terça-feira, 15 de abril de 2025


“FESTIVAL

DE CURITIBA”

“REI LEAR”

ou

(A ARTE “DRAG”

EM GRANDE ALTA.)

ou

(MENINOS, EU VI!!!)

 

 



         O “FESTIVAL DE CURITIBA” recebeu, na sua 33ª edição, um dos espetáculos mais incensados pelo público e pela crítica especializada, na temporada de 2024, em São Paulo. Refiro-me a “REI LEAR”, uma montagem arrojada, interpretada, única e exclusivamente, por “drag queens”, sendo que uma delas(*), muito merecidamente, abiscoitou um dos maiores prêmios de TEATRO do Brasil, como “Melhor Ator”, pela versão paulista do prêmio.

 


 

         (*) Muito a propósito, faço aqui um parêntese, para um esclarecimento, com o objetivo de evitar qualquer mal-entendido. Jamais me passou pela cabeça tal intenção. Existem “drag queens” que, civilmente (a minoria, quero crer), se identificam com o gênero masculino, como é o caso de ALEXIA TWISTER, cujo nome de batismo desconheço e não vem ao caso, a(o) premiada(o) na categoria “Melhor Ator”. Ocorre que, sem saber que gênero utilizaria para me referir a elas, até porque, além de não ter os nomes civis daqueles artistas, não sei com qual gênero cada um daqueles homens se identifica (Tenho a impressão, inclusive, de que, no elenco, há uma mulher trans.), e já pedindo desculpas a todos, decidi-me por empregar o feminino, partindo do significado do substantivo inglês “queen”, em português “rainha”. Espero, de coração, não criar nenhum tipo de melindre e ser compreendido.



 

         “REI LEAR” é mais um espetáculo que não veio para o Rio de Janeiro (Gostaria muito de revê-lo aqui.) e ao qual não consegui assistir em São Paulo, mas tive a grata oportunidade de conferi-lo em Curitiba. Sim, eu vivi – GRAÇAS AOS DEUSES DO TEATRO –, para assistir a uma tragédia de Shakespeare em que todos os personagens (Houve supressão de alguns, secundários.), homens e mulheres, são interpretados por um conjunto de excelentes atores que praticam a arte das “drag queens”, não reconhecida por alguns, porém do agrado da maioria. Em mim, esse tipo de arte conta com um festejado apreciador. E, com sua irreverência, os artistas transformaram um tragédia pura numa tragicomédia, sem, contudo, alterar a costura do enredo e das cenas. É evidente que fica mais fácil entender a proposta para aqueles que conhecem o texto no seu original, todavia mesmo os que não são familiarizados com a trama puderam entender o “fio da meada”. E todos se divertem muito com o espetáculo. Se você não faz parte do clã shakespeariano raiz, os ortodoxos, e, sim, é permeável às novidades inteligentes e criativas, que merecem ser aplaudidas e festejadas, haverá de gostar deste espetáculo.



 

         Nesta adaptação, para lá de irreverente e corajosa, a “CIA. EXTEMPORÊNEA”, de São Paulo, apostou todas as suas fichas numa arrojada ideia e, ainda que pudesse perder todas – era uma incógnita, penso eu –, ganhou a aposta, com direito a pedidos de novas temporadas e, em Curitiba, recebeu calorosas ovações das plateias que disputaram ingressos, logo esgotados, para conferir a encenação. Se fosse feita uma pesquisa entre os que assistiram a muitos espetáculos do evento, certamente este “REI LEAR” figuraria nos que mais agradaram, contando, inclusive, com o meu voto, sem precisar fazer “boca de urna”.

 

 


 


SINOPSE:

Na tragédia de Shakespeare, Lear, rei da Bretanha, está muito velho e anuncia que decidiu dividir seu reino entre as suas três filhas, Cordelia, Regan e Goneril.

Antes de passar a coroa, o monarca pergunta a elas qual das três o amava mais.

Quem demonstrasse maior amor pelo pai ganharia a uma porção mais robusta de terras.

A mais nova, Cordelia, a única que o amava genuinamente, porém, se recusa a participar do ritual de passagem da coroa, e o rei, furioso, a condena ao exílio.

Após o banimento da irmã, Regan e Goneril começam uma luta violenta pelo poder.

