A
FESTA DE ANIVERSÁRIO
(“ASSIM É, SE LHE PARECE”;
OU NÃO”.
ou
DA ARTE DE PROVOCAR A
IMAGINAÇÃO.)
Tenho sempre uma enorme admiração
pelos diretores que resolvem encenar
espetáculos de determinados autores, por serem textos de difícil montagem, como “A FESTA DE ANIVERSÁRIO”, de HAROLD
PINTER, em cartaz no Teatro Poeira
(VER SERVIÇO.).
No caso, o foco da minha admiração é GUSTAVO PASO, que, fora da sua companhia, como convidado, dirige
uma interessante montagem do consagrado dramaturgo
britânico, o qual, ao lado de Samuel
Beckett e Eugène Ionesco, forma
o tripé de apoio para o chamado Teatro
do Absurdo, contestado por muitos, aceito pela maioria, da qual faço parte,
sem, no entanto, incensá-lo, ainda que goste muito do texto da peça ora analisada.
Além
de grande dramaturgo, um dos maiores
do século XX, PINTER, falecido em 2008,
aos 78 anos de idade, foi, também, ator, diretor, poeta, roteirista
e, certamente, um destacado e incômodo ativista político.
Recebeu o Nobel de Literatura, de 2005, e o prêmio “Companion of Honour”, da Rainha da Inglaterra, pelos
serviços prestados à literatura.
Das 29 peças que escreveu, “A
FESTA DE ANIVERSÁRIO” (“The Birthday Party”), escrita em 1957, é a que ocupa,
internacionalmente, um lugar de destaque, a despeito de ter sido um fracasso,
quando de sua estreia, redimindo-se posteriormente, em outras montagens.
PINTER é um dos mais
importantes renovadores do teatro moderno
e, nas suas peças, são criadas situações em que personagens “normais”, em
suas vidas cotidianas, são colocados, repentinamente, frente ao inesperado e indesejado.
Ninguém vai assistir a uma peça de PINTER,
achando que permanecerá na sua zona de conforto, encontrando um espetáculo com
princípio, meio e fim claros e cenas bem definidas, durante todo o espetáculo,
que vai entender tudo, que lhe será dado “de graça”. Do nada, surgem personagens
“estranhos”, provocando ou propondo situações bizarras, grotescas; insólitas,
no mínimo.
E a tendência do espectador é, a princípio, ficar meio perdido,
procurando “entender” o que está se passando, até desistir e deixar a
imaginação dar a mão aos personagens e caminhar, com eles, por “labirintos
incertos”, quase um pleonasmo.
Dentro da dramaticidade do texto,
cabe lugar para um humor cáustico e quase injustificável – seria cômico, se não fosse sério –, o qual contribui pra definir
os dois lados antagônicos em que se encontram os personagens.
SINOPSE:
O texto conta a caça enigmática de STANLEY (ALEXANDRE GALINDO), um pianista, “auto-exilado” em uma
pensão humilde, em uma praia qualquer.
Os donos, MEG (ANDRÉA DANTAS) e PETEY (MARCOS ÁRCHER), hospedam STANLEY há quase um ano, o que faz dele
um hóspede residente, o único em todo esse tempo.
No dia do seu aniversário,
os moradores recebem a inesperada e estranha visita de dois homens, NAT GOLDBERG (ROGÉRIO FREITAS) e MCCANN,
nesta montagem, chamado de MAX, (GUILHERME
MELCA).
A chegada dos novos hóspedes
vai afetar o comportamento dos moradores, desencadeando uma série de
acontecimentos imprevisíveis.
Isso é o Teatro do Absurdo,
que permite, ao espectador, “viajar” e fazer as mais diversas leituras sobre o
que vê. Reparem que, na sinopse, encontramos, não por acaso, os
vocábulos “enigmática” (“caça” - ?), “auto-exilado” (Por quê?), “qualquer”
(praia - indefinição geográfica), “estranha” (visita) e “imprevisíveis”
(acontecimentos – não especificados). Já não é o suficiente para aguçar a
curiosidade de quem não conhece a peça? Já não basta para gerar, em quem gosta
de um bom TEATRO, o desejo de ver, o mais rápido possível, o espetáculo?
Essa capacidade de o autor “oferecer,
ao público, uma instigação do imaginário individual e coletivo” (extraído
do “release”) é uma de suas marcas
registradas, na dramaturgia, e,
certamente, um aspecto que atrai seu público cativo.
Em “A FESTA DE ANIVERSÁRIO”, a trivialidade cotidiana de alguns
personagens é abalada, ameaçada, por elementos-surpresa, que vão dar nós nas
cabeças dos espectadores, mas, ao mesmo tempo, vão fornecendo indícios para
várias descobertas.
Que passado guarda STANLEY, qual a sua origem e o que o
prende àquela pensão? Teria ele “contas a pagar”? E a quem? E por quê? O que o
faz escolher (ou não) morar num lugar que não é seu, que não guarda uma
identificação total entre sua personalidade e o ambiente em si (Ou ele já
estaria acostumado, anteriormente, a um ambiente inóspito como aquele?)?
