sexta-feira, 15 de abril de 2016


GUIA

AFETIVO

DA

PERIFERIA

 

(O DURO CAMINHO

DE SANTA CRUZ A IPANEMA

ou

COMO SOBREVIVI,

NA ADVERSIDADE,

E SOU FELIZ.)

 



 

 



Muitas peças de TEATRO são adaptações de livros. Nem todos rendem um bom resultado, principalmente quando os dramaturgos não são os seus próprios escritores. Não é o caso de “GUIA AFETIVO DE PERIFERIA”, baseado no livro homônimo de MARCUS FAUSTINI, sua primeira publicação, adaptado, para os palcos, pelo próprio autor.




Guia Afetivo da Periferia

Capa do livro.

 


O espetáculo cumpriu uma, infelizmente, curtíssima temporada, porém de grande sucesso, no Teatro Serrador, encerrada no dia 9 próximo passado, porém merecia ficar muito tempo em cartaz, para que muito mais pessoas tivessem a oportunidade de assistir a um dos melhores espetáculos, até agora, encenados, no Rio de Janeiro, neste ano de 2016. Felizmente, ainda que seja muito pouco, a peça fará mais três apresentações, no Teatro Café Pequeno, nos dias 29 e 30 de abril e 1º de maio próximos. Fiquem atentos!




O jovem exibe o seu troféu.

 

 
SINOPSE:
Misturando texto e projeções, o espetáculo revela as memórias de um jovem rapaz da periferia do Rio de Janeiro e suas experiências pela cidade, entre os anos 80 e 90.

No palco, esse jovem conta a sua história, escrevendo um livro. As imagens, as baganas de pensamento e quinquilharias ocupam seu quarto - seu mundo.
 
Ele encena, sozinho, suas memórias, prazerosamente, e se provoca, de forma irônica, refletindo sobre suas mazelas e as possibilidades que lhe são oferecidas, enfocando o trabalho, o amor e a arte.
 





João Pedro Zappa.

 


Desde que foi lançado, em 2009, o livro “Guia Afetivo da Periferia” passou a ser considerado, por consagrados críticos literários, como um marco da literatura da periferia no Brasil, servindo de estudo para diversos trabalhos acadêmicos e artigos.


Não há como negar que, no texto, há dois protagonistas, que, praticamente, se fundem num só: o jovem rapaz, que não tem nome, como a representar milhares e milhares de pessoas, anônimas, como ele, e o Rio de Janeiro. Ambos dialogam, o tempo inteiro, utilizando uma linguagem comum aos dois, a linguagem do coração.
 

A história é contada em primeira pessoa, uma vez que, por se tratar de uma autobiografia”, o autor do texto se coloca como personagem da própria obra, revelando uma radiografia da cidade, o seu cotidiano, ao qual se adapta o cotidiano do personagem, como quando fala do grande sacrifício para se deslocar de casa ao trabalho, e vice-versa, uma saga para heróis, vivida, diariamente, por milhares de outras pessoas.

 

Filho de migrantes nordestinos, FAUSTINI nasceu e passou a infância na Baixada Fluminense, mudando-se, depois, para o distante bairro de Santa Cruz, onde viveu na Comunidade do Cesarão. Na peça, há relatos, também, de fatos passados em outros bairros periféricos, lugares como Madureira, Engenho de Dentro, Paquetá, Favela da Maré e Jacarezinho, além, é claro, do Centro, de Laranjeiras, do Flamengo e da cobiçada e misteriosa Ipanema.

 




 

 


Por vários motivos, o espetáculo me emocionou muito, arrancando-me risos e lágrimas, porquanto me identifiquei com ele, da primeira à última fala, do acender do primeiro “spotlight” ao “black-out” final, já que também fui nascido e criado no subúrbio, não tão distante do Centro, e conheci bem o dia a dia da periferia, ainda muito jovem, trabalhando, como professor, em escolas de Campo Grande, Bangu, Senador Camará, São Gonçalo...


Também, como aluno do antigo Conservatório Nacional de Teatro (atual UNI-RIO), que funcionava no prédio onde funcionara a UNE, na Praia do Flamengo, ao ver a peça, vesti o figurino do personagem, quando ele falava da aventura de sair, tarde da noite, da Escola de Teatro Martins Pena, para chegar, só na madrugada do outro dia, a casa, como acontecia comigo, caminhando, sozinho e solitário, do Flamengo até o Passeio Público, desviando-me de prostitutas e travestis, sempre a oferecer seus "préstimos", lutando contra o sono e o cansaço; ele, no trem; eu, no ônibus.





Caos.

 

Só não passei, como foi o caso dele, pelas experiências de “empregos” como o de Papai Noel, no Carrefour de São Gonçalo, e atendente, em lanchonete de cemitério, até chegar a entregador de lentes de contato da Bausch-Lomb, culminando com o “nirvana” de “office boy” do Banco do Brasil, motivo de grande orgulho para a família, que desejava, para ele, apenas “o bem”, “um bom emprego”, não “esse negócio de teatro, que não dá camisa a ninguém”.


O texto é escrito com tal naturalismo, com tanta verdade, apoiando-se em detalhes inimagináveis, e interpretado, de forma magistral, por JOÃO PEDRO ZAPPA, que embarcamos na história, como se tudo aquilo ali fosse a própria realidade do ator, como se o personagem e o JOÃO fossem uma entidade. Ele usa a periferia como um forte referencial, o maior de todos, para um autodescobrimento, um crescer como homem. As referências periféricas e as centrais se somam, para forjar um cidadão.


Algumas poucas lembranças, presentes no texto, fizeram parte, também, do meu passado, da minha história, e, certamente, de muitos que assistiram ao espetáculo, como o sacolé de Nescau; o guaraná Convenção, muito mais barato (e, por isso mesmo, de péssima qualidade) que as marcas famosas, e o cachorro-quente, que também atende pela “alcunha” de “podrão”, estes dois últimos, encontrados na Praça do Curral Falso, em Santa Cruz); o picolé Dragão Chinês; o Gamadinho; o amendoim Nakaiama, que, tantas vezes, distraiu o meu estômago; a carne de sol frita da Galega, na Maré; o conhaque barato, nos botecos da Cruz Vermelha; o Angu do Gomes (comi muito), na madrugada da Praça XV; e passeios pela Rua do Lavradio, sua preferida. A minha era a Rua do Ouvidor; hoje, a minha preferência coincide com a dele.


Não conhecendo, ainda, o livro – espero fazê-lo muito em breve – confesso que, mesmo tendo lido um breve comentário sobre a peça, antes de ter assistido a ela, não sabia bem o que me esperava. Pelo título, interessantíssimo e muito próprio, diga-se de passagem, pensei que o texto se propusesse a mostrar um guia (não para orientar turistas) de locais que tivessem importância pessoal para alguém, a partir do adjetivo “afetivo”, que lhe é agregado. Sim, é quase isso, mas não é bem isso. O vocábulo “guia” está bem empregado, mas o adjetivo “afetivo” está mais ainda, uma vez que o que conta, na verdade, é a relação afetiva do personagem com determinados locais, nem sempre, pontos turísticos ou pitorescos da Cidade (ex)Maravilhosa, a partir das lembranças de bons ou maus momentos, vividos em cada um dos pontos citados.

 



Como um animal enjaulado.


 

 

 
“(...) Assim, passei a mapear o centro do Rio de Janeiro, de acordo com as minhas possibilidades de sobrevivência. Invariavelmente, comia em pé, numa padaria da Rua da Carioca, que oferecia um prato feito, num prato de sobremesa. Era a ‘minirrapidinha’. Você podia colocar tudo o que coubesse naquele prato.(...)”.
 





 



Dois olhares para uma mesma (grande) cena.





O texto é ágil, muito bem escrito, em linguagem simples e próxima à realidade da maioria dos falantes da nossa língua, e não segue nenhuma cronologia temporal. O personagem ganha o direito de se expressar de forma livre, espontânea, à medida que as cenas vêm à sua memória, uma puxando a outra, envolvendo questões ligadas à política, à educação, à religião (da sua família), falando da paixão, da experiência do primeiro beijo...