O exílio de Cordelia põe em marcha a completa desagregação do reino.

Traído pelas filhas e sem sua coroa, o velho rei vê seu reino à beira de uma guerra e afunda em uma espiral de loucura, arrependido por banir a única pessoa que o amou de verdade.


 



 

         Tudo, nesta montagem, corresponde a acertos, desde a adaptação do texto, passando por todos os nomes da FICHA TÉCNICA, até chegar ao destaque maior, que é o fabuloso elenco. O mais importante, nesta produção, não é ser mais uma encenação, embora “diferente”, da famosa tragédia de Shakespearepoderia ser de um Nelson Rodrigues, um Dias Gomes, um Tennessee Williams ou outro grande dramaturgo qualquer -, mas sim que isso fosse posto em prática, pelos corpos de “drags queens”; é, antes de tudo, uma homenagem à arte dessas valorosas artistas.



 

         Acredito que uma das coisas mais difíceis de se conseguir, nesta encenação, e totalmente alcançado, foi dosar alguns dos elementos que caracterizam a tragédia shakespeariana, como o protagonista ser uma pessoa de bom caráter, mas que se destrói por causa de um erro cometido, que o leva à ruína; o herói enfrentar um dilema crítico e sofrer, por causa de suas próprias decisões; o herói se perder na luta entre o bem e o mal; e o acaso e o destino desempenharem um papel importante, amalgamar tudo isso com a linguagem e o comportamento “drag” contemporâneos, “sem que nem uma (característica) nem outra se desfigurem no processo”, ou seja, “sem que Shakespeare perca em poesia e tragicidade e sem que a ‘drag’ se descaracterize naquilo que ela tem de mais autêntico: a dissolução das fronteiras estéticas e o desafio aos papéis tradicionais de gênero”.



 

            Curiosamente, e não sei se intencional ou não, com relação a quem se apresenta no palco nesta peça, não devemos abandonar a origem do vocábulo “drag”, somado àquelas que são as “queens”. Em outras palavras, o que o bardo inglês teria a ver com o vocábulo “drag”? Ainda que baseado em hipóteses: no Teatro elizabetano, as mulheres não podiam atuar e eram os homens que interpretavam os papéis femininos (Conferir o filme “Shakespeare Apaixonado”.), e sabe-se que Shakespeare anotava a palavra “drag” antes das falas dos personagens femininos representados pelos homens. Há, ainda, outra explicação para a palavra, que pode ser uma redução, em forma de sigla, para a expressão “Dressed as Girl” (em português, vestida como menina") ou Dressed resembling a girl” (“vestido semelhante a uma garota”, na nossa língua), ainda que esta justificativa também seja incerta. Acho improvável, inclusive.



 

         A ideia à qual a figura de uma “drag” nos remete é a de festa, alegria e humor, substantivos incompatíveis (aqui, até a página 5) com uma tragédia - e essa positividade também existe em cena -, no entanto elas, as “drags”, embora vestidas com figurinos exóticos, femininos, criativos e interessantíssimos (Leia-se SALOMÉ ABDALA) e estejam exageradamente maquiadas (Visagismo de MALLONA e POLLY), conseguem absorver toda a carga dramática que o original do texto apresenta e pede. Sobre isso, assim se pronunciou, magnificamente, a diretora da peça, INES BUSHATSKY, que faz um excelente trabalho, diga-se de passagem, impecável: quem está em cena é aquilo que, ao longo do processo, chamamos de ‘a drag total’. Para além da comicidade em que já estamos habituados a vê-la, é a ‘drag’ nesse registro trágico. Vamos do cômico ao trágico, do performático ao teatrão, às vezes dentro de uma mesma cena”.



 

         Além de ALEXIA TWISTER (Adoro os nomes artísticos dessa gente engraçada.), que, merecidamente, teve seu talento reconhecido, na forma de uma premiação e pelos calorosos aplausos que recebe, a cada sessão, todas as demais “drags” se incumbem de dar o seu “show” particular, em harmonia com o todo, com muita maestria e profissionalismo. Já estava mais que na hora de as “drags” provarem que não existem só para fazer dublagens, o que já é excelente, a meu juízo, mas, sim, que podem interpretar um papel tragicômico. Mais do que isso, era mister que lhes fosse dada essa oportunidade, que as 9 grandes artistas agarram com unhas, muito bem feitas (momento descontração) e dentes.



