sábado, 20 de julho de 2019


ANGELS
IN
AMERICA:
 PARTE 1: O MILÊNIO
SE APROXIMA
e
PARTE 2: PERESTROIKA


(TEATRO NA VEIA
ou
TEATRO DE RESISTÊNCIA.
ou

TEATRO COMO NO TEATRO.)






Sim, é ousado! Sim, é impactante! Sim, é imprescindível! Sim, é atual! Sim, é utilíssimo! Sim, é muito bem encenado! Sim, estava fazendo falta, no cenário teatral carioca, algo como “ANGELS IN AMERICA”, espetáculo que está em cartaz, para, infelizmente, uma temporada muito curta, no Teatro Riachuelo Rio de Janeiro (VER SERVIÇO). Trata-se de um “épico gay norte-americano, um dos maiores sucessos teatrais do planeta nos anos 90, vencedor dos prêmios Tony Award, Drama Desk Award e Pulitzer Prize, considerado, por muitos estudiosos, como o texto teatral mais importante dos últimos 50 anos”. Texto escrito, em 1992, pelo dramaturgo e roteirista norte-americano TONY KUSHNER, cuja lista de produção dramatúrgica é extensíssima, a peça, por ser demasiadamente longa, é dividida em duas partes: a primeira recebeu, no original, o título de  “MILLENNIUM APPROACHES” (“O MILÊNIO SE APROXIMA”, na montagem aqui analisada) e a segunda, “PERESTROIKA”, título mantido na versão brasileira.




Esta montagem recebeu o cuidadoso tratamento do diretor PAULO DE MORAES. Para mim, bateu como a mais recente obra-prima apresentada pela ARMAZÉM COMPANHIA DE TEATRO, sempre nos surpreendendo, com trabalhos que vêm marcando sua trajetória, de três décadas, e grande colaboração para que o TEATRO BRASILEIRO se imponha e seja respeitado, pelos daqui e pelos estrangeiros. Não é à toa que a COMPANHIA já participou, a convite, de festivais e apresentações em vários países, levando o nosso nome e mostrando a pujança do nosso TEATRO.

A ARMAZÉM foi fundada em Londrina, em 1987, e, ao apagar da luzes dos anos 90 (1998), coincidentemente (?), quase à entrada de um novo milênio, a COMPANHIA se transferiu para o Rio de Janeiro, onde mantém uma sede fixa, na antiga Fundição Progresso, na Lapa, local no qual ocupa um espaço, para a apresentação de suas peças, das quais lanço luz sobre “Alice Através do Espelho”, “Casca de Noz”, “A Caminho de Casa”, “Toda Nudez Será Castigada”, “Mãe Coragem e Seus Filhos”, “Inveja dos Anjos”, “Hamlet”, “A Marca da Água” e “O Dia em que Sam Morreu”, principalmente, sem obedecer à cronologia.




            Por ser dividido em duas partes, o espetáculo é um díptico, conjunto de duas obras que se completam, e está sendo encenado, pela primeira vez, no Brasil, em sua versão integral (A primeira parte, “O MILÊNIO SE APROXIMA”, foi montada, em São Paulo, em 1995.), com 5 horas de duração, apresentada em dois formatos: como duas peças autônomas, que podem ser vistas em dias alternados, e como uma grande peça, com as duas partes encenadas juntas, contando com um intervalo entre elas. Uma sugestão: assisti às duas partes no mesmo dia e acho que é o melhor que se faz, para que não se perca o clima do final da primeira, o que será muito difícil recuperar, em outro dia, para o início da segunda. Não é nenhum sacrifício, pra quem aprecia o bom TEATRO. O tempo passa, sem que o percebamos; fluem, na mesma velocidade, os tempos cronológico e psicológico.

            O espetáculo teve sua estreia nacional, em maio de 2019, em São Paulo, no Teatro Antunes Filho, e, logo, se tornou uma das maiores atrações da temporada teatral paulista do primeiro semestre, grande sucesso de público e de crítica. No Rio de Janeiro, a montagem pode ser vista nas seguintes opções: Parte I: O Milênio, às 6ªs feiras, às 20h, e sábados, às 17h; Parte II: Perestroika, aos sábados, às 20h e domingos, às 18h. As duas partes somam aproximadamente 5 horas de duração.




