sempre; e salva. Faz-se necessário resistir sempre mais. Compartilhem esta crítica, para que, juntos, possamos divulgar o que há de melhor no TEATRO brasileiro!

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