domingo, 6 de outubro de 2013


NEM MESMO TODO O OCEANO – A MELHOR E MAIS COMPLETA AULA DA HISTÓRIA VIVA DO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Cartaz da peça
 
            Depois de ter cumprido uma bela temporada, na Arena do Espaço SESC Copacabana, está, agora, em cartaz, no Teatro Gláucio Gil, ao lado da estação do metrô Cardeal Arcoverde, e ficará em cartaz até o dia 21 deste mês (outubro), um espetáculo que, por vários motivos, merece ser visto por todos: “NEM MESMO TODO O OCEANO”.

            Trata-se de uma verdadeira aula de História do Brasil, a verdadeira, e não a que se conta nos livros didáticos, retratando um dos capítulos mais horríveis e inconcebíveis deste pouco mais de meio milênio de vida de um país, que tinha toda a vocação para ser grande, mas que se apequena, cada vez mais, por conta da corrupção, da impunidade e dos conchavos à boca da noite. 

O capítulo em tela é o golpe militar de 1964, que depôs um presidente, legitimamente no poder (era o vice-presidente), depois da “renúncia” do presidente eleito, para passar o comando da nação aos militares.

Elenco

            Talvez, pelo fato de que “o que é ruim deve ser esquecido”, não me dera conta de que, em 2014, completa 50 anos (não se pode usar o verbo “comemorar”) aquele fatídico 1º de abril de 1964 (DIA DA MENTIRA), que, até hoje, os militares, por um “pequeno atraso, um erro matemático”, insistem em marcar, no calendário, como sendo a data de 31 de março daquele ano.

            A peça, adaptada por INEZ VIANNA, também diretora do espetáculo, é baseada numa obra emblemática, escrita pelo já tão saudoso ALCIONE ARAÚJO, falecido há quase um ano (15 de novembro de 2012). 

É uma brilhante obra, de 794 páginas (estou lendo), adaptada, de forma corajosa e perfeita, por INEZ.  Um grande desafio: condensar uma narrativa tão pungente e cheia de detalhes numa concepção dramática, sem deixar perder nada do fio condutor da trama.  É necessária muita competência e sensibilidade para executar tal missão.

            A única obra, de que me lembro, que pode chegar perto deste espetáculo teatral, para retratar o que representaram aqueles anos de chumbo, foi o filme “PRA FRENTE, BRASIL”, de 1982, escrito e dirigido pelo cineasta ROBERTO FARIAS,  que mostra, explicitamente, uma época em que um cidadão não sabia que corria tanto perigo, pelo simples fato de viver num país em que qualquer ato “estranho” era considerado subversivo, o que, fatalmente, levaria o “infrator” aos porões da ditadura, para terríveis sessões de tortura, de onde alguns saíram sequelados e onde muitos foram mortos, alguns dos corpos jamais encontrados.

Cena da peça

Cena da peça

A montagem é da Cia OmondÉ, e, de forma fictícia, traça a saga de um jovem médico (o personagem não tem nome), cheio de sonhos, que veio do interior, para se formar no Rio de Janeiro, e que, por determinadas contingências, que vão sendo conhecidas no decorrer da peça, além de seu alto grau de “alienação e ingenuidade”, acaba por ser tornar médico do Exército, responsável por avaliar o estado dos torturados no DOI-Codi, o que o levou a um fim surpreendente e trágico.

Os fatos reais dos anos que antecederam o golpe militar e os primeiros transcorridos após este se misturam à brilhante ficção de ALCIONE ARAÚJO, levando os espectadores, principalmente os de mais idade, interessados na nossa História a uma identificação com aqueles dias negros, que nunca deveriam ter existido.  

            Desde que travou contato com o livro, INEZ VIANNA decidiu que era chegada a hora de fazer vir à tona a história daquelas pessoas que não temiam nem a morte, em nome do resgate da liberdade e da democracia no Brasil, no mesmo momento em que a Comissão da Verdade procura fazer o mesmo, de outra forma, obviamente.

            O título do espetáculo, que dá impressão de que se afasta do que trata o enredo, pode ser explicado, metaforicamente, como uma falta de opção para o brasileiro se sentir seguro, naquela época, imune à implacável perseguição dos “milicos”, ou “gorilas’, dois termos pejorativos para designar os militares das Forças Armadas do Brasil. 

Assim como, em sua própria casa, uma pessoa não tinha a menor sensação de segurança, isso acontecia em qualquer lugar.  NEM MESMO TODO O OCEANO serviria de escudo protetor, quando alguém se tornava uma infeliz presa do regime.

Torturador e torturado           

Passemos, então, a comentar os elementos envolvidos na encenação:

            Nada mais a declarar sobre o belíssimo trabalho de adaptação do livro de ALCIONE ARAÚJO, mérito de INEZ VIANNA, com consultoria dramatúrgica de PEDRO KOSOVSKI. 

Como diretora do espetáculo, o que se pode dizer é que INEZ, em seu quinto trabalho de direção, salvo engano, revela-se bastante madura, já podendo ser considerada uma das melhores profissionais na área, o que se soma a seu já conhecido excelente talento como atriz e cantora.

            Já que a trama se desenvolve em vários espaços, a maioria internos, louve-se a criatividade da diretora em optar por um espaço vazio, reservando à plateia o exercício da imaginação.

            Ao adentrar o teatro, o espectador já encontra o sexteto de atores em cena, “brincando” com uma bola de meia, arremessada de um a outro, cada um tentando evitar que ela caia.  Sempre, porém, que isso, inevitavelmente, ocorre, todos se jogam ao chão, girando sobre o próprio corpo, retomando, logo em seguida, a postura anterior: todos em pé, movimentando-se, correndo até, por todo o espaço cênico, voltando à “brincadeira”. 

Confesso que, na primeira vez em que assisti à peça, intrigou-me aquilo.  Passei a me questionar o que estaria a direção tentando passar com tal cena.  Socorreu-me uma amiga, professora de História (Marisa Sá), que bem lembrou (é a nossa leitura, a minha e a dela; se é uma viagem, somos companheiros de poltronas) o termo “CAIR”, tão utilizado naquela época, toda vez que alguém era preso ou que um “aparelho” era descoberto pela repressão.  Dizia-se: “...caiu”. 

E a retomada da posição anterior, após cada “queda”, todos eretos, pode, também, estar representando a capacidade de resistência das pessoas, que arriscavam a própria vida por toda uma nação.

            Outro aspecto de relevada importância, escolhido por INEZ, é o fato de todos os atores representarem o protagonista, alternando-se em vários outros papéis, inclusive os femininos, raros  estes, sem que haja trocas de roupas.  O figurino será mencionado adiante.

Inez Vianna
 

            Quanto ao elenco (LEONARDO BRÍCIO, IANO SALOMÃO, JÉFFERSON SCHOEDER, JÚNIOR DANTAS , LUÍS ANTÔNIO FORTES e ZÉ WENDELL), todos apresentam ótimo rendimento, com um certo destaque para BRÍCIO e  WENDELL.  Aquele, talvez, por ser o mais explorado na pele do protagonista.  É emocionante a carga emotiva que o ator dedica à sua interpretação, o que o público percebe, facilmente, na extenuação como ele chega ao final da peça.  O mesmo pode ser dito sobre ZÉ WENDELL, principalmente nas cenas em que aparece sendo torturado.  Dois grandes atores.

 

Elenco: da esquerda para a direita - acima: Leonardo Brício e Júnior Dantas; ao centro: Iano Salomão e Luís Antônio Fortes; embaixo: Jéfferson Schroeder e Zé Wendell
 
           A concepção cenográfica é da própria INEZ, em parceria com CLÁUDIA MARQUES, que também acumula a direção de produção.

            O cenário é o chão e o vazio, cercado por um tipo de lanternas, distribuídas ao redor da arena e também pendentes do teto.  Apenas uma cadeira é utilizada, parcimoniosamente, em pouquíssimas cenas.  Nem precisava mesmo de mais nada.

            Assisti ao espetáculo no Espaço SESC Copacabana (Arena) e no Teatro Gláucio Gil e achei que ele cresceu bastante, neste último, que parece estar mais de acordo com  proposta da peça, pela própria constituição física do espaço.  Creio que a Arena do SESC Copacabana, a despeito de ser excelente, é meio “high tech”, muito “burguesa”, para este tipo de espetáculo, opinião corroborada por CAROLINA PISMEL, uma das assistentes de direção (as outras são DÉBORA LAMM e JULIANE BODINI).

 
Cena da peça


            O figurino, de FLÁVIO SOUZA, atende muito bem à concepção do espetáculo.  Uma vez que todos os atores representam vários personagens, a solução encontrada por FLÁVIO foi vesti-los, a todos, com simples calças do tipo social, em tons escuros, e camisetas modelo regata, duas, uma sobreposta à outra, a segunda das quais servindo de capuz em algumas cenas que reproduzem torturas.  Os sapatos são pretos e de modelos bem populares.  Todos iguais e muito simples.  Ótima solução!

            A iluminação, ou melhor, a pouca iluminação, num excelente trabalho de RENATO MACHADO, ajuda a criar o ar de mistério e trevas, peculiar aos locais em que se davam as torturas.  Ganha, porém, um pouco mais de intensidade nas cenas em que é permitido “mostrar”, sem a preocupação com o “ocultar”. 

Ainda sobre a iluminação, também merece destaque a luz que incide sobre quatro atores completamente despidos, numa das cenas de tortura.  Como a intenção não é exibir o nu, e sim pôr em evidência o grau de humilhação a que eram submetidos os torturados, a luz de RENATO concede à referida cena uma plasticidade admirável, valorizando rostos e dorsos.

            A direção musical é bem conduzida, por MARCELO ALONSO NEVES.

 
Tortura (NUNCA MAIS!)


            Com poucos recursos financeiros e abundância de talentos e excelentes trabalhos, esta mais recente produção da Cia OmundÉ se revela, até agora, como um dos melhores espetáculos do ano, que merece ser conferido, até mais de uma vez.  

 

Tortura (HORROR!
 
 (AS FOTOS QUE ILUSTRAM ESTA MATÉRIA SÃO DA PRODUÇÃO E DA DIVULGAÇÃO DO ESPETÁCULO)

 

 

 

 

 

 

 

 

 




 

Um comentário:

  1. Realmente a ideia de "caiu" foi discutida por nós. Assumo a viagem, caso seja essa interpretação uma viagem!
    Quanto a forma como os livros didáticos tratam o fatídico dia 31 de março ou1º de abril de 1964,tanto faz, o estrago foi terrível, quero ressaltar que já temos A VERDADEIRA HISTÓRIA DO BRASIL analisada em 90% do material existente no mercado didático. Apesar de todos os esforços do exército, já conseguimos ver nesses livros o título do assunto como "O GLOPE MILITAR DE 1964" e não "A REVOLUÇÃO DE 1964". Ufa! Pelo menos isso. Mas porque tudo isso mesmo? Ah, não importa se o público tem ou não tem esse conhecimento específico, a emoção do texto transmitida pelo elenco é indescritível!
    Esse espetáculo é uma atividade extraclasse que as escolas preocupadas com o desenvolvimento do senso crítico dos seus alunos, NÃO PODE PERDER! Imagina quanto os alunos não ganhariam?
    #ficaadica

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