Fazendo uso do “release”, enviado por NEY MOTTA (CONTEMPORÂNEA COMUNICAÇÃO), “‘ANGELS IN AMERICA’ se passa na década de 1980, em Nova York, durante a chamada ‘Era Reagan’ e quando a AIDS assolava a cidade, como uma espécie de epidemia. Mas Nova Yorque, aqui, pode ser qualquer um desses lugares densamente povoados, lotados, onde é fácil pensar que a pessoa ao seu lado, no metrô ou no elevador, ou mesmo na cama, pode estar do outro lado do mundo.  Há uma pressa, uma urgência, nesse ir e vir constante, da grande cidade, que parece não permitir o tempo estendido de se conectar ao outro. Mas, apesar e por conta disso, as personagens arrebatadas de TONY KUSHNER – cheias de dor, medo e uma frágil esperança – tentam fazer contato dentro deste abismo”.









SINOPSE:

Deus abandonou o paraíso.

Na terra – mais especificamente na cidade de Nova Iorque – um novo profeta está para surgir.

O ano é 1985, o milênio se aproxima rapidamente, e PRIOR WALTER (JOPA MORAES) é o profeta que se erguerá dos destroços deste terrível século. Mas ele tem problemas maiores. Com apenas trinta anos, acaba de ser diagnosticado com AIDS. Seu namorado, LOUIS IRONSON (LUIZ FELIPE LEPREVOST), é incapaz de lidar com a progressão dos sintomas. O vômito, as feridas, a doença o apavoram de tal modo, que ele decide se mudar e deixa PRIOR. Sozinho, no apartamento, PRIOR – o profeta – tem sonhos febris, quando ouve uma voz angelical, que chama por ele.

Paralelo a isso, o famoso advogado ROY COHN (SÉRGIO MACHADO) – uma figura que, realmente, existiu, – também recebe, de seu médico, a notícia de que está com AIDS. Perverso e ultraconservador, esconde sua homossexualidade e sua doença. Por mais temido e influente que seja em todo o país, é a primeira vez que COHN se depara com algo que não pode controlar. O todo poderoso se vê fraco.

O pupilo de ROY, JOE PITT (RICARDO MARTINS), é mórmon e trabalha no Tribunal de Apelação, como chefe de gabinete há cinco anos. ROY oferece a ele um cargo importante, no Departamento de Justiça, em Washington, para que JOE o beneficie em um processo, que visa expulsar COHN da Ordem dos Advogados. JOE se vê dividido entre a carreira e seus princípios éticos. Além disso, seu casamento com HARPER (LISA EIRAS) não vai nada bem. A criação religiosa fez com que JOE nunca assumisse sua homossexualidade e, para aplacar a depressão da relação, HARPER ingere quantidades enormes de Valium, buscando refúgio em suas alucinações. Num momento de crise, JOE liga para a mãe, HANNAH (PATRÍCIA SELONK), e conta a ela que é “gay”. HANNAH o repreende, veementemente, durante a ligação, mas, dias depois, vende a casa, em Salt Lake City, onde morava, e chega a Nova Yorque, para descobrir que o filho sumiu. Ele deixa HARPER, para viver com LOUIS – que trabalha no tribunal, como digitador – a sexualidade que sempre reprimiu.

JOE – advogado, mórmon, republicano – personifica a América que LOUIS abomina, mas um improvável elo se forma entre eles, uma paixão sexual e poderosa.

PRIOR está desolado, sem alguém do seu lado. Perdeu muitos amigos para a AIDS, nos últimos tempos e teme ser o próximo. No auge da doença e da febre, um ANJO desce dos céus e aparece em seu quarto. O ANJO (MARCOS MARTINS) é, de certa forma, assustador. Ele explica que o movimento da espécie humana – sua incapacidade de se manter parada, de não se misturar – seria a causa dos males do mundo e do desaparecimento de Deus.

PRIOR é o escolhido, para restabelecer a paz, cessando todos os movimentos migratórios da humanidade. Ele faz de tudo para rejeitar sua profecia, torna-se, progressivamente, mórbido e amargurado, causando preocupação em seu amigo BELIZE (THIAGO CATARINO), que tenta ajudá-lo a lidar com a rejeição de LOUIS e a cuidar da saúde debilitada.

