domingo, 25 de agosto de 2013



 
A PORTA DA FRENTE   -   DE PROPÓSITO, ESCANCARADA.

 
Programa da peça
 
 
Rogério Freitas e Jorge Caetano
 
           As mulheres estão tomando o poder, assumindo seu merecido papel, em todos os setores da vida, e não poderia ser diferente no TEATRO. 

Embora, até hoje, saibamos que os melhores personagens dramáticos são escritos para homens, por outro lado, a cada dia, novas mulheres estão dominando a arte de escrever para o teatro. 

Vários nomes poderiam ser citados, porém o que é motivo deste texto chama-se Júlia Spadaccini, uma jovem dramaturga, de 35 anos, em grande ascendente carreira, autora de dezoito textos, alguns dos quais indicados a prêmios, como foi o caso de QUEBRA-OSSOS e AOS DOMINGOS, duplamente indicado, este ano, até o presente momento, para dois distintos prêmios. 

Não “satisfeita” com esse reconhecimento, Júlia acaba de estrear mais um de seus trabalhos, o qual, há duas semanas em cartaz, já mereceu os maiores elogios de todos os que já assistiram à encenação, assim como algumas boas críticas na imprensa especializada.

A peça em questão é A PORTA DA FRENTE, uma ideia genial da autora, que surpreende a cada novo texto produzido.

A ação se dá em dois apartamentos, num dos quais mora uma família muito tradicional, que vê sua estrutura familiar, mergulhada num clima de mesmice e frustrações, ameaçada e abalada pelo novo morador do apartamento em frente, nada mais, nada menos que um “crossdresser”.  Creio que só a ideia-eixo sobre a qual vai ser criada a trama já é, por si, merecedora de uma maior atenção.  Mas o que deseja a autora dizer com isso?  Quais são as mensagens claras ou sugeridas que podem ser depreendidas desse texto?

Júlia nos apresenta a PORTA como um personagem da trama.  Invariavelmente aberta (prefiro dizer “escancarada”), ela se apresenta como algo buscado por cada um dos membros daquela “família”, que os faça libertos de seus preconceitos, de suas dúvidas, de seus medos, de suas mentiras, de suas repressões, de seus desejos reprimidos; enfim, que lhes tire, do rosto, o véu que, cuidadosa e intencionalmente, cada um criou para si, o que serve, perfeitamente de espelho aos espectadores e os leva a criar uma simpatia muito especial por Sasha, o “crossdresser”, magistralmente interpretado por Jorge Caetano, recém-saído do elenco de AOS DOMINGOS, outra excelente peça de Júlia Spadaccini, que voltou ao cartaz, nesta semana, no Teatro Laura Alvim.

Que revolução pode ocorrer na cabeça de uma família “careta”, quando um homem que se veste de mulher, mas que gosta de mulher, dá aulas de canto e bebe chá, de forma clássica, e que vive com a porta de entrada de seu apartamento permanentemente a se ofererecer como um túnel, que leva a um mundo “desconhecido” e, por isso mesmo, “temido”?  E, pior ainda, quando o filho, que é gêmeo de uma irmã, de 16 anos, descobre que seu pai, o patriarca, o provedor da “família”, um discreto e mal-sucedido corretor de imóveis, frequenta aquele “antro de perdição”?

O espectador não conseguirá sair do teatro, sem que tenha sido mexido, sacudido, de alguma forma, pelo texto, a mola-mestra deste espetáculo, a despeito da grande atuação de todos do elenco, da direção e dos demais setores de uma produção teatral, os quais serão analisados, a seu tempo.  Mas, como sempre pensei, e acho que pensarei para sempre, que nenhuma peça se sutenta sem um texto de qualidade, o que escreveu Júlia Spadaccini está sendo o motivo principal destes comentários.

As relações familiares e suas implicações são discutidas, na peça, de uma forma muito simples, natural.  Não se trata de um “texto cabeça”, daqueles que, do princípio ao fim”, o espectador fica se questionando “o que é que o autor deve estar querendo dizer com isso?” ou “qual a relação disto com aquilo?”.  Não que uma pequena dose de uma “viagem” não seja interessante nesse contexto (a própria Júlia já o fez), mas, em A PORTA DA FRENTE, a autora diz tudo da forma mais simples e clara possível.  Não complica, não gera dúvidas.  Seus diálogos fluem com uma transparência tal, que hipnotizam o espectador e fazem com que noventa minutos pareçam nove.  A peça não é curta nem longa; tem um tamanho justo.  Nada, nela, é injustificável.  É ótimo sair do teatro com a sensação de “quero mais” (não porque faltou algo, mas porque foi muito bom; e o que é bom nunca é demais).

 

O elenco:

 

JORGE CAETANOSasha, o “crossdresser”, personagem misterioso, que foi amigo de Lou Reed e que será o vetor de tantas transformações.  O ator esbanja talento em cena.  Sua composição para o personagem é perfeita, sem exageros nem economias.  Merece a ovação da plateia.  Confesso que não o aplaudi em cena, para não interromper o fluxo dramático de alguns momentos.  Agora, porém, digo: Jorge, considere-se aplaudido em cena, por mim e, certamente, por toda aquela plateia que lotou o teatro no último domingo.

 

ROGÉRIO FREITASRui, o chefe da família.  Excelente a escalação de Rogério, veterano ator, para o papel.  Decodificou facilmente as características de seu personagem e sabe explorá-las em cena.  A surpresa, para o público, da transformação de seu personagem vai sendo muito bem construída, graças ao talento desse ator.

 

MALU VALLELenita, a esposa e mãe, o retrato mais fiel da homofobia.  A que se sente mais ameaçada pela presença daquele ser “estranho”, por todas as “más influências” que poderá exercer sobre a sua família, principalmente sobre o seu filho, adolescente de 16 anos.  Seu conservadorismo cerra-lhe os olhos aos problemas reais da família.  Malu é responsável por boas gargalhadas, por sua excelente interpretação, na qual circula pelo universo do humor da mesma forma como domina as cenas que se revestem de maior densidade dramática.

 

MARIA ESMERALDA FORTEMarilu, a mãe de Lenita.  Bela atuação, na pele de uma senhora que, iniciante de um processo de esclerose, é a portadora da notícia da chegada do novo morador, informação que não é levada em consideração logo de início, até que cada um dos membros da família vai tendo a oportunidade de encontrar a “criatura”.  É exatamente ela, que vive num caos mental, quem anuncia o caos que, a partir de tal anunciação, vai ser instaurado nas cabeças de seus pares.

 

FELIPE HAUITJonas, um dos gêmeos, 16 anos.  Na primeira cena do espetáculo, ele aparece, contracenando com Sasha, e a mesma cena encerra a peça.  É uma grande surpresa, que só valoriza o espetáculo.  Ótima atuação desse jovem ator.  Fiquei muito bem impressionado com o seu trabalho.

 

NINA REISNatália, a gêmea de Jonas.  Dentro de algumas limitações da personagem, Nina se sai muito bem nas cenas em que é mais exigida e dá a sua contribuição à homogeneidade das atuações de todo o elenco.

 

A DIREÇÃO, a quatro mãos, de Jorge Caetano e Marco André Nunes é excelente, conseguindo extrair o melhor rendimento do elenco.

 

A CENOGRAFIA, de Aurora dos Campos, também merece destaque, principalmente pelos recursos que ela utiliza para montar três ambientes no contido espaço do palco do Teatro Oi Futuro Flamengo.  Verdadeiro milagre da engenharia cênica.

 

Bons os FIGURINOS de Rui Cortez.

 

Excelente a DIREÇÃO DE MOVIMENTO de Márcia Rubin.

 

Ótima a ILUMINAÇÃO de Renato Machado.

 

O mesmo pode ser dito quanto ao VISAGISMO, de Josef Chasilew e a DIREÇÃO MUSICAL, de Felipe Storino.  

 

Com relação a Júlia Spadaccini, penso o mesmo que pensava sobre Caetano Veloso.  Explicando melhor: a cada novo disco de Caetano, eu sempre, após adquiri-lo no primeiro dia em que era posto à venda, dizia: É impossível que ele se supere.  E ele se superava sempre.  Vinha dizendo isso há algumas décadas (parei de dizer após o lançamento dos seus três últimos álbuns).  Digo o mesmo, com relação à Júlia, há alguns poucos anos.  E ela sempre se supera.  Espero que possa continuar dizendo.

 

A PORTA DA FRENTE está sempre aberta a quem quiser entrar.  Não faça cerimônia!




 

 

Um comentário:

  1. Espetáculo imperdível. Fala dos sentimentos mais corriqueiros da alma humana com uma dilicadeza "doída", se é que existe esse sentimento. Mas foi assim que senti.
    Uma delícia. Todos temos em nós algum motivo para procurar "uma porta aberta". Vá lá e inspire—se para procurar a sua porta aberta.
    Lindo espetáculo, Julia. Belíssimo texto Gilberto.

    ResponderExcluir