Que motivos teriam os dois
“forasteiros”, na determinada missão de alijar o músico do seu universo
artístico e, por extensão, a pessoa do mundo? Que interesse teriam em fazer
calar a sua arte? Seria uma metáfora da perseguição aos artistas, sempre
imposta pelos regimes totalitários?
O que há de comum e verdadeiro, na relação entre o casal MEG e PETEY? Há amor e cumplicidade entre ambos? O que os une? E por que
e para quê?
Qual o significado da comemoração
daquele aniversário, de forma tão patética e disfuncional?
A
cena em que STANLEY, sem entender o
porquê (Será?), é metralhado de perguntas sucessivas, por parte dos “visitantes
enigmáticos”, anunciados e já aguardados pelo aniversariante, feitas num ritmo
frenético, o que não lhe permite o mínimo de tempo para esboçar uma resposta,
lembra muito as cenas que vemos, em representações, seja nos palcos, seja nas
telas, relacionadas aos interrogatórios a que eram submetidos os presos políticos,
durante o negro período da ditadura militar no Brasil.
Se
tudo, neste espetáculo é valorizado, feito com muito esmero e precisão, o que o
torna um dos melhores da atual safra de peças em cartaz, no Rio de Janeiro, um dos maiores acertos
sai das mãos do diretor, GUSTAVO PASO,
que conseguiu dar forma ao pensamento de PINTER,
mantendo-lhe as características principais, acrescidas de seu tino de grande diretor. PASO, sem abandonar, em momento algum, todos os meandros que o texto pode sugerir, apostou num
competente elenco, do qual soube extrair o seu melhor e criar a atmosfera do
absurdo tangível do texto, para dar
margem às diversas leituras jogadas na mesa.
No
elenco, encontramos profissionais
que se credenciam, com seus talentos, a prêmios relativos à atual temporada.
Impressionaram-me
bastante, sem que isso possa ser considerado uma novidade ou surpresa, os
trabalhos de ROGÉRIO FREITAS e ANDREA DANTAS, sem desmerecer nenhum
outro.
Como
NAT GOLDEBERG, ou, simplesmente, GOLD, ROGÉRIO se mostra, a meu juízo, na fase mais madura de sua
brilhante carreira, que acompanho, desde há muito, e que já me proporcionou a
alegria de ver o grande ator interpretando inesquecíveis papeis. Aqui, nesta “FESTA”, porém, como um “legítimo”
representante do poder totalitário, absoluto, ditatorial, na pele de um
implacável e sanguinário inquisidor, o ator provoca a ira da plateia, por sua
total e “inexplicável” brutalidade, e a consequente piedade por STANLEY, um joguete em suas mãos. Mais
um grande personagem para a sua vasta galeria.
Já
ANDREA DANTAS atrai, para si, todas
as luzes, quando está em cena. É excelente a sua composição para a personagem MEG, que vive num outro mundo, ou o que
procura criar, um mundo que ela bem sabe só existir nos contos de fada. É uma
digna representante da submissão feminina, embora, em determinados momentos,
tente fazer valer sua vez e voz. Sem entender bem o porquê, ela percebe que o
mundo está por ruir, mas não perde a sua ingenuidade, o seu otimismo, a sua
vocação onírica, fabricados. É incapaz de conceber – ou se nega a - o horror
próximo a ela. Durante a cena da patética festa de aniversário, tive vontade de
aplaudi-la em cena aberta, mas me contive, para não quebrar o clima, embora
tenha a certeza de que teria sido seguido por muita gente da plateia.
Para
MARCOS ÁRCHER, reservo
congratulações pelo brilhante trabalho como PETEY, um aspirante a um patamar superior, na escala social, desejo
que, no fundo, bem no seu íntimo, embora possa parecer o contrário, sabe que
jamais alcançará, por ser um tonto, ao mesmo nível de vulgaridade e limitação
da mulher, MEG. Um idiota útil a um
sistema.
E o que dizer
do trabalho de ALEXANDRE GALINDO,
como STANLEY? No mínimo, que é
excelente! Deve ter sido bastante difícil, para o ator, compor o personagem,
com a missão de preservar tantos enigmas, de agir, de modo a confundir bastante
a cabeça do espectador, sem dar pistas ou gerar “spoilers”. À medida que o texto vai se desenvolvendo, o público
só faz ampliar seus questionamentos sobre a nebulosidade que envolve o
personagem, que vai desde sua origem, passando por sua chegada àquela pensão e
a longa permanência nela, o aguardo das duas visitas, o porquê de ser tão
violentado e suportar o “castigo”, o perigo que pode representar para algo ou
alguém. Ele “purga”, sem esboçar qualquer reação de defesa.
Pode-se
associar ao personagem, como já sugerido acima, a figura do artista, que, com
sua visão crítica e contestadora, tanto “incomoda”, nos mais variados sistemas
políticos, principalmente aos de exceção. Isso faz com que ele se encapsule,
procure viver como um caramujo, que se esconde na própria casa, utilizada como
uma carapaça, a qual tem a função de protegê-lo do que não sabemos.
GUILHERME MELCA também defende, com
bastante firmeza, o personagem que lhe coube. MCCANN corresponde ao capataz do senhor, ao executante da tortura,
das histórias relacionadas à ditadura. Praticamente, um acéfalo, cumpridor de
ordens e extremamente violento, taciturno, que fala mais por seus deploráveis
gestos que por palavras.
Completando o
fabuloso elenco, resta citar o
trabalho de RAÍZA PUGET, como LULU, que, a despeito de uma
participação mais parcimoniosa, na trama, talvez seja das que mais contribuam
para a “obscuridade” (motivo maior
para a desaprovação da peça, quando de seu lançamento, por parte do público e
da crítica) do texto. Uma ótima
participação da atriz!
A propósito,
podemos considerar como membro do elenco,
o excelente pianista ANDRÉ POYART, que é o responsável pela trilha sonora da peça, incluindo alguns
“hits”, executada ao vivo, e que o diretor
achou por bem – outro grande acerto – manter em cena, ainda que sem destaque ao
alcance da vista do espectador, ao alto. Muitos nem o percebem.
GUSTAVO PASO também assina o cenário da peça e o faz de forma muito
apreciável. Os elementos cenográficos caminham paralelamente ao clima proposto
pelo texto, dialogando com o que há
de mais decadente naquele universo. PASO
optou por cores sóbrias, mais escuras, em tons “apastelados”, que evidenciam o
desgaste do ambiente, o qual, metaforicamente, está atrelado às vidas de todos
os que por ele circulam. Há um quê de bolor no ar, de deteriorado ou estragado;
podre. Toda ação se passa numa sala, onde são feitas as refeições, como numa
pensão mesmo, contígua à uma cozinha, que fica à mostra.
Merecem
destaque os ótimos figurinos, de LUCIANA FÁVERO, também incorporados ao
clima da peça, alguns deles ganhando realce, por certos detalhes, como os relacionados
à personagem LULU e o ridículo e pueril
vestido que MEG resolve usar durante
a festa de aniversário, pondo em relevo a sua mediocridade e alienação.
Que
inteligente e adequada a iluminação,
de BERNARDO LORGA, permitindo
sombras, que dificultam, em determinadas cenas, uma visualização nítida dos
personagens, envolvidos na nebulosidade que os caracteriza! BERNARDO optou, com precisão, por uma
luz fraca, que não tem a intenção de pôr em relevo as imagens que não merecem
ser tão expostas, por feias que são, pelo tanto que incomodam.
FICHA TÉCNICA:
Texto:
Harold Pinter
Tradução:
Alexandre Tenório
Direção:
Gustavo Paso
Elenco:
Andrea Dantas, Rogério Freitas e Marcos Ácher.
Apresentando:
Alexandre Galindo, Guilherme Melca e Raíza Puget.
Cenário:
Gustavo Paso
Figurinos:
Luciana Fávero
Iluminação:
Bernardo Lorga
Trilha
Sonora: André Poyart
Programação
Visual: Thiago Ristow
Idealização:
Alexandre Galindo
Direção
De Produção: Alexandre Galindo e Luciana Fávero
Administração
da Temporada: André Roman
Assessoria
de Imprensa: Duetto Comunicação
Realização:
Gênese Produções
SERVIÇO:
Temporada:
De 12 de setembro a 25 de outubro de 2017.
Local:
Teatro Poeira
Endereço:
Rua São João Batista, 104, Botafogo – Rio de Janeiro.
Lotação:
134 lugares.
Telefone
da Bilheteria: (21) 2537-8053.
Dia
e Horários: 3ªs e 4ªs feiras, às 20h30min.
Duração:
80 minutos.
Classificação
Etária: 16 anos.
Gênero:
Comédia.
“A FESTA DE ANIVERSÁRIO” é um presente – perdão pelo trocadilho, ou
algo parecido – que recebemos, os amantes do bom TEATRO, e, evidentemente, uma das melhores montagens em cartaz, no
momento.
É bom que se diga que, ainda que
escrito há 60 anos, este texto continua atual, instigante e
mexendo com a cabeça dos espectadores.
Não é TEATRO digestivo, ainda que classificado como “comédia”, só para fazer rir. O riso que ele provoca é fruto de um
nervoso, por parte do espectador, por se sentir impotente, diante das situações
de que está sendo testemunha.
Vá ao Teatro Poeira, sem se arvorar de dono da verdade e aberto ao debate
consigo mesmo.
Recomendo muito o espetáculo!
(FOTOS:
DIVULGAÇÃO / DUETTO COMUNICAÇÃO.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário