quarta-feira, 22 de outubro de 2014


REI LEAR

 

 

 

(“QUE REI SOU EU, SEM REINADO E SEM COROA?  SEM CASTELO E SEM RAINHA, AFINAL, QUE REI SOU EU?” - Herivelto Martins)

 

 

 


 

 

 

            É um monólogo?  Sim. 

 

Mas é um SHAKESPEARE?  Sim. 

 

Então, não pode ser!!!

           

Pode, sim, é excelente e está em cartaz no Teatro dos Quatro (ver SERVIÇO, ao final desta resenha).  E só pôde ser possível a concretização desse projeto, graças à reunião de três grandes talentos (SHAKESPEARE é “hors-concours”): GERALDO CARNEIRO, ELIAS ANDREATO e JUCA DE OLIVEIRA.

           

O espetáculo é REI LEAR, uma das obras-primas do bardo inglês, tragédia muito longa e dividida em cinco atos, transformada, nesta versão, num monólogo que dura apenas 60 minutos, o suficiente para que a história do rei da Bretanha, que abriu mão de sua realeza e de todos os seus bens materiais a favor de duas das três filhas e que acaba por ser traído por elas, seja contada.

 

 

Juca de Oliveira

 

Juca de Oliveira / Rei Lear.

 

 

            Sem muita coragem e excessivo talento, não se pode ousar tanto.  Neste ano, um outro trabalho semelhante (uma tragédia shakespeariana, transformada em monólogo, com o único ator fazendo quase todos os personagens, já marcou o ano teatral de 2014: Ricardo III, adaptado por Gustavo Gasparani e Sérgio Módena, irretocavelmente, interpretado pelo próprio Gasparani, que faz 21 dos 54 personagens da peça.
 

Agora, é a vez de JUCA DE OLIVEIRA brilhar, em trabalho similar, se bem que, nesta adaptação, menos da metade dos cerca de 20 personagens “aparecem” em cena, sem que isso, em nada diminua a insuperável qualidade da experiência.  Além do protagonista, o ator vive mais cinco personagens: as três filhas (GONERIL, REGAN e CORDÉLIA), além do BOBO (sua consciência e o único capaz de lhe chamar a atenção, com relação a seus erros, sem correr o risco de perder o pescoço) e do nobre KENT (CAIO).
 

A peça foi escrita, pelo que se supõe, em torno de 1604/1605 (cerca de dez anos antes de morrer seu autor, numa fase de grande maturidade como escritor) e já foi adaptada, repetidas vezes, para o teatro e o cinema.    

 




 



Montar uma peça de SHAKESPEARE, hoje, como a escreveu o dramaturgo, é um desafio muito grande, para atores, diretores e produtores, visto que seus textos reúnem muitos personagens / atores, são extremamente longos e escritos em linguagem rebuscada, normalmente em versos, e, infelizmente, em função de vários fatores, o grande público não se volta muito para esse tipo de espetáculo.  Apenas uma minoria sabe apreciar o talento do autor e encontrar prazer em assistir à encenação de um de seus textos, até mesmo se comédia for, no original.


            Algumas pessoas não aceitam a proposta de se adaptar uma obra de qualquer autor, menos ainda de um dos expoentes máximos da dramaturgia universal, e já ouvi alguém dizer que teme que, de agora em diante, só se faça uso desse artifício para se levar um SHAKESPEARE à cena.  Não engrosso esse bloco.  Acho que sempre haverá idealistas e corajosos produtores, diretores e atores para a montagem de um “original”, e não vejo nada de errado em tais adaptações, desde que sejam bem feitas, como a que serve, agora, de análise e a citada Ricardo III.

 

            Em 60 anos de palco, JUCA DE OLIVEIRA, seguramente, um dos maiores atores brasileiros, já teve, antes, a oportunidade de representar o grande autor três vezes: atuou em Júlio César (1966), interpretando Marco Antônio; Ricardo III (1975) e Othello (1982), estas como protagonista, outros três belíssimos trabalhos, dos quais (os dois últimos) guardo belas recordações, que não se apagaram, nem se apagarão, com o tempo.

 

 



 


 


 

 


 

 
 
SINOPSE:
 
[][]LEAR, o idoso rei bretão, decide dividir o reino entre suas três filhas: GONERIL, esposa do Duque de Albany; REGAN, esposa do Duque da Cornualha; e CORDÉLIA, sua favorita, que tinha por pretendentes o Rei da França e o Duque da Borgonha.  Para calcular a partilha, pede às filhas que expressem a gratidão e o amor que sentem por ele, pelo pai.  GONERIL e REGAN, gananciosas e falsas, fazem discursos aduladores, em que afirmam que o amam mais que qualquer coisa no mundo.  CORDÉLIA, por outro lado, sensata e verdadeira, contraria as expectativas do rei e afirma que o ama "como corresponde a uma filha, nada mais, nada menos".
  
Irritado com essa resposta, LEAR deserda-a e expulsa-a do reino, entregando-a, sem dote, ao Rei da França, que a aceita assim mesmo, por amá-la de verdade.  KENT intercede por CORDÉLIA e também termina banido, entretanto, em vez de partir para o exílio, retorna ao reino, disfarçado de CAIO, e põe-se ao serviço de LEAR, quando este se encontrava na corte de GONERIL.

De acordo com o trato entre o pai e as duas filhas herdeiras, o rei deveria ser atendido por uma corte de cem cavaleiros e alternaria a hospedagem na casa de cada uma de suas filhas, a cada mês.  GONERIL, porém, reduz o número de serviçais do rei “aposentado” e impõe que as ordens deste sejam ignoradas pelos serviçais.  LEAR se enfurece contra a filha ingrata e busca refúgio nos domínios de REGAN, sem saber que as duas estão mancomunadas, contra ele, conspitando contra sua integridade física e moral.
  
Pai e filhas se reencontram, tempos depois, na casa do CONDE DE GLÓCESTER, onde o rei rompe, definitivamente, com as filhas, após se certificar da traição e ingratidão das duas.  O velho rei é expulso da casa, na companhia apenas do seu BOBO e de KENT / CAIO.
  
Uma grande tempestade desaba sobre o rei e seu esquálido séquito.  LEAR, já mostrando sinais de loucura, refugia-se numa cabana, guiado por Glócester, que não pode suportar a maneira como as filhas tratam o pai.
 
O ex-monarca, agora completamente louco, é guiado, por KENT, ao reencontro com CORDÉLIA.  Com a razão parcialmente recuperada, ele tem vergonha do seu comportamento anterior, mas CORDÉLIA, muito cordata, não mostra nenhum rancor em relação ao pai e lhe perdoa.  Reconciliam-se.

Nesta interessantíssima versão, o tradutor e adaptador optou por terminar a peça com um “happy end”, desprezando as várias mortes que acontecem no original, incluindo a do REI LEAR e as das três filhas.
 


 

 




 

 

 


 

 

 


 

 

 


 

 

 

 

ALGUMAS OBSERVAÇÕES PERTINENTES SOBRE O ESPETÁCULO:

 

 

1) Não há como negar que REI LEAR é mais do que contemporâneo, se considerarmos que SHAKESPEARE criou um texto rico e complexo, que trata das grandes forças motrizes da humanidade, ontem, hoje e sempre, como o ódio, o amor, a compaixão, a lealdade, a cobiça, a ingratidão e a traição.  Ainda que escrita no século XVII, o que se vê, em REI LEAR, ainda permanece atual, numa comparação entre a atitude das duas filhas do velho REI com as de muitos filhos e filhas de hoje, que continuam expulsando de casa os velhos pais, para encarcerá-los em asilos, visitando-os ou não, até a morte.  A velhice, ou melhor, como ela é tratada nos nossos dias, é um mote que permeia a peça do início ao fim.

 

2) Como uma das justificativas para a grande aproximação entre o palco e a plateia, LEAR está presente nos dias de hoje, como um pai comum.  Poderia estar na pele de um poderoso empresário, rico e influente, que constrói um império, uma fortuna, que lhe assegura um poder e, de repente, ao atingir a maturidade de seu poder, vê-se na contingência de abrir mão de seu “status”, muitas vezes, de forma insana ou, pelo menos, descuidada, a favor de herdeiros, que acabam por dilapidar um império tão difícil de ser construído.

3) O grande protagonista desta história é, ao mesmo tempo, o sujeito da narrativa, ora agente, ora paciente; ora narrador de sua saga, ora protagonista dela.

 

4) Leva-se, da peça, uma grande lição.  Como grande conhecedor e estudioso da alma humana, talvez o grande primeiro “psicanalista” da História, SHAKESPEARE, (in)diretamente, nos aconselha a que os pais jamais deveriam transferir, em vida, seus bens para o nome dos filhos.  É uma lição cruel a ser aprendida, ainda hoje, pela pena do genial dramaturgo, por meio de seu REI LEAR.

 

5) Dois momentos são marcantes nesta encenação.  O primeiro é quando o REI, depois da grande decepção com as duas filhas, desafia as forças da natureza e clama aos deuses que não poupem as ingratas de toda sorte de maldição.  O ator transforma-se, de uma maneira comovente, num ser vingativo, o que demanda uma forte dose de emoção, presentes na expressão corporal e facial, assim como no tom de voz.  O público fica tenso durante a cena, o que é, obviamente, muito bom, sinal de que a verdade jorra das palavras e ações do grande ator JUCA DE OLIVEIRA.  O outro é o reencontro com CORDÉLIA e a troca de perdões e carinho entre pai e filha, o renascimento da esperança.  Da mesma forma forte, por outro viés, a cena também provoca muita comoção no público.

 


 

Rei Lear-Juca de Oliveira

 

 


6) Todos os elogios feitos à tradução e adaptação de GERALDO CARNEIRO serão ainda insuficientes.  Ele conