sexta-feira, 1 de abril de 2016


DOROTÉIA




(UMA “FARSA IRRESPONSÁVEL”.

ou

A AVERSÃO AO “GOZO”

E A NEGAÇÃO DA “BELEZA”.)





Para quem não idolatra NELSON RODRIGUES, como eu, poderia ser difícil escrever sobre uma montagem do consagrado dramaturgo brasileiro. Os que me leem ou, simplesmente, me conhecem sabem que não sou dos que engrossam as fileiras dos fãs ardorosos do “Anjo Pornográfico” (“Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou - e sempre fui - um anjo pornográfico, desde menino”. – Nelson Rodrigues.), entretanto, de suas 17 peças escritas, apesar de não gostar da grande maioria, há algumas, meia dúzia, no máximo, que me agradam, um pouco mais ou menos, e, dependendo de como são encenadas, o meu entusiasmo pode se manifestar, a ponto de eu estar escrevendo estas linhas com tanta alegria e prazer.


            É o caso de “DOROTÉIA”, em cartaz no Teatro do Espaço Tom Jobim, dentro do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (VER SERVIÇO), numa concepção arrojada de um grande encenador, JORGE FARJALLA, um diretor já considerado especialista em textos rodriguianos. Esta é a nona vez que FARJALLA monta um texto de NELSON.



Dorotéia chega à casa das primas.



            Se uma farsa, no âmbito do TEATRO, representa “um gênero dramático predominantemente baixo cômico, de ação trivial, com tendência para o burlesco (cômico, ridículo) e se inspira no cotidiano e no cenário familiar, sendo o mais ‘irresponsável’ de todos os tipos de drama”, por que o próprio NELSON teria rotulado seu texto de “uma farsa irresponsável”? Como assim? Depende de cada leitura, de cada ponto de vista? Será que é porque ela exala aromas à Gabriel Garcia Marques, explodindo em simbolismo intenso e surrealismo? Por isso, “farsa”? Ou o substantivo assumiria o significado de mentira, ação ou comportamento ardiloso, que induz ao engano; embuste, ação que busca iludir, em que há fingimento”“Irresponsável”, por não ter compromisso com a realidade e ser livremente anarquista, fugindo aos padrões do socialmente aceitável?


            Toda a trama existe em função de um caos moral ou “falsamente moral”, em torno do qual orbitam todas as cenas da peça, nas quais se podem notar algumas incoerências, como o fato de toda a ação se passar num único espaço, uma velha e sombria casa, apenas com salas, sem quartos, uma vez que, na ótica de DONA FLÁVIA (ROSAMARIA MURTINHO), a mais velha de três primas, nelas, nas salas, habitam a mulher e a ausência do pecado.





A bela e a fera.



"É NO QUARTO QUE A ALMA E A CARNE SE PERDEM". (DONA FLÁVIA)



Elas dormem no chão, das salas, no piso frio e duro, como uma espécie de autopunição, para expiar por algo que não merecia tal sacrifício. A ausência de elementos cênicos que caracterizam um quarto, como uma cama, por exemplo, atestam que aquele cômodo não é visto como um espaço para o descanso, do corpo e da mente, mas sim, unicamente, como símbolo de um ambiente que convida ao pecado, aos prazeres da carne, à concupiscência. Daí, uma casa sem quartos.


Não se trata de um texto de fácil decodificação, para um público mais leigo, em termos de TEATRO, e menos atento à cena, a começar pela citação da existência de duas personagens com o mesmo nome: DOROTÉIA: uma corporificada pela atriz LETÍCIA SPILLER e outra, apenas mencionada, que teria se afogado, ao que tudo indica, intencionalmente (suicídio), no momento em que se conscientizou de um fato:



"POR DENTRO DE SEU VESTIDO ESTAVA UM CORPO NU". (DONA FLÁVIA / DOROTÉIA)





Química perfeita entre duas grandes atrizes de gerações distantes.



Como entender e, menos ainda, aceitar, uma personagem que “já nasceu morta”, perambulando por aquela espécie de umbral? Pior, ainda, como admitir que uma “natimorta” esteja à espera de um marido, que é trazido pela futura sogra, dentro de uma enorme caixa de presentes, representado por um par de botas “desabotoadas”? É forte demais, para quem não consegue expandir a mente e mergulhar num universo teatral, simbólico, permissível a qualquer liberdade criativa do dramaturgo.


E o que dizer do fato de as três primas resistirem ao sono, ou não senti-lo, uma vez que, para elas, o não dormir significava a certeza de não sonhar, já que, nos sonhos, incontroláveis, conscientemente, poderiam estar contidos sentimentos de desejo carnal, pensamentos "torpes"?





Dona Flávia e Dorotéia.



Na peça, desfila uma sequência de situações, reais ou imaginárias, que podem confundir algumas pessoas, o que, de forma alguma, significa um prejuízo, para quem se dispõe a sair de suas casas, enfrentar toda sorte de obstáculos e chegar ao teatro, uma vez que todo o conjunto da obra vale qualquer “sacrifício”.


 Há quem não entenda, por exemplo, a questão da “maldição da náusea”, pura simbologia, instaurada naquela família, em que só há “mulheres” (?), desde a noite de núpcias da bisavó das personagens em cena. A “náusea” seria a aversão ao gozo, a renúncia aos prazeres da carne, a não aceitação da condição de fêmea, transmitida às gerações seguintes.


Por mais avesso que eu seja, de certa forma, aos estudos da psicanálise (Seria um mecanismo de defesa?), este é um dos poucos textos de NELSON que me causam interesse, por avançar por esse campo e pelo turbilhão de ideias e reflexões que provoca, e pela excelente carpintaria textual. Um prato cheiíssimo, quase a transbordar, para os psicanalistas. Nele, há falas que são um convite ao pensar profundo.








           
“AS MULHERES DE NOSSA FAMÍLIA TÊM UM DEFEITO VISUAL, QUE AS IMPEDE DE VER HOMEM, E AQUELA QUE NÃO TIVER ESSE DEFEITO SERÁ, PARA SEMPRE, MALDITA. NÓS NOS CASAMOS COM UM MARIDO INVISÍVEL”. (DONA FLÁVIA)



DOROTÉIA é a única da família que, acima de tudo, com muita coragem, é capaz de assumir não conhecer a “náusea familiar” nem ter a “visão limitada”, o que significa “subverter” um “status quo”, tão crível e “aceitável” quanto o mais bizarro dos absurdos.




SINOPSE:
DOROTÉIA, ex-prostituta, largou a profissão, depois da morte do filho, e vai morar na casa de suas primas, três viúvas puritanas e feias, que não dormem, para não sonhar e, portanto, condenadas à desumanização e à negação do corpo, dos sentimentos e da sexualidade.
DOROTÉIA, linda e amorosa, nega o destino e entrega-se aos prazeres sexuais. Esse é seu crime e, por ele, pagará, com a vida do filho, buscando a sua remissão.

            Na história desta família de mulheres, o drama se inicia com o pecado da bisavó, que amou um homem e casou-se com outro. É nesse momento que recai, sobre todas as gerações de mulheres da família, a “maldição do amor”.
Elas estão  condenadas a ter um “defeito de visão”, que as impede de ver qualquer homem, casam-se com um marido invisível e sofrem da “náusea nupcial” – único sinal de contato que teriam, em toda vida, com o sexo masculino.
DOROTÉIA, em troca de abrigo, aceita se tornar tão feia e puritana como as primas.






Dorotéia e os prazeres da carne, o sabor do gozo.



            Eu e “DOROTÉIA” temos a mesma idade, fomos concebidos e nascemos em 1949.



            De acordo com o “release”, enviado por DEBS COMUNICAÇÃO (MARY DEBS), com adaptações e acréscimos, o texto de “DOROTÉIA” fechou o ciclo das obras do “teatro desagradável” de NELSON RODRIGUES, como ele mesmo classificava as quatro peças de tal ciclo. As anteriores foram “Álbum de Família” (1946), “Anjo Negro” (1947), e “Senhora dos Afogados” (1947), obras classificadas, pelo grande crítico Sábato Magaldi, como “peças míticas”.

As quatro não são nada populares, por tratarem de temas de difícil compreensão e aceitação social, que chegam a chocar o público, tendo sido severamente repudiadas pela censura da época e pela plateia. Fracasso de público e de crítica. E nem poderia ser de outra forma, encenadas para uma plateia conservadora, intolerante, moldada nos padrões da mais profunda moral cristã. Quando NELSON aciona sua metralhadora giratória (A atual montagem é praticada em arena.), é quase impossível alguém da assistência, da burguesia ou não, sair ileso, sem se sentir atingido por, pelo menos, uma de suas balas mortíferas. É um espetáculo para abalar as estruturas.


No universo rodriguiano, a existência é tratada como dor universal, não raro a morte punindo o sexo e este punindo a morte, como ocorre em “DOROTÉIA”, cuja primeira montagem, em 1950, no antigo Teatro Phoenix, esteve sob a direção de Zbigniew Marian Ziembinski, ou, simplesmente Ziembinski ou Zimba (meu primeiro professor de TEATRO), um encenador polonês, chegado ao Brasil, em 1941, fugindo da 2ª Grande Guerra Mundial (1939 / 1945), e que já revolucionara o modelo de encenação teatral, no Brasil, com “Vestido de Noiva”, outro bom texto de NELSON RODRIGUES, seu “carro-chefe”, em pleno Teatro Municipal do Rio de Janeiro, um “escândalo, à época, dividindo o público em dois grupos: os que amaram e os que odiaram a peça.


Ainda que não encontre prazer e, às vezes, nem sentido, nas obras de NELSON, não deixo de assistir às montagens de seus textos, alguns até por mais de uma companhia. Só me lembro de ter visto “DOROTÉIA” (A peça foi pouco encenada.) apenas uma vez, faz bastante tempo e, como na maioria das vezes, saí do teatro com a firme certeza de que perdera meu tempo. Quando, entretanto, se trata de uma leitura da obra rodriguiana feita por JORGE FARJALLA, a minha expectativa é sempre de encontrar, no palco, algo, no mínimo curioso e instigante, graças aos mergulhos profundos e criativos que o diretor reserva a essas peças.


Não foi diferente desta vez. Cheguei, até, a ser convidado para assistir a um dos ensaios finais do espetáculo, o que fiz, com muito prazer e honra, e saí do Teatro Tom Jobim, torcendo para que a estreia fosse logo no dia seguinte. E por que não naquela mesma noite?





Da esquerda para a direita, Alexia Deschamps, Rosamaria Murtinho, Jaqueline Farias e Letícia Spiller.



A montagem em tela, de “DOROTÉIA”, faz uma releitura desse clássico e traz à cena uma visão particular da única farsa escrita por NELSON RODRIGUES, mantendo e ampliando o diálogo com questões contemporâneas, através do olhar de FARJALLA e do trabalho de um elenco escalado a dedo, com ROSAMARIA MURTINHO, comemorando 60 anos de dedicação ao TEATRO (DONA FLÁVIA),  LETÍCIA SPILLER (DOROTÉIA), ALEXIA DESCHAMPS (MAURA), DIDA CAMERO (DONA ASSUNTA DA ABADIA), ANNA MACHADO (MARIA DAS DORES) e JAQUELINE FARIAS (CARMELITA).



“SOU TÃO LINDA, QUE, SOZINHA, NUM QUARTO, SERIA AMANTE DE MIM MESMA”. (DOROTÉIA)





No teatro de Jorge Farjalla, toda nudez NÃO será castigada.



Para não me estender mais ainda, passo a analisar os elementos da peça, a começar pelo texto, que é uma ode, às avessas, à beleza feminina, em que a personagem que dá título ao texto, segue, em busca da destruição de sua própria beleza, para se igualar à feiura de suas primas, como o único caminho que a faria pagar por uma vida “mundana” anterior. 


O enredo não é “aparentemente absurdo”, como muitos se referem a ele; é TOTALMENTE, ao mesmo tempo que é um excelente exercício à expansão da mente e à liberdade para leituras diversas de uma mesma proposta. É extremamente curioso, interessante, o paradoxo criado por NELSON, que diz respeito ao fato de, numa tentativa, que passa ao largo de qualquer noção de “normalidade”, no que se refere a uma pretensa “proteção dos valores familiares”, poder ser constatado que a tradicional e bem estabelecida noção de família esvai-se pelo ralo, é destruída, aos olhos do espectador.


A direção, de JORGE FARJALLA, é esplêndida, não fosse ele um especialista em NELSON RODRIGUES e dono de muita coragem, para desafiar, atores, técnicos, público e, principalmente, críticos, apresentando montagens arrojadas, muitas à frente de sua CIA. GUERREIRO, como, por exemplo, “Álbum de Família (2005 / 2008), “Anjo Negro” (2006), “Senhora dos Afogados (2007), todas também de NELSON;  A Casa de Bernarda Alba (2009), de Federico Garcia Lorca; “Dante's Inferno, Primeira Parte de ‘A Divina Comédia’" (2010), de Dante Alighieri; e, mais recentemente, “Paraíso Agora ou Prata Palomares” (2013), baseada num polêmico filme nacional, jamais exibido comercialmente no país.


FARJALLA não é um simples diretor de atores; é, isto sim, um diretor de toda uma equipe envolvida num projeto.


Seu mérito maior, ao qual se somam muitos outros, na direção de “DOROTÉIA”, está no fato de usar e abusar da “desconstrução”. De tudo! A começar pelo próprio texto, condensando os três atos da peça em um só e personalizando objetos, naquilo que ele chama de HOMENS-JARRO, representados por músicos, que atuam durante quase todo o espetáculo, uma espécie de coro masculino, representando tanto a aparição do signo “jarro”, símbolo que está no texto, como os homens que passaram pela vida da ex-prostituta, como pode representar, também, na visão deste analista, metaforicamente falando, o objeto que serve para a purificação, por estar presente, nas alcovas das “mulheres de vida fácil”, para expurgar, higienizar o corpo, purificar o “pecado”, após o gozo, no coito. Creio que o “jarro” significa um óbice à decisão de DOROTÉIA de abandonar o mundo vazio da prostituição, abrindo mão do prazer carnal, e a aceitação desafiadora de se tornar feia e “pura”. No fundo, uma representação materializada do seu desejo, ainda latente, de sexo. DOROTÉIA vive sendo “perseguida” pela visão ou pela “presença” dos HOMENS-JARRO.






Homens-Jarro.



Esse coro permeará a encenação, executando, ao vivo, os sons e a trilha do espetáculo, acompanhando-se por diversos instrumentos musicais, alguns exóticos e raros.


Outro ponto positivo foi ter o diretor optado pela representação em arena, uma “ilha”, ligada ao “continente” por uma passarela, o que aproxima bastante o público da ação e provoca uma sensação de juízes e/ou copartícipes dos fatos.


FARJALLA é dos poucos diretores que conseguem mergulhar no abissal do universo rodriguiano e conversa com o autor no mesmo nível de linguagem e entendimento. O que ele consegue traduzir, em imagens e excelentes marcações, o que deseja o autor da peça transmitir é algo espantoso.


A beleza plástica da cena final, inspirada no quadro “A Primavera”, do pintor renascentista Sandro Botticelli, é de arrancar lágrimas e ficar fixada, na memória afetiva do espectador, para sempre. É uma daquelas cenas indeléveis.


Seu trabalho é muito bem alicerçado por DIOGO PASQUIM e RAPHAELA TAFURI, na assistência de direção.


Quanto ao cenário, mais uma vez, estamos diante de uma obra-prima do grande mestre JOSÉ DIAS, que utiliza apenas uma cadeira em cena, naquela casa sem quartos. E para que sentar-se? Apenas DONA FLÁVIA faz uso da cadeira, que pode representar um trono, só ocupado por ROSAMARIA MURTINHO, que encarna a personagem, a matriarca da casa. Em compensação, DIAS projetou, e executou, quatro gigantescas árvores, que ficam fora da arena, em cada vértice do quadrado, totalmente secas, como as almas das primas, e que projetam galhos, bem altos, para o espaço cênico. De dentro dessas árvores, surgem os fantásticos HOMENS-JARRO. Não são dois espaços separados, e sim um só, num ambiente mórbido, para cuja criação as tais árvores são essenciais. Pena não ter encontrado uma foto deste belíssimo cenário.





Mistério.



Que trabalho magnífico fez LULU AREAL na criação dos figurinos! Quer nos modelos, quer na concepção de cada traje, quer no material utilizado, quer nas cores escolhidas, quer na criação das máscaras - creio que estas em trabalho conjunto com ANDERSON CALIXTO, na maquiagem e no visagismo – tudo foi pensado e executado milimetricamente, resultando um eleito plástico em que a feiura e o sombrio ganham cores de belo. Gostaria de acrescentar que o trabalho de caracterização feito em ROSAMARIA MURTINHO, para a foto que deu origem à arte do cartaz e do programa da peça é de uma qualidade extrema, creio que do próprio CALIXTO. Na peça, não houve o excesso, quanto à caracterização, puxada para o feio, como na foto da arte, o que considero uma correta opção.


PATRÍCIA FERRAZ assina a ótima iluminação do espetáculo, junto com JORGE FARJALLA e JOSÉ DIAS, oscilando entre momentos de mais ou menos quantidade de sombras. Há o que deve ser claramente revelado e o que deve ser apenas sugerido. Muito correta a luz, não dá espaço à exibição, muito clara e evidente, daquilo que, em tese, seria reservado a poucos “voyeurs”, num ambiente de intimidade, afastado do mundo exterior, o real.


Falar do elenco de “DOROTÉIA” é estar disposto a reservar um bom espaço, para que nada do que deve ser dito fique fora de foco.


Quem só está acostumado a ver ROSAMARIA MURTINHO na TV, quem nunca provou do prazer de vê-la num palco, não faz ideia da grandiosidade desta mulher com mais de 80 anos e com uma disposição e uma garra, muitas vezes, não percebidas em jovens atrizes. ROSINHA, como, carinhosamente, gostamos, os amigos, de tratá-la, é uma das melhores atrizes do nosso TEATRO e, em “cumplicidade” com FARJALLA idealizou esta montagem de “DOROTÉIA”, para comemorar, em estado de gala, seus 60 anos dedicados ao TEATRO. Um belíssimo serviço prestado até hoje e, esperamos, continue em prática por muitos anos mais.


É comovente vê-la em cena, mesmo com duas costelas fissuradas, na primeira vez em que assisti à peça, em função de uma queda em sua casa, protegida por um acessório ortopédico, dando vida a uma personagem, que não é, tecnicamente, em termos didáticos, a protagonista, na trama, mas que rouba, em muitos momentos, a cena, com sua interpretação visceral de uma mulher feia, frustrada e infeliz, que faz de tudo para destruir a beleza da prima DOROTÉIA.


Da geração que foi preparada por Maria da Glória Beauttemüller, a grande mestra da voz, ROSINHA encontrou uma voz perfeita para a personagem, infelizmente, em raros momentos, um pouco prejudicada, em termos de chegar ao público, em função da péssima (ou nenhuma) acústica do Teatro do Espaço Tom Jobim, que não foi projetado para ser um teatro. Mesmo com a instalação de alguns microfones direcionais, acho que o melhor seria a utilização de microfones individuais "de lapela", já que o mesmo “probleminha” ocorre também com outras atrizes do elenco, quando têm de falar, voltadas para um dos quatro lados da arena. Mas isso só ocorreu nas primeiras sessões e, felizmente, esse problema técnico já foi corrigido.


ROSINHA não poderia ter escolhido melhor a festa do seu 60º aniversário de carreira profissional. Chamo a atenção de quem vai (E DEVE.) assistir ao espetáculo para as nuanças de interpretação que ela utiliza nos diálogos com cada uma das outras atrizes, predominando o autoritarismo e um poder que a personagem reserva a si.





Rosamaria Murtinho, em grande estilo.




Dona Flávia.