BELIZE é enfermeiro e trabalha no turno da noite no hospital em que ROY é internado. Negro, “gay” e “ex-drag queen”, conhece bem as feridas profundas causadas pelo avanço da política e do pensamento neoliberal defendidos por ROY COHN.

Isolado e enfraquecido, ROY recebe a visita de uma velha conhecida, o fantasma de ETHEL ROSENBERG (PATRÍCIA SELONK), que fora condenada à cadeira elétrica, nos anos 50, graças à influência do advogado na época do macarthismo, política que pregava o controle e a imposição de penalidades contra aqueles que tivessem algum envolvimento com “atividades antiamericanas”, os “comunistas”. Uma caça às bruxas.

O que fazer diante de um sofrimento arrasador? Como sobreviver a uma época monstruosa? É preciso parar ou devemos manter as nossas vidas em constante movimento?







            A extensa sinopse – e não poderia ser de outra forma – deixa clara a complexidade do enredo, bem como a necessidade de o espectador se manter bem atento às ações, para que compreenda a trama, não perca nenhum detalhe e possa fazer as suas reflexões, a partir de analogias.

            Ainda que passada no final do século XX, “ANGELS IN AMERICA”, uma “peça especial”, pode ser considerada muito atual, por conta do “colapso em que o mundo se encontra hoje”, provocando reflexões acerca da visão de mundo do Ocidente, por parte de seus habitantes, sobre religiões, política, relações afetivas, abandono, sexo, medo da morte, covardia, crueldade, História... “Há um sentido de devastação se alastrando por toda a peça. Mas o resultado cênico é um movimento constante, personagens se fazendo vivos por estarem em movimento. Embora haja um cheiro de realidade permanente, a nossa montagem não é nada realista. Usamos um espaço nu, aberto. E, pairando sobre esse espaço aberto, um grande teto branco, uma espécie de asa geométrica, como um anjo pairando sobre a história. Fora isso, usamos pouquíssimos elementos em cena, para que os corpos dos atores sejam determinantes para a narrativa, e a imaginação do público seja cúmplice e finalizadora do acontecimento estético”, comenta o diretor PAULO DE MORAES.




            Enganam-se aqueles que pensam que a peça, tão somente, gira em torno da epidemia de AIDS, inicialmente chamada de “câncer gay”, o “castigo de Deus, para os sodomitas”, surgida, com grande ênfase, em Nova Iorque, na década de 80, muito embora a doença e todos os estragos e prejuízos, físicos e morais, contidos no bojo de suas consequências sirvam de pontapé inicial, de eixo, para que o autor tecesse uma trama que, no meu entender, representa um dos melhores exemplos de arquitetura dramatúrgica que conheço, centrada em três polos, por assim dizer, que se entrelaçam, de forma orgânica, muito bem ajustada: alguém, PRIOR WALTER descobre que tem AIDS e é deixado pelo namorado, LOUIS; o, agora, ex-namorado, então, se envolve com um advogado, JOE, que é mórmon e casado com uma mulher deprimida, em função de um casamento fracassado, HARPER, e viciada em Valium; JOE trabalha para um famoso, perverso, inescrupuloso e conservador advogado, ROY COHN, que também recebe a notícia de que está com AIDS. E como tudo isso se junta e para quê?

            O autor do texto apropria-se da epidemia de AIDS e a utiliza, como mote, para fazer desfilar polêmicas discussões, conflitos ligados a vários assuntos, como homofobia; questões raciais, incluindo imigração; liberdade sexual; preconceitos religiosos; efeitos danosos causados pelas drogas; nacionalismo exacerbado, ufanismo patriótico; sentimento de perda, abandono, traição e solidão; há espaço, até, para que se discutam as mudanças climáticas, na Big Apple do anos 80, e, obviamente, no mundo inteiro, causadas pelo aumento do “progresso” (emissão de gases tóxicos, rompimento na camada e ozônio e aquecimento global, por exemplo), que persistem, até hoje, a olhos vistos, percebidos e sentidos pela comunidade terráquea, menos pelo atual presidente norte-americano e seus seguidores.  



            Não tenho a menor ideia de como tenha sido a mais recente montagem da Broadway, estreada em 2017, entretanto sei, por amigos que viram as duas, que elas são bastante distintas, a começar pelo enxugamento do tempo. A original durava cerca de sete horas; aqui, gira em torno de cinco, o que, na visão dos privilegiados que assistiram às duas, em nada compromete a narrativa ou torna a nossa inferior àquela, no que acredito piamente.

