quarta-feira, 9 de novembro de 2016


LILI

 

 

(POR AMOR OU...

ou

UMA QUESTÃO DE GÊNERO.)

 
 
 

            Há histórias que parecem ficção, e não o são. Histórias incríveis, principalmente pela época em que aconteceram. A de LILI ELBE, por exemplo, é algo que merece muita atenção e respeito. As considerações que traçarei sobre um belíssimo espetáculo de TEATRO, “LILI”, em cartaz, no Mezanino do SESC Copacabana, têm LILI ELBE como fonte de inspiração e de criação, já que a concepção dramatúrgica se baseou em seus escritos, reunidos num diário, publicado em 1931.

LILI, cujo nome de batismo era EINAR WEGENER, nasceu na Dinamarca, em 28 de dezembro de 1882, e morreu em Dresden, na Alemanha, no dia 13 de setembro de 1931, aos 49 anos de idade. Artista plástica de sucesso, LILI tornou-se conhecida, por ser, ao que tudo indica, a primeira mulher transexual a submeter-se a uma cirurgia genital, após a qual ela, legalmente, abandonou seu nome de nascimento e adotou a identidade LILI ILSE ELVENES. Mesmo com seu talento, decidiu abandonar a pintura, numa tentativa de “enterrar”, para sempre, qualquer vestígio de sua antiga identidade, como EINAR.
 
 
 
 
Embora, por suas características físicas, lhe tenha sido atribuído, ao nascer, oficialmente, o sexo masculino, era, na verdade, intersexual, por apresentar características tanto masculinas como femininas. Casou-se, aos 21 anos de idade, em 1904, com outra mulher, GERDA GOTTLIEB, esta com 19, tendo sido o casamento anulado, depois da transição de gênero, e reconhecida, legalmente, a sua identidade como mulher. Ambas trabalhavam como ilustradoras: ELBE especializada em paisagens e GERDA ocupava-se em fazer ilustrações para livros e revistas de moda 
ELBE se vestiu com roupas consideradas femininas, pela primeira vez, quando GERDA não encontrou uma modelo para fazer uma ilustração, sendo recorrente, desde então, seu apoio à fluidez do marido entre os gêneros.
LILI ELBE faleceu em consequência de complicações pós-operatórias, que surgiram meses após sua quinta cirurgia de readequação sexual (mudança de sexo), numa tentativa de transplante de útero.
Em 2015, foi produzido um filme sobre a sua vida, que fez muito sucesso e que, no Brasil, ficou conhecido como “A Garota Dinamarquesa” (“The Danish Girl).


 



 
SINOPSE:
 
Em cena, os atores DARWIN DEL FABRO (EINAR WEGENER / LILI) e SUZANA CASTELO (GERDA GOTTLIEB) contam uma surpreendente, linda e comovente história de amor, tolerância e cumplicidade entre dois artistas plásticos, a qual tem, como foco principal, a transformação de identidade do marido, EINAR, para se transformar em LILI ELBE, conhecida como uma das primeiras pessoas a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo, se não for a pioneira, no início do século 20.
 
“LILI” se concentra na história de amor, arte e identidade dos já citados artistas EINAR WEGENER (1882-1931) e GERDA GOTTLIEB (1889-1940) – ele, um homem, que ousou seguir o seu desejo mais profundo e transformou-se numa mulher, e ela, uma mulher à frente do seu tempo, que o apoiou incondicionalmente. 
 
Tendo, como pano de fundo, os anos 1920/30, a peça mergulha na história de um casamento incomum, que transcendeu os limites de sexo e gênero, numa época em que pouco se compreendia sobre a transexualidade e as diferentes identidades de gênero.
 
Mais do que falar destes dois artistas, a peça fala da relação entre eles, de como a transformação do artista EINAR na mulher LILI vai dando novo significado à história de amor entre os dois – ou as duas - e de como a arte vai contribuindo para essa repactuação entre elas.
 
“LILI” pretende refletir sobre este jogo que se estabelece entre os dois personagens e que transcende todos os limites do, então, socialmente aceito.
 

 
 
 
 

            Vivemos um momento em que tudo o que gira em torno do tema “identidade de gênero” desperta interesse e curiosidade, gerando discussões e reflexões, com o objetivo de diminuir ou, se possível, ainda que utópico, esclarecer todas as dúvidas, sobre o assunto, que existem, e que são muitas, entre pessoas de todas as origens e formações culturais, o que significa que o espetáculo em tela é de uma importância mais que relevante. “O amor de GERDA e EINAR, ou o amor de GERDA e LILI, ampliou, há quase 100 anos, a compreensão do público da época sobre a questão de identidade de gênero”.
     Não assisti ao filme, porém, por uma enorme coincidência, uma amiga o fez, pela TV a cabo, poucos dias antes de irmos ver a peça, tendo ficado muito empolgada com a fita e me contado o enredo. Fiquei, também, bastante curioso pelo espetáculo teatral e surpreendido, não pela história, em si, mas pela época em os fatos aconteceram e por toda a compreensão e o apoio que a mulher de EINAR / LILI lhe deu, para que pudesse se realizar, como mulher.

            Pareceu-me, pela peça, que o desejo “insano” de LILI, para os padrões da época, de se assumir, esteticamente, fisiologicamente, como mulher se ligava mais a uma autoafirmação, quanto ao gênero que mais pesava, na sua balança interior, do que, propriamente, ao sexo, para a prática do sexo, no papel feminino. Na relação entre o casal - reforço que só estou me referindo à peça –, percebe-se muito mais carinho, ternura, cumplicidade, entre os dois, do que uma atração físico-sexual, recíproca, nos papéis de macho e fêmea ou, até mesmo, do ponto de vista da homoafetividade.

            Recentemente, comentando a peça, com um amigo, pensei numa possibilidade da existência de alguma patologia ou fetiche, por parte da esposa, ideia esta que, até agora, dentro da minha cabeça, está duelando com a crença de que ela concordou em participar dos planos do marido, assim como, da forma mais natural possível, o aceitou como ele era, ou quem ele era (na verdade, ELBE já se dera conta de sua real condição genérica desde muito antes) por amor a ele. Fica, para mim, um pouco de dúvida. Se, confirmada a segunda hipótese, trata-se, realmente, de algo mais que inusitado, para os padrões sociais da época, rendendo, a GERDA, todo o meu respeito e admiração. Acho que é mais um viés a ser discutido, na trama.


 


Considero, por experiência própria, que a adaptação de uma obra literária, ou algo do gênero, para os palcos, não é nada fácil. Passar toda a emoção e os detalhes de uma narrativa para diálogos carece de muita técnica e experiência, o que não falta a WALTER DAGUERRE, que, mais uma vez, com sua dramaturgia, marca um gol de placa neste trabalho. São curtos e dinâmicos, sob a ótica da compreensão, os diálogos, carregados, porém, de muita expressividade, às vezes, deixada nas entrelinhas.
 

 


A direção, de SUSANA RIBEIRO, está afinada no mesmo diapasão utilizado por DAGUERRE. Existe uma total integração entre o que o dramaturgo quer passar e o trabalho executado pela direção, para que tal intento fosse alcançado. SUSANA prendeu-se a uma proposta de interpretação mais minimalista e desprovida de qualquer excesso, quer nas marcações, quer nos gestos e nas expressões dos actantes. Optou por explorar, ao máximo, um ar de leveza, de delicadeza, de pureza de que a história se reveste. Há cenas, concebidas pela diretora, de uma beleza ímpar, de um lirismo superlativo, que faz do espetáculo uma inesquecível encenação.

Quanto aos atores, DARWIN DEL FABRO e SUZANA CASTELO, idealizadores do projeto, no que diz respeito à atuação do casal, não são necessárias muitas palavras, não preciso de uma adjetivação abundante, para dizer que ambos estão perfeitos em cena, em interpretações comoventes, convincentes e brilhantes.

As expressões, faciais e corporais, de DARWIN alcançam um limite de perfeição, que o tornam uma mulher, de forma natural, sem o histrionismo, presente na maioria dos travestis. Sim, porque, para LILI, o ser mulher, antes do plano físico, já existia, no(a) personagem, de forma assumida, como identidade de gênero. O caricato não passa nem pela calçada do SESC Copacabana.

SUZANA CASTELO, amiga de longa data de DARWIN, também compôs a personagem bem próximo ao que ela parece ter sido, na vida real. Ambos se complementam, em harmonia cênica. Os sentimentos, todos bons, transbordam na atuação da dupla.


 


Com o objetivo de embalar as cenas, foi muito acertada a escolha de RICCO VIANA, para compor a música original e assumir a direção musical do espetáculo.

A delicadeza dos gestos, seu ritmo, o deslocamento dos atores, em cena, identificam a marca do lindo trabalho de direção de movimento de RENATO VIEIRA, sem dúvida alguma, um dos pontos altos da peça.

A cenografia, assinada por BELI ARAÚJO, inspirada na obra da grande artista plástica Lygia Pape, é prova de como o simples pode ser belo e significativo. Em forma de uma instalação, sem nenhuma sofisticação, os vários “quadros”, feitos com fitas elásticas, pendentes, esticadas, lado a lado, verticalmente, dialogam com a correta iluminação, de RODRIGO BELAY. Em cena, ainda, um belo canapé, uma réplica de um móvel de época.

Esses dois elementos plásticos da peça correm numa fluência estético-poética, complementada pelos lindos figurinos, de ANTONIO MEDEIROS, leves e delicados, em tons pastéis, não, propriamente, reproduzindo as roupas, masculinas e femininas da época, porém concebidos, com total liberdade, apenas com alguns toques, percebidos em detalhes que fazem referências à época.
 
 
 




FICHA TÉCNICA:
Texto: Walter Daguerre
Direção: Susana Ribeiro
 
Elenco: Darwin Del Fabro e Suzana Castelo 
 
Música Original e Direção Musical: Ricco Vianna 
Direção de Movimento: Renato Vieira 
Cenografia: Beli Araújo
Figurinos: Antônio Medeiros 
Iluminação: Rodrigo Belay 
Preparação vocal: Rose Gonçalves
Criação de Acessórios: Paulo Bijoux
Programação Visual: Andréa Batitucci
Produção Audiovisual: Bruno Heitor
Mídias Sociais: Leo Ladeira
Fotografia: Lúcio Luna e Emmanuelle Bernard 
Preparação Corporal: Manoela Cardoso
Coach” de Pintura: Pablo Ferretti 
Orientação Fonoaudiológica: Verônica Machado 
Direção de Produção: Alice Cavalcante – Sábios Projetos 
Produção Executiva e Assistente de Direção: Luísa Reis 
Idealização e Produtores Associados: Darwin Del Fabro e Suzana Castelo 
Realização: Sábios Projetos e SESC Rio 
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação - João Pontes e Stella Stephany
 

 

 

 

 
SERVIÇO:
 
Temporada: De 2 a 20 de novembro
Local: SESC Copacabana - Mezanino
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160 Copacabana / Rio de Janeiro
Tel: (21) 2547-0156
Dias e Horários: De 4ª feira a sábado, às 21h, domingo às 20h (Excepcionalmente, no dia 12 de novembro, haverá sessões às 18h e às 21h, e, nos dias 19 e 20 de novembro, as sessões serão às 18h.
Valor do Ingresso: R$20,00 (inteira), R$10,00 (meia-entrada) e R$5,00 (comerciários)
Horári de Funcionamento da Bilheteria: De 3ª feira a domingo, das 15h às 21h
Capacidade: 70 lugares
Duração: 75 mintos
Gênero: Drama
Classificação Etária: 16 anos
 



 



            Ousadia e coragem não faltaram aos protagonistas da história, porém também estão presentes, intensamente, em DARWIN e SUZANA, quando idealizaram este lindo espetáculo, que prima pela simplicidade e beleza, dois elementos que o credenciam a fazer parte da lista das boas produções da safra de 2016, motivo pelo qual eu o recomendo, e com muito empenho.
 
 
 




(FOTOS: LÚCIO LUNA

e EMMANUELLE BERNARD.)
 
 
 
 
 

(Arquivo particular: Com Darwin Del Fabro,
Renato Mello e Suzana Castelo
- foto de Marisa Sá.)

 



 



 

 

 

 

 

 

 

 

 
 

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