ÁLBUM DE FAMÍLIA

 

 

(QUANDO O TEXTO É COADJUVNTE.)

 

 

 

 

            Nunca me imaginei, dedicando parte do meu tempo para escrever sobre esta peça, de NELSON RODRIGUES, o qual, sabidamente, não faz parte dos meus dramaturgos preferidos. Muito ao contrário. Das suas 17 peças escritas, interesso-me por uma meia dúzia, sendo que, numa ordem classificatória, “ÁLBUM DE FAMÍLIA” ocuparia, talvez, a última colocação na minha lista. Para mim, em se tratando do repertório de NELSON, o difícil não é escolher a melhor, e sim a pior.

 

            Meus primeiros contatos com a obra do dramaturgo se deram bem no início dos anos 70, na Faculdade de Letras, da UFRJ, quando fiz dois cursos de Literatura Brasileira, voltados para a análise do universo rodriguiano. Em dois semestres, fui obrigado a ler todas as suas peças e a fazer trabalhos e seminários sobre algumas delas. Detestei NELSON, logo nas primeiras leituras. Foi ódio à primeira vista.

 

            Tentando me persuadir de que se tratava do “maior dramaturgo brasileiro”, um amigo de turma me deu de presente as Obras Completas de NELSON RODRIGUES, em três volumes, dizendo-me que, um dia, eu me tornaria um grande ator (Eu já começava a fazer TEATRO, naquela época.) e que montaria várias de suas obras. Tornei-me ator, não sei se grande, mas nunca representei um de seus personagens. Assisti, porém, à montagem de quase todas as peças de NELSON, algumas até mais de uma vez, por companhias diferentes, porém a única que nunca vira no palco, embora já a tivesse lido umas três vezes, na esperança de mudar minha opinião sobre ela, era “ÁLBUM DE FAMÍLIA”. A cada leitura, mais me causava repulsa o texto.

 

 

Amor de filho por mãe.

 

 

Amor de cunhada por cunhado.

 

 

Amor de irmão por irmã.

 

 

Amor de pai por filha (e vice-versa).

 

 

            Assim foi, até que, há duas semanas, resolvi tomar coragem e ir ao Teatro Poeira, com o objetivo de me certificar de que se tratava da pior das obras de NELSON RODRIGUES. Fui, com bastante curiosidade, mas certo de que só iria ratificar o meu pensamento. Ratifiquei.

 

            Poderão, então, os que conhecem o meu trabalho de crítico, estar pensando que eu, que não costumo escrever sobre os espetáculos que não me agradam, vou contrariar a minha prática e criticar, negativamente, a montagem de “ÁLBUM DE FAMÍLIA”, que esteve em cartaz, no já citado Teatro Poeira, até o dia em que vi o espetáculo, 23 de março, fim da temporada.

 

            Explico: não vou falar mal do espetáculo, não mudei de pensamento (Continuo ignorando as peças de que não gosto, porque não tenho interesse em prejudicar ninguém, sabendo da dificuldade que existe para se erguer uma montagem teatral.). Não sei se repararam, neste e no parágrafo anterior, que fiz uso, repetidamente, e com grifo, do vocábulo “espetáculo”, em vez de “peça”.

 

 

Bebendo para...

 

 

            Contrariando um pensamento meu, de que “todo bom espetáculo tem origem num bom texto”, o que vi foi, pela primeira vez, um bom espetáculo – e é sobre ele, a montagem, que falarei – ainda que apoiado num texto que me desagrada.

 

            O “release” da peça fala de um “ÁLBUM DE FAMÍLIA” “com uma nova roupagem”. A minha análise não será comparativa, uma vez que nunca assisti à peça em outros “trajes”, mas posso garantir que o “estilista caprichou na nova coleção”.

 

Segundo o referido “release”, “Com a obra, o dramaturgo ingressou ao território familiar, social e mítico, sondando o inconsciente primitivo do indivíduo. NELSON escolheu mostrar o cotidiano de uma família aparentemente comum, formada pelo casal, os quatro filhos e a tia solteirona”.

 

Com esta peça, escrita em 1946, NELSON iniciou um ciclo de quatro textos, que ele mesmo chamou de “teatro desagrádavel”, os quais o grande crítico, e teórico do TEATRO, Sábato Magaldi considera suas “peças míticas”. Sucederam-se, pela ordem cronológica, “Anjo Negro” (1947), “Senhoras dos Afogados (também em 1947) e “Dorotéia” (1949).

 

 

A sinopse, segundo a produção do espetáculo:

 

 

 

SINOPSE 1:

JONAS (MAURO DE OLIVEIRA) e SENHORINHA (GIOVANNA VELASCO) são primos, casados e com seus quatro filhos: três garotos, EDMUNDO (GLAIDSON RANGEL), GUILHERME (LUIZ GUSTAVO PADRÃO) e NONÔ (LUCAS MONTANDON); e GLORINHA (ELISA OTTONI), sua linda menina de quinze anos.