 

         A estética “drag” foi explorada à farta, pela direção e o elenco, fazendo com que o espetáculo seja muito alegre, embora pautado numa tragédia. Parece estranho? Façam preces aos “DEUSES DO TEATRO”, para que o espetáculo volte ao cartaz e possam conferir, os que a ele ainda não assistiram!



 

Uma declaração provocativa, da parte de JOÃO MOSTAZO, adaptador do texto e assistente de direção: “O que fomos descobrindo é que a ‘drag’ tem, em si, toda a potência trágica, ela acessa toda a complexidade de emoções que compõe a tragédia. E, por outro lado, com as suas sacadas de linguagem, provocações e irreverência, Shakespeare é também muito mais ‘drag’ do que, normalmente, se supõe”.



 

Muito da plasticidade do espetáculo é devido à cenografia, de FERNANDO PASSETTI, assim como à iluminação, de ALINE SANTINI. Tive a oportunidade de ouvir, em tom de depoimento ao pé do ouvido, de alguns atores, diretores e técnicos, após os espetáculos, que “a luz não era, exatamente, a original”, em função das dificuldades de serem montadas num “Festival” de alta rotatividade, como o “de Curitiba”, e que aquela, sim, era bonita. Sinceramente, se há algo mais encantador do que os desenhos de luz que vi nos palcos, os "originais" devem ser o “suprassumo do ótimo”.




 

 

FICHA TÉCNICA:

Texto adaptado do original de William Shakespeare: João Mostazo   

Direção: Ines Bushatsky    

Assistência de Direção: João Mostazo 

            
Elenco: Alexia Twister, Antonia Pethit, DaCota Monteiro, Ginger Moon, Lilith Prexeva, Maldita Hammer, Mercedez Vulcão, Thelores, Xaniqua Laquisha

Cenário: Fernando Passetti

Figurino: Salomé Abdala
Iluminação: Aline Santini
Visagismo: Malonna e Polly
Assistente de Perucaria: Yuri Tedesco
Trilha Sonora e Operação de Som: Gabriel Edé
Preparação Vocal: Felipe Venâncio
Operação de Luz: Cauê Gouveia
Microfonista: Viviane Barbosa
Contrarregragem: Felipe Venâncio, Matias Ivan Arce
Costura: Caio Katchborian, Nana Simões e Salomé Abdala
Sapatos: Porto Free Calçados
Bordados: Alesha Bruke, Salomé Abdala
Fotos: Annelize Tozetto
Arte Gráfica: Lidia Ganhito
Redes Sociais: Mariana Marinho
Assistente de Produção: Gabriela Ramos
Direção de Produção: Tetembua Dandara        

  

 

 



 

          O espetáculo figurou em mais de uma lista dos melhores encenados na capital paulista, em 2024, como irreverente, visceral e verdadeiro, com o que concordo, mesmo tendo assistido a apenas alguns outros. Trata-se de uma acertadíssima montagem, por desafiar discursos normativos sobre a arte “drag”; resgatar o caráter insurgente e combativo da “drag”; fazer uma leitura ousada e diferente da obra de Shakespeare, reafirmando sua essência; colocar em cena um diálogo entre a tradição e o contemporâneo; transitar da luz da alegria irreverente para momentos escuros de intensidade trágica; destacar a diversidade estética do universo “drag”; e reforçar a importância política de dar protagonismo à arte “draguiana” (Criei um neologismo.)




  OBSERVAÇÃO: Não posso me furtar, mais uma vez, a tecer elogios ao brilhante e impecável trabalho de Annelize Tozetto, com relação às fotos, que ela me cedeu, como uma das fotógrafas oficiais - Havia homens também. - do "Festival de Curitiba".









FOTOS: ANNELIZE TOZETTO



 

É preciso ir ao TEATRO, ocupar todas as salas de espetáculo, visto que a arte educa e constrói, sempre; e salva. Faz-se necessário resistir sempre mais. Compartilhem esta crítica, para que, juntos, possamos divulgar o que há de melhor no TEATRO brasileiro! 














































































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