Para escrever seu livro/peça, FAUSTINI, além de ter utilizado sua memória afetiva, apelou para anotações antigas, fotos, objetos pessoais, ainda guardados, pequenos textos, escritos em cadernos amarelados pelo tempo, gravações e outros recursos de arquivo físico.


Quando falou de sua primeira incursão ao Centro, descortinou-se, claramente, na minha mente, a minha primeira experiência de deslocamento, sozinho, aos 12 anos de idade, no velho 340 (Castelo-Vila da Penha), do subúrbio à Rua Sete de Setembro, para resolver um problema para o meu pai, já que não havia ninguém que pudesse fazê-lo. Como me senti importante naquele dia! E que medo de fracassar!
 

Atualmente, FAUSTINI é colunista do jornal “O Globo”, mas também é formado em direção de teatro pela Escola Martins Pena. Durante os anos 90, dirigiu peças elogiadas, como “Capitu” e “A Hora da Estrela”, quando, também, ministrou oficinas de teatro no Cesarão. No início da primeira década do atual século, seu enorme interesse pela cultura popular, da periferia, fê-lo enveredar pelo cinema, assinando excelentes documentários, como “Chão de estrelas” (2002) e “Carnaval, Bexiga, Funk e Sombrinha” (2006). Fundou, ainda, a Escola Livre de Teatro, em Santa Cruz, inaugurou a Escola Livre de Cinema, em Nova Iguaçu, e, em 2011, a Escola Livre da Palavra, na Lapa. As experiências de FAUSTINI com a cultura da periferia e as discussões levantadas a partir dela estão presentes na peça “GUIA AFETIVO DA PERIFERIA”.


Que brasileiro digno do nosso respeito e orgulho é MARCUS FAUSTINI!



 


 Eu só preciso de um palco.



Terminada a peça, não me restou outra impressão, senão a de que não poderia ter sido outro ator, que não JOÃO PEDRO ZAPPA, a encarnar o jovem personagem. JOÃO é um dos melhores atores de sua geração, já tendo provado isso em tantos outros espetáculos, apesar de jovem e de uma carreira, relativamente, curta. Sua atuação em “A Importância de Ser Perfeito”, dirigida, genialmente, por Daniel Herz, dividindo o palco com nomes consagrados do Teatro Brasileiro, já deixava bem clara sua vocação para o estrelato, no melhor sentido da palavra.
 

No preparo para a peça, o chamado "laboratório", JOÃO percorreu alguns locais, durante o processo criativo, e, assim como o personagem, descobriu pontos da cidade que não conhecia, fazendo o trajeto contrário, partindo da Zona Sul para a Zona Norte, deparando-se com espaços estranhos à sua realidade, como praças, barcas, ônibus, camelôs e estação de trem, percebendo as peculiaridades, semelhanças e diferenças com os locais que costuma frequentar.


            Sua atuação é brilhante, comovente, convincente. Desperta um afeto no espectador, cria uma total empatia com o público, que, longe de despertar piedade, o que sentimos é uma grande vontade de abraçá-lo e dar-lhe um afetuoso beijo; de avô, de pai, de irmão, de amigo...


A direção do espetáculo, também da responsabilidade de MARCUS FAUSTINI, é ótima. Fazendo uso de sua experiência no cinema, acertou em cheio, quando entremeia as ações ao vivo com trechos de filmes, inclusive algumas cenas do seu, já citado, “Carnaval, Bexiga, Funk e Sombrinha”, revelando partes das memórias e afetos de diversos pontos da cidade. Essas projeções, além de interessantes e de excelente qualidade artística, ajudam o ator a recuperar um pouco de fôlego, já que é muito exigido, fisicamente, em cena. Louvo sua coragem de fazer o espetáculo, no dia em que assisti a ele, com um deslocamento, se não estou enganado, de uma das clavículas, dando conta do recado, sem demonstrar nem esboçar dor ou maior sacrifício ou desconforto físico.
 

Para o autor e diretor do espetáculo, é fundamental mostrar e aproximar as relações existentes no território carioca na cena do teatro da cidade. “A peça é o meu afeto pelo Rio, sou fruto dele da mesma forma que o personagem”, afirma FAUSTINI.