 

Uma família em que o amor e seus excessos exalam uma atmosfera rodriguiana, confrontando a hipocrisia presente nos valores da sociedade brasileira.

 

“ÁLBUM DE FAMÍLIA” coloca em xeque o jogo de aparências e os padrões éticos do nosso país.

 

 

 

 

Ódio de filho por pai.

 

 

Sinceramente, considero essa sinopse bastante distante do que NELSON escreveu e, se o conteúdo de seu último parágrafo tivesse sido mesmo a sua real intenção, creio que poderia tê-lo feito melhor, explorando outros tipos de conflitos e embates familiares, e não os absurdos, na minha visão, que criou. Não pode ser crível a reunião de tantos personagens tortos, normalmente, numa única “família”. Mas quem sou eu para interferir na obra de alguém?

 

 

Para comparação e melhor compreensão da peça, uma sinopse mais detalhada e próxima do conteúdo do texto, extraída da Wikipédia, com adaptações:

 

 

 

 

SINOPSE 2:

 

A peça retrata uma família que, sob a ótica do locutor, que espelha a da opinião pública, é perfeitamente normal e feliz, mas cuja intimidade, no lar, é caracterizada por uma rede de paixões incestuosas e perversões diversas.

 

JONAS, o patriarca, tem o hábito de trazer garotas, de 12 a 16 anos, para casa, para desvirginá-las e, com isso, extravasar o desejo sexual que sente pela filha caçula, GLÓRIA. Conta, para isso, com a ajuda da cunhada, RUTHE, que, apaixonada pelo cunhado, faz qualquer coisa por ele, arregimentando as doces virgens.

 

GLÓRIA, por outro lado, tem uma adoração pelo pai, que, aparentemente, também está além de ser meramente filial. Foi “convidada a se retirar” do colégio religioso, em que era interna, depois de ter seu romance, como uma colega de quarto, descoberto e revelado.

O primogênito, GUILHERME, também se sente atraído pela irmã GLÓRIA, tendo chegado ao ponto de se castrar, para evitar consumar seu desejo.

Já o segundo filho, EDMUNDO, é perdidamente apaixonado pela mãe, DONA SENHORINHA, paixão esta que impede que ele consiga consumar seu casamento com HELOÍSA.

DONA SENHORINHA, por sua vez, nutre um amor proibido pelo terceiro filho, NONÔ, que, tendo enlouquecido, subitamente, há alguns anos, devido a um contato incestuoso com sua mãe, passou a correr, nu, pelos campos da fazenda onde se passa a história, urrando e gritando constantemente.

A história principal é interrompida, regularmente, para que sejam mostradas ocasiões, em diferentes épocas, nas quais membros da família são fotografados para um álbum. Tais cenas são acompanhadas pela voz do locutor, que sempre descreve a virtude e a felicidade daquelas pessoas, contradizendo o que é mostrado ao público ao longo de toda a peça.

 

 

 

 

Glorinha, toda “pura”.

 

 

E haja “pureza”!

 

 

Glorinha, morta.

 

 

E pensar que tudo isso saiu de uma só mente!!!

 

 

Ainda apoiado no “release”, “Com olhar contemporâneo, a direção pretende utilizar uma encenação realista e atemporal. Os personagens não refletem sobre a realidade; eles refletem a realidade, excessivamente dominados pela angústia das escolhas sociais. Revelam, sobretudo, a hipocrisia dessa sociedade, que vive num jogo de aparência”.

 

O espetáculo é encenado pelo GRUPO TRASANTEONTEM, formado por cerca de dez integrantes, entre atores, diretor e produtor. A encenação leva a assinatura de MARCELO CALDAS e a produção geral é de MARCOS NAHMIAS.

 

 

 

Desprezo pela cunhada.

 

 

Desprezo pela esposa.

 

 

 

 

FICHA TÉCNICA:

 

Texto: Nelson Rodrigues

 

Elenco: Giovanna Velasco (Senhorinha), Mauro de Oliveira (Jonas), Thamiris Prado (Grávida), Glaidson Rangel (Edmundo), Malu Ramos (Tia Ruthe), Luiz Gustavo Padrão (Guilherme), Elisa Ottoni (Glorinha), Mariana Cortines (Tereza e Mulher do Edmundo) e Lucas Montandon (Avô e Nonô)

 

Direção: Marcelo Caldas

Preparação de Elenco: Gustavo Cavaliere

Preparação Vocal: Roberta Bahia

Caracterização e Figurino: Sônia Penna

Cenografia: Tiago Ribeiro

Iluminação: Luca Pergon

Trilha Sonora Original: Célio Monteiro, Lucas Bazzano e Pablo Carioca

Operador de Luz: Walace Furtado

Operador de Som: Alex Fusco

Cenotécnico: João Batista da Silva

Fotos: Neco Bonventura

Edição de Imagens: Rafa Oliveira

Camareira: Maria Helena

Contrarregra: Raphael Lima

Crianças: Heitor de Camargo, Pietra de Camargo e Theo Velasco

 

PRODUÇÃO GERAL: MARCOS NAHMIAS

 

 

 

 

Uma adolescente, engravidada por Jonas, à hora do parto.

 

 

            Os aspectos que mais me agradaram nesta montagem foram a direção, a cenografia e a atuação do elenco, com altos e baixos.

 

            O mérito maior concentra-se na direção, que procurou, e encontrou, soluções simples e práticas, para fazer o jogo cênico acontecer, estabelecendo, corretamente, as noções de espaço para as ações. A maior parte das cenas se concentra na casa da “família”, entretanto há algumas passadas em outros espaços, sugeridos pelo diretor, sem maiores dificuldades para a compreensão do espectador.

 

Também acertou MARCELO na mão, com relação à intensidade dramática como deve se comportar cada ator em seu personagem, por meio de entonações e jogos faciais e corporais convincentes. A única coisa que me incomodou – e bastante – foi a caracterização do ator LUCAS MONTANDON, como avô. Ficou uma coisa muito bizarra, falsa, uma vez que LUCAS se enquadra, perfeitamente, nas características de um, talvez, septuagenário, na postura e na voz (uma boa interpretação), porém, demasiadamente jovem, para o papel, precisaria de um trabalho de visagismo que convencesse a plateia de que estava diante do “avô” de uma futura “presa” do “predador” JONAS.

 

 

Enquadramento.

 

 

            Poucas vezes, vi um cenário tão simples, pobre, em função do baixo custo da produção, funcionar tão bem. De bom gosto e funcional. As molduras penduradas, nas quais a direção enquadra alguns personagens é uma ideia muito boa. Completam os elementos cenográficos uma mesa redonda, uma mesinha (espécie de carrinho de bebidas), um cabideiro, um lustre e um tapete, caracterizando uma residência, sem luxo, de uma fazenda.

 

 

 

Excelente visão do espaço cênico.

 

 

            O elenco, totalmente desconhecido, para mim, em princípio, pareceu-me que não daria conta do recado. Talvez por uma dose de “pré-conceito”, achei, de início, que me decepcionaria. Deu-se o oposto. Gostei do trabalho de todos, com alguns altos e baixos, durante toda a ação, com destaques positivos para GIOVANNA VELASCO e MALU RAMOS. Que duas ótimas atrizes! GIOVANNA, principalmente, pelo fato de contracenar com quase todos os outros atores, ajustando-se a cada cena.

 

 

 

Giovanna Velasco.

 

 

Malu e Giovanna.

 

 

Malu Ramos.

 

 

Ruthe e Dona Senhorinha.

 

 

            Dúvida cruel: desnecessária ou não a entrada de NONÔ, nu, em cena? O personagem, durante toda a trama, perambula pelo quintal, sem se deixar ver, ao púbico. Seus gritos (de dor, lamento, arrependimento, ódio...) impressionam a plateia.

 

Em princípio, confesso, sem constrangimento algum, achei que pudesse ser uma “apelação” do diretor, algo desnecessário à encenação, opinião que, em pouco tempo retifiquei. É oportuna, sim, aquela aparição e confere à cena, uma carga emotiva forte, não pelo nu, em si, mas pela postura do ator, no personagem, pelo que demonstra, apenas com o visual, sem palavras, de relação afetiva com aquele ambiente.

 

            Gosto, também, da utilização de um elemento que, a cada dia, vei se fazendo mais presente nas montagens teatrais: a utilização de projeções de imagens, de todos os tipos. Via de regra, funcionam bem, nos espetáculos, e, aqui, não é diferente.

 

            O texto é tão patético, que chegamos a rir daquilo que não tem a menor graça. Rir de nervosismo, acho. Do bizarro. Do inverossímil. Pelo menos, no meu caso.

 

            A despeito da boa qualidade do espetáculo, principalmente se considerarmos os parcos recursos com os quais foi, bravamente, montado, atrevo-me a dizer que o texto  é o coadjuvante de menor importância no espetáculo e mostra um festival de loucos, num hospício.

 

            Considerando apenas o texto, insisto, e não a montagem, se fosse colocado uma cerca eletrificada, no perímetro do espaço cênico, teríamos um hospício. Cobrindo-o com um toldo, viraria um circo (dos horrores).

 

            Apesar de a temporada ter sido encerrada, no Rio de Janeiro, faço votos de que o espetáculo viaje bastante, pelo Brasil, e que possa fazer uma reestreia em terra carioca.

 

Eu veria pela segunda vez.

 

 

 

“Álbum de (uma certa) Família”.

 

 

 

 

 

 

(FOTOS: NECO BONVENTURA.)