VAMOS APODRECER JUNTAS”... (DONA FLÁVIA)



O protagonismo do texto, o papel de DOROTÉIA, é brilhantemente defendido por LETÍCIA SPILLER, que já demonstrou, em espetáculos anteriores, ser uma boa atriz. Em “DOROTÉIA”, ela se revela ótima, madura, talhada para o papel. Sem o menor perigo de estar cometendo algum erro, afirmo que este é o melhor de todos os seus trabalhos, dos que tive a oportunidade de ver, no TEATRO (acho que todos). Foi muito feliz a ideia de ROSAMARIA MURTINHO e JORGE FARJALLA, com o qual LETÍCIA já fez trabalhos anteriores, o convite à atriz para ao papel.


Sua conduta, em cena, é irretocável do início ao final da peça. Por meio de variações na voz, máscaras faciais e um belo trabalho de corpo, a atriz se coloca muito bem, quando demonstra estar arrependida da vida mundana anterior, decidida a seguir o destino das primas, quando se sente culpada pela morte do filho ou quando, “sexy” e “safada”, alterna momentos de desejo de voltar a ter, na cama, os homens que lhe proporcionaram tanto prazer. Sua sensualidade aflora, quando tem de estar sob as luzes fortes dos refletores, mormente quando interpreta o sensualíssimo bolero “Besame Mucho”. Aqui, não deve ser julgado o aspecto da voz, e sim o tom de despertar o desejo na plateia masculina.





Besame Mucho.




Dorotéia, diante do falo, as botas “desabotoadas”.



As outras duas primas, ALEXIA DESCHAMPS (MAURA) e JACQUELINE FARIAS (CARMELITA) também fazem um belíssimo trabalho coadjuvante; de personagens coadjuvantes, não de atrizes. Coadjuvantes são os personagens; atores e atrizes nunca o são. Ambas sabem aproveitar cada cena em que estão envolvidas, moldando-se aos ditames histéricos, ameaçadores e agressivos de DONA FLÁVIA, demonstrando uma passividade e respeito à prima mais velha, totalmente incorporadas às tradições e maldições daquela família.


É muito interessante o deslocamento das duas em cena e os olhares de cumplicidade entre ambas, aprovando as ações da líder do clã, as três exercendo a função de guardiãs de uma castidade e de uma moral cristã tão valorizadas e tão sem sentido.


As duas irmãs são castigadas, com a morte, por terem visto as botinas “desabotoadas”, a representação fálica do homem, que elas jamais poderiam, ou deveriam, enxergar.


Duas belíssimas atuações!!!


E por falar em “desconstrução”, que tarefa difícil para o maquiador e visagista transformar duas belas mulheres em trapos humanos (Eu disse “humanos”?)!





As três primas, feias e castas.




Alexia Deschamps.



Um ótimo destaque, também, no espetáculo, vai para MARIA DAS DORES ou, simplesmente, DAS DORES, personagem interpretado por ANNA MACHADO, a curiosa e “injustificável” adolescente “natimorta”, “sem o saber”, e, consequentemente, a única da casa que não conhecia o pecado, mas à qual, paradoxalmente, fora destinado um marido. Ela também precisaria conhecer a “náusea”, para que pudesse ser devidamente sepultada. Ao ouvir, da mãe, a revelação de que nascera morta, e que, portanto, não existia, decide voltar ao útero materno, com o único objetivo de ser diferente de todas as outras da casa, renascendo, na forma de uma mulher “normal”, com possibilidades de conhecer o amor, independentemente de “náuseas” ou “visão limitada”.

Excelente o trabalho da atriz!




Anna Machado.



Maria das Dores.



Uma grande atriz, quase sempre em papéis coadjuvantes, é DIDA CAMERO, que prova que quem tem talento valoriza qualquer papel, por menor e menos importante num texto. É o que faz, em cena, representando DONA ASSUNTA DA ABADIA, a mãe do prometido marido para DAS DORES, EUSÉBIO DA ABADIA.


DIDA é sempre uma presença marcante em qualquer espetáculo, e não é diferente aqui, com sua voz e gargalhadas personalíssimas, que fazem parte do perfil da personagem. São um tanto quanto meteóricas as suas aparições, porém de grande força no espetáculo e merecedoras de muitos aplausos.