A ideia de fazer a peça para um reduzido público, que se acomoda no palco do teatro, a uma pequena distância do ator, é fantástica. Cria uma intimidade e cumplicidade com o personagem, o qual parece conversar com cada um dos espectadores, expondo, sem nenhum pudor, as suas intimidades.
 

Considero um dos pontos mais altos desta encenação, o magnífico cenário, criado por FERNANDO MELO DA COSTA, em forma de um genial “caos”, como o universo do personagem, reunindo, no palco, muitos arquivos de aço, de vários tamanhos, de onde o personagem vai retirando suas memórias, em forma de objetos, além de muitas caixas de som e aparelhos velhos e obsoletos, como um ventilador e uma máquina de escrever, ambos azuis. Na parede do fundo, uma tela de cinema, na qual trechos da lembranças  do personagem são projetadas. “Todas essas quinquilharias ocupam seu quarto e são organizadas, na sua cabeça, como uma espécie de filme futurista e precário”, como está escrito no “release” da peça, enviado por DIANA CAVALCANTI, da RPM COMUNICAÇÃO.

 




 



Outro elemento que contribui, sobremaneira, para a bela montagem é a luz, como sempre, impecável, do mestre AURÉLIO DE SIMONI.


O figurino inicial, um macacão azul, uniforme do “office boy” do Banco do Brasil, com direito a chachá e carteira profissional, assinada, no bolso, assinado por MARCUS FAUSTINI, vai dando lugar a outras roupas, ao longo do espetáculo, mais simples e confortáveis. Todas as variações são muito interessantes.

 

Saí do Teatro Serrador, naquela noite de 6ª feira, depois de me deliciar com um rápido papo com o queridíssimo JOÃO, na porta do teatro, enquanto ele aguardava a chegada do transporte que o levaria para um merecido descanso, em sua casa, e fui caminhando até a estação do metrô (Cinelândia), não muito distante do teatro, pensando na letra de uma canção, de Vinícius de Moraes, que ganhou melodia de Chico Buarque: “Gente Humilde”:

 

 

 

GENTE HUMILDE
 
(Vinícius de Moraes e Chico Buarque)
 
 
Tem certos dias
Em que eu penso em minha gente
E sinto assim
Todo o meu peito se apertar
Porque parece
Que acontece de repente
Feito um desejo de eu viver
Sem me notar
Igual a como
Quando eu passo no subúrbio
Eu muito bem
Vindo de trem de algum lugar
E aí me dá
Como uma inveja dessa gente
Que vai em frente
Sem nem ter com quem contar


São casas simples
Com cadeiras na calçada
E na fachada
Escrito em cima que é um “lar”
Pela varanda
Flores tristes e baldias
Como a alegria
Que não tem onde encostar
E aí me dá uma tristeza
No meu peito
Feito um despeito
De eu não ter como lutar
E eu que não creio
Peço a Deus por minha gente
É gente humilde
Que vontade de chorar



 

 

 

E não fiquei só na vontade. Chorei mesmo, por dentro, com vergonha de ser notado, sem saber o porquê. Mas, de tristeza, tenho a certeza de que não era.

 




 

 

 

OBRIGADO, MARCUS FAUSTINI!

 

OBRIGADO, JOÃO PEDRO!

 

OBRIGADO!

 

MUITO, MUITO OBRIGADO!

 

 


 

 
FICHA TÉCNICA:
Textos (Adaptação) - do livro “Guia Afetivo da Periferia”, de Marcus Faustini: Marcus Faustini
Direção: Marcus Faustini
 
Atuação: João Pedro Zappa
 
Cenografia: Fernando Mello da Costa
Iluminação: Aurélio de Simoni
Figurinos: Marcus Faustini
Assistentes de Direção: Douglas Resende e Veruska Delfino
Estágio de Direção e Contrarregra: Diego Migliorin
Direção dos Vídeos: Marcus Faustini
Edição dos Vídeos: Gregório Mariz
Trilha dos Vídeos: Eduardo Guedes e Gregório Mariz
Assessoria de Imprensa: RPM Comunicação
 

 




 

 



 


Com o querido João Pedro Zappa.

 

 

 

 

 



(FOTOS: LEO AVERSA.)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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