            A peça é, sem a menor dúvida, política, no sentido mais amplo do adjetivo, e acusatória, e isso fica bem claro, no texto, que mostra o desejo do autor de lançar um olhar crítico para o governo conservador e elitista do, então, presidente Ronald Reagan, cujo segundo mandato foi marcado, principalmente, por assuntos internacionais, tais como o término da Guerra Fria, o bombardeio da Líbia e a revelação do Caso Irã Contras, além de ter apoiado os movimentos anticomunistas em todo o mundo. Como bom conservador, orgulhava-se de ter restaurado “o orgulho e da moral norte-americana”.




            Com relação à epidemia de AIDS, durante os dois governos, seus críticos afirmam que ele a “permitiu”, não se importando ou não se dando conta do grau de periculosidade do mal, ignorando-o. Teria sido uma omissão grave”, por homofobia e/ou ignorância. Ao que tudo indica, por seus rígidos e conservadores princípios, REAGAN parecia fazer coro com os que viam, na AIDS, “a vingança da natureza contra os ‘gays’”, como chegou a dizer, numa declaração, o seu porta-voz. Perversamente, “a doença era perfeita para sua visão de mundo homofóbica e foi utilizada, por ele, para atender a sua base eleitoral cristã-fundamentalista-conservadora-de-direita e seus preconceitos e aversões a homossexuais”. Segundo fontes da época, e isso está registrado, “apesar, mês após mês, do aumento assustador das taxas de infecção e do pedido de pesquisadores e profissionais, de todos os níveis da área de saúde, para fornecer dinheiro para a pesquisa da doença, o governo Reagan reagiu com indiferença”. Esse comportamento, totalmente incompatível com o cargo que ocupava, chega a ser assustador. Quando, em 1º de fevereiro de 1983, já haviam sido registrados 1.025 casos de AIDS, e, pelo menos, 394 mortos, somente nos EUA, Reagan permaneceu calado e assim continuou se comportando, quando, cerca de um ano mais tarde, o Centro Americano de Controle e Prevenção de Epidemias relatava 4.177 doentes de AIDS e 1.807 mortos. O silêncio de Reagan era o mesmo que silenciava a vida dos infectados. Nem quando o consagrado ator e galã de Hollywood Rock Hudson morreu de AIDS, provocando uma comoção mundial, Reagan se abalou ou fez algum pronunciamento. Em 1985, o congressista democrata Henry Waxman escreveu, no Washington Post, que ‘é surpreendente que o presidente fique calado, apesar de 6.000 americanos morrerem, e que ele possa ignorar a existência de uma epidemia. Talvez seus conselheiros estejam convencidos de que ele não tem escolha, porque a Nova Direita juntou fundos justamente através de um sentimento anti-gay’”.




“A administração Reagan – diretamente questionada sobre o tema em 1982 – levou tudo para o ridículo, para a piada. Enquanto isso, o Centro Americano de Controle e Prevenção de Epidemias tinha pouquíssimos recursos disponíveis para lutar, efetivamente, contra a propagação da doença nos EUA. E faltava, também, um plano geral de controle da epidemia. Somente no final do seu segundo mandato – maio de 1987 – Reagan deu suas primeiras palavras sobre o tema, na 3ª Conferência Internacional sobre AIDS, em Washington. Naquele momento, 36.058 cidadãos americanos já haviam sido diagnosticados com AIDS e 20.849 já tinham morrido em decorrência do vírus HIV. A doença já havia se espalhado para 113 países e matara mais de 50.000 pessoas”.




“Demorou 13 anos até que o, então, presidente dos EUA, Bill Clinton, declarou a AIDS como um ‘inimigo de Estado’ dos EUA. ‘A epidemia podia derrubar governos, criar caos na economia mundial e provocar conflitos étnicos’, assim explicou Clinton sua decisão. Seu governo disponibilizou amplos fundos para a pesquisa e prevenção da AIDS. Mas, de certa forma, já era, naquele momento, tarde demais, uma vez que o correr de anos a fio de recusa deliberada do governo americano, sob o comando de Reagan, em reconhecer seu perigo para a população, facilitou a propagação da epidemia de forma significativa”.

O comportamento de Reagan, com relação ao flagelo da AIDS, põe em destaque o drama particular de homossexuais, principalmente, vivendo a rápida disseminação da doença, inserido numa “atmosfera moralista e conservadora na política dos Estados Unidos, em meados dos anos 1980, moldando a sociabilidade do país. É um ambiente no qual o vírus, visto, inicialmente, como ‘castigo divino à sodomia praticada pelos gays’, encontrou condições não apenas biológicas, mas também sociais para se proliferar”.

Chamando a atenção para o fato de quão magnífico é o texto, passo a falar sobre os demais elementos que, reunidos, geraram um dos melhores espetáculos deste ano, até o presente momento, na temporada teatral carioca de 2019.




Sobre a direção, de PAULO DE MORAIS, considero bem criativa e dinâmica, principalmente para um espetáculo de longa duração e de complexidade textual, por concentrar, numa só narrativa, várias outras. PAULO consegue arrumar as coisas, de modo a propiciar um conforto, para os espectadores, no que diz respeito à compreensão da trama e à captação das mensagens camufladas nas entrelinhas. Acho ótima a ideia de deixar as coxias à mostra e manter alguns atores em cena, mesmo que dela não participem diretamente, assim como um constante movimento de entradas e saídas dos personagens. O diretor utiliza, nesta montagem, uma estética personalíssima, marca registrada de suas montagens, extraindo o máximo de cada ator, partindo de um relacionamento profissional de um bom tempo, o que o leva a conhecer os limites de cada um, procurando, porém, que estes se dilatem.




            Na opção por utilizar um mínimo de elementos cenográficos, um grande ponto alto, nesta encenação, num palco de grandes proporções, PAULO DE MORAES e CARLA BERRI, responsáveis pela cenografia, provocam e estimulam o espectador a “ver” bem mais do que está concretamente visível, em cena. As locações são sugeridas, praticamente, e cada um enxerga o que quer. Basicamente, de forma física, ocupam o espaço cênico dois extensos bancos de madeira, alguns ventiladores, uma plataforma móvel e um colchão. No teto, uma grande tela, para receber projeções. Há, ainda, alguns pequenos objetos de cena que pontuam uma ou outra cena, nada de tão significativo, porém indispensáveis ao momento. São palavras do diretor/cenógrafo: “A cenografia sempre foi determinante para mim e virou uma característica forte do Armazém. Mas a peça tem uma quantidade enorme de locações. Nas montagens da Broadway, em que os cenários se alternam, ela chega a quase sete horas de duração. Então, optamos pelo jogo entre os atores e a imaginação do público, para criar estes ambientes, nos despojamos de recursos cênicos e de composição, para privilegiar esta relação que está na base do teatro”. Penso ter sido essa intenção de muito bom gosto e plena de inteligência criativa.




Com relação aos figurinos, assinados por CAROL LOBATO, considero-os bem ajustados aos personagens, de muito bom gosto, discretos, que não “aparecem”, provocativamente, de forma correta, servindo, porém, com muito acerto, para a caracterização de cada um, insertos na época em que se passa a trama.

MANECO QUINDERÉ criou um desenho de luz bastante a serviço de cada cena e ambientação. Não abusa de cores e intensidade luminosa, como pede o universo da peça, e isso tem uma grande importância, para fazer com que a plateia compre a ideia do espetáculo e se deixe envolver com o que vê e ouve no palco, iluminado por um mestre no ofício.

Precisa, eficiente e muito coerente é a trilha sonora original, composta por RICCO VIANA, com estímulos musicais que valorizam cada cena em que a música se faz presente.

Mais uma vez, rendo-me ao belo trabalho de videografismo, impecável, criado pelos irmãos RICO e RICARDO VILAROUCA, com predominância de imagens nova-iorquinas e anjos, do bem e “do mal”.

É preciso muita resistência física, por parte dos atores, para enfrentar tanto tempo em cena e com marcações que exigem muito de seu preparo físico. É aí que entra, no trabalho, a luxuosa participação de PAULO MANTUANO, na preparação corporal, tão fundamental, principalmente para os dias em que são encenadas as duas partes, longas, ambas, e com um intervalo de 40 minutos, apenas.




            O elenco, digamos, fixo, da ARMAZÉM COMPANHIA DE TEATRO é excelente. Fica melhor, ainda, quando, em determinadas montagens, como esta, a COMPANHIA convida um ou mais atores. Melhor do que isso, praticamente, impossível. Em cena, um octeto atua de uma forma tão homogênea e visceral, que mesmo os personagens, aparentemente, de menor relevância, ganham uma importância incomensurável, em função do grande potencial dos atores que os representam, a maioria num só personagem, havendo quem se reveze em mais de um. São homossexuais, judeus, negros, mórmons, advogados, todos, direta ou indiretamente sob o terror da AIDS.

         Torna-se difícil analisar, individualmente, o trabalho de cada um dos oito, entretanto, procurando economizar palavras, escrever pouco e dizer muito, chamo a atenção do magistral trabalho de PATRÍCIA SELONK, que já diz a que veio logo na primeira cena, quando interpreta nada mais, nada menos que um rabino, discursando num funeral. Ali, o público que, porventura, ainda não conheça o potencial da ARMAZÉM COMPANHIA DE TEATRO já se prepara para o melhor do melhor, o que, de verdade, acontece. Além desse personagem, PATRÍCIA encarna HANNA PITT, a mãe mórmon do enrustido JOY, e o fantasma de uma “comunista”, judia, ETHEL ROSEMBERG (Personagem não fictício, na peça.), que volta, para assombrar a vida de ROY COHN (Também existiu, na vida real.), o qual, como atuante na acusação, teria sido responsável por tê-la levado, em 1953, à pena de morte, na cadeira elétrica, por espionagem, durante a terrível e nefasta época do macarthismo. Três personagens tão diferentes, interpretados por uma de nossas maiores atrizes de TEATRO.




        Apesar de jovem, porém com bastante experiência na COMPANHIA, como ator e dramaturgo, principalmente, JOPA MORAES se revela em seu melhor trabalho, na pele de PRIOR WALTER, o atormentado rapaz, que se desespera, diante do diagnóstico de AIDS, o que representava, naquela época, a condenação à morte, muito diferente dos dias de hoje, quando, graças aos avanços da ciência, é possível um soropositivo levar uma vida normal, sob cuidados, evidentemente, como um ser produtivo e não temido, na, e pela sociedade.  Jopa mantém uma interpretação regular, durante todo o tempo, mas, em determinadas cenas, destaca-se, entregando-se mais ao personagem, quando, principalmente, se vê desamparado, com o abandono do amor de sua vida. O ator consegue passar, com bastante verdade, a dúvida que se instaura na sua cabeça, diante das tristes circunstâncias: seguir em frente ou não. Nas cenas em que o personagem vive o delírio de visões com anjos, também é muito bom o seu trabalho.

        Coube a LUÍS FELIPE LEPREVOST a interpretação de um personagem de difícil construção, LOUIS IRONSON, cheio de contradições, medos e, um pouco de hipocrisia. Por oportuno, passou-me, agora, pela cabeça, que, por conta de tudo o que acontece na peça, se o espetáculo tivesse de ter o título mudado, por qualquer motivo, e caso este devesse caber numa única palavra, acho que o substantivo “HIPOCRISIA” resumiria tudo. LEPREVOST também tem momentos de marcante e convincente interpretação.  




            Um dos melhores trabalhos nesta encenação fica por conta de SÉRGIO MACHADO, que interpreta o advogado ROY COHN, que o dramaturgo foi buscar na vida real. A postura do personagem, revelada em suas ações e, mesmo, em algumas falas, encontra comparação com a postura do atual (des)governo federal, fundamentalista de extrema direita, homofóbico e anticomunista contumaz. Dessa analogia, querendo-se ou não, não se pode fugir. O personagem, na vida real, foi um fiel assessor do temido e cruel senador, inicialmente democrata e, depois, convertido aos republicanos, Joseph McCarthy, promotor da “caças às bruxas”, nos anos 50. Nas cenas em que, sob o terror da perseguição do fantasma da mulher vítima de sua perversidade, o ator também se destaca. Talvez, para o personagem, que é a cara do autoritarismo, do racismo e do conservadorismo, como escudo, para se “esconder no armário”, mais doloroso do que estar condenado à morte e vergonhoso, perante seus pares, é ter de passar seus últimos dias, em estado terminal e deplorável, na dependência completa e sob os cuidados de um enfermeiro negro e, também “gay”, interpretado, de forma brilhante, pelo ator THIAGO CATARINO, convidado para esta montagem, um grande acerto da direção.