Dida Camero, ao fundo, carregando o filho, dentro de uma caixa.



Além das personagens citadas, surge, em cena, em duas rápidas aparições,  NEPOMUCENO, um personagem enigmático, um leproso, que seria o responsável por transmitir à DOROTÉIA as chagas que a tornariam feia. O já citado noivo de DAS DORES, EUSÉBIO DA ABADIA, NÃO É VIVIDO POR NENHUM ATOR, SENDO representado, simbolicamente, por um par de botas “desabotoadas”. “Desabotoadas”, expressando o estar pronto para o sexo.



FICHA TÉCNICA:

Texto: Nelson Rodrigues
Direção e Encenação: Jorge Farjalla
Assistentes de Direção: Diogo Pasquim e Raphaela Tafuri

Elenco: ROSAMARIA MURTINHO (DONA FLÁVIA), LETÍCIA SPILLER (DOROTÉIA), ALEXIA DESCHAMPS (MAURA), DIDA CAMERO (DONA ASSUNTA), ANNA MACHADO (MARIA DAS DORES) e JAQUELINE FARIAS (CARMELITA)

Homens-Jarro (músicos): FERNANDO GAJO, PABLO VARES, ANDRÉ AMÉRICO, DU MACHADO, DANIEL MARTINS e RAFAEL KALIL
Direção de Arte e Espaço Cênico: José Dias
Figurino: Lulu Areal
Maquiagem e Visagismo: Anderson Calixto
Iluminação: Patrícia Ferraz, Jorge Farjalla e José Dias
Direção Musical: João Paulo Mendonça
Trilha Original: João Paulo Mendonça, Leila Pinheiro, Fernando Gajo e Rafael Kalil
Produção Musical: André Américo, Daniel Martins, Du Machado, Fernando Gajo, Pablo Vares e Rafael Kalil
Fotografia: Carol Beiriz
Preparação Vocal: Patrícia Maia
Direção de Produção: Bruna Petit
Produção Executiva: Sandra Valverde
Produção Operacional: Lu Klein
Assessoria de Imprensa: Debs Comunicação










SERVIÇO:

Temporada: Anteriormente, prevista para terminar no dia 3 de abril, em função da lotação do teatro, em todas as sessões, a temporada foi prorrogada até o dia 1º de maio).
Local: Teatro Tom Jobim (Rua Jardim Botânico, 1008 - Jardim Botânico, dentro do Parque Jardim Botânico- Tel: 2274-7012).
Dias e Horários: De 6ª feira a sábado, às 21h; domingo, às 20h.
Valor do Ingresso: R$50,00 (inteira) e R$ 25,00 (meia-entrada). (50% de desconto para colaboradores Petrobras.).
Vendas na bilheteria do teatro e no “site” www.ingressorapido.com.br
Categoria: Farsa Irresponsável.
Classificação Etária: 16 anos.
Duração: 90 min.
Capacidade: 330 lugares.









Sem a menor sombra de dúvidas, “DOROTÉIA” surgiu como um tsunâmi, no panorama teatral do primeiro trimestre de 2016, com retumbante sucesso, de público e de crítica, a ponto de já ter conseguido a primeira prorrogação de temporada, que deverá se repetir outras vezes, constituindo-se, desde já, naquilo que será considerado, ao final do ano, um dos melhores espetáculos da temporada em curso.


Na plateia de “DOROTÉIA”, sentimo-nos como num festival dionisíaco, numa celebração a tudo e a todos!!!


EVOÉ!!!
















(FOTOS: CAROL BEIRIZ.)

Um comentário:

  1. Caro Gilberto, escrevo para agradecer sua crítica publicada ao espetáculo Dorotéia. Aproveito para informar que o desenho de luz foi assinado somente por mim, mas por um erro grafico no programa , os creditos citaram Farjalla e Jose Dias.
    Se puder retificar, ficarei muito grata.
    Desde já agradeço .
    Abs
    Patricia Ferraz.
    (21) 9.9167-2421

    ResponderExcluir