            CATARINO interpreta dois personagens: um alegórico, SR. MENTIRA, e um enfermeiro, BELIZE, que trabalha no hospital em que ROY está internado. É amigo de PRIOR WALTER, extremamente cáustico, sarcástico, como produto de tudo o que sofreu na vida, principalmente, talvez, durante o tempo em que viveu como “drag queen”. Mordaz e indiferente para com ROY, cumprindo, apenas, seu ofício, ao contrário, dedica um sentimento de amparo, amizade e lealdade a PRIOR, tentando aliviar o peso de suas dores físicas e, principalmente, interiores. Encantou-me seu trabalho, que eu já admirava de outros anteriores, fora da ARMAZÉM.  




            Quem, também, tem uma passagem bastante marcante, na peça, é RICARDO MARTINS, interpretando o mórmon JOE PITT, que vive o tormento de um casamento “de fachada”, sob o pavor de assumir sua homossexualidade. Medo e vergonha. Vive, praticamente, sob a tutela do poderoso e implacável ROY, de quem é Chefe de Gabinete, no Tribunal de Apelação, seu “homem de confiança”, e, por esse motivo, anda na corda bamba, sob o seu comando e suas ordens. O personagem, muito bem interpretado, inspira, certa piedade, no público, gera uma empatia enorme, principalmente em muita gente que vive em condições semelhantes às dele. A partir do momento em que o personagem resolve revelar, à mãe, a sua condição de “gay” e abandona a mulher, para viver com outro homem, LOUIS, o ex-namorado “covarde” (Ou não?) de PRIOR, o ator consegue passar, com extrema clareza, o alívio que aquelas duas decisões representaram para o personagem, embora, vez por outra, aquelas tomadas de decisão ainda o perturbassem.

         LISA EIRAS interpreta a mulher do sofrido JOE. Infeliz no casamento, não recebendo a devida atenção e o amor do marido, ela vive em estado constante de depressão, mergulhada em Valium, um benzodiazepínico, “indicado para alívio sintomático da ansiedade, tensão e outras queixas somáticas ou psicológicas associadas com a síndrome da ansiedade. Pode, também, ser útil como coadjuvante no tratamento da ansiedade ou agitação associada a desordens psiquiátricas”. O medicamento serve como uma muleta, um escudo, uma espécie de abrigo, de “vetor” de fuga para as suas dores, quando acometida de alucinações. Não são tantas as suas aparições, porém todas são bem marcantes.




            O oitavo elemento do elenco, não menos importante, é um personagem pertencente ao universo do chamado realismo fantástico, na figura de um ANJO, vivido por MARCOS MARTINS. Ele surge, na primeira parte, como uma espécie de arauto da morte, aquele que vem anunciar, simbolicamente, com “O MILÊNIO SE APROXIMA”, de forma apocalíptica, o fim de uma era, ameaçada pelo surgimento de uma nova “peste negra”, um estigma mortal, a AIDS. Depois, na segunda parte do espetáculo, “PERESTROIKA”, do russo, que pode ser traduzido por “reconstrução” ou “reestruturação”, sua função é persuadir, ou ordenar, que PRIOR WALTER, praticamente condenado à morte, ainda que o surgimento do AZT trouxesse uma esperança de vida ou, no mínimo, de sobrevida, aos contaminados pelo HIV, que o rapaz agisse como um profeta de uma nova postura humana, já que alguma coisa estava fora da ordem, “fora da nova ordem mundial”. Caberia a PRIOR a tarefa inglória de fazer com que a paz fosse, novamente, restabelecida, voltássemos a placidez de um “pré-Adão e Eva”, com o rompimento ou interrupção daquilo que se convencionou chamar de “movimentos migratórios da humanidade”.










FICHA TÉCNICA:

Texto: Tony Kushner
Tradução: Maurício Arruda Mendonça
Direção: Paulo de Moraes

Elenco (em ordem alfabética: Jopa Moraes (Prior Walter), Lisa eiras (Harper Pitt), Luiz Felipe Leprevost (Louis Ironson), Marcos Martins (Anjo), Patrícia Selonk (Rabino, Hannah Pitt e Ethel Rosemberg), Ricardo Martins (Joe Pitt), Sérgio Machado (Roy Cohen) e Thiago Catarino (Belize e Sr. Mentira)  


Cenografia: Paulo de Moraes e Carla Berri
Iluminação: Maneco Quinderé
Figurinos: Carol Lobato
Música Original: Ricco Viana
Videografismo: Rico Vilarouca e Renato Vilarouca
Preparação Corporal: Paulo Mantuano
Fotografia: Mauro Kury
Designer Gráfico: Daniel de Jesus
Assessoria de Imprensa: Ney Motta (Contemporânea Comunicação)
Assistente de Produção: William Sousa
Produção Executiva: Flávia Menezes e Isabel Pacheco
Direção de Produção: Patrícia Selonk
Produção: Armazém Companhia de Teatro










SERVIÇO:

Temporada: De 05 a 28 de julho de 2019.
Local: Teatro Riachuelo – Rio de Janeiro.
Endereço: Rua do Passeio, nº 38 – Centro - Rio de Janeiro (próximo à estação Metrô Cinelândia).
Telefone: (21) 3554-2934.
Dias e Horários: 6s feiras, às 20h: “Angels in America Parte I – O Milênio se Aproxima”. Sábados, às 17h: “Angels in America Parte I – O Milênio se Aproxima” e, às 20h, “Angels in America Parte II – Perestroika”. Domingos, às 18h: “Angels in America Parte II – Perestroika”.
Valor dos ingressos: Plateia VIP: R$70,00 (inteira) e R$35,00 (meia entrada); Plateia:R$70,00 (inteira) e R$35,00 (meia entrada); Balcão Nobre: R$50,00 (inteira) e R$25,00 (meia entrada); Balcão Superior: fechado

Importante: Para cada sessão, o ingresso será vendido de maneira independente. Quem quiser assistir às duas partes, num sábado, terá de comprar dois ingressos: um, para a Parte I, e outro, para a Parte II.

Vendas na bilheteria, pelo site Ingresso Rápido (https://www.ingressorapido.com.br) e nas Lojas Riachuelo.

Lotação: 999 lugares, sendo 275, na Plateia Vip; 335, na Plateia; e 86, no Balcão Nobre.
Duração da Parte I: Aproximadamente 140 minutos.
Duração da Parte II: Aproximadamente 150 minutos.
Intervalo: Aos sábados, haverá intervalo de 40 minutos entre as Partes I e II.
Classificação Indicativa: 16 anos (Cenas de nudez, simulação de sexo e palavrões.)
Gênero: Drama





O diretor Paulo de Moraes.


            “Muitas questões levantadas, no texto, seguem atuais, como a estigmatização dos homossexuais ou a força do discurso religioso na política. Mas a gente não pensou em nada disso, para montar o espetáculo; era algo que queria fazer há muito tempo – conta MORAES. — Depois de comprar os direitos, começamos a trabalhar em janeiro do ano passado. Em outubro, quando o debate político estava mais acirrado, já estávamos marcando as cenas. Foi um processo longo”. Ainda que assim tenha sido, nada nos impede de encontrar muitos pontos em comum com a realidade atual, no Brasil e no mundo. Basta prestar um pouco mais de atenção, por exemplo em algumas falas, de todos os personagens, e, em especial, em algumas de ROY. A peça, além de atualíssima, trata de temas universais.

            “ANGELS IN AMERICA” merece a minha classificação como OBRA-PRIMA e me leva a recomendar o espetáculo com todo o meu empenho. Voltarei ao Teatro Riachuelo, na última semana, para mais uma “maratona”, assistindo, novamente, às duas partes num só dia, que, volto a dizer, é a melhor forma de se assistir ao espetáculo.



E VAMOS AO TEATRO!!!

OCUPEMOS TODAS AS SALAS DE ESPETÁCULO DO BRASIL!!!

A ARTE EDUCA E CONSTRÓI!!!

RESISTAMOS!!!
COMPARTILHEM ESTE TEXTO, 
PARA QUE, JUNTOS, POSSAMOS DIVULGAR
O QUE HÁ DE MELHOR NO
TEATRO BRASILEIRO!!!








(FOTOS: MAURO KURY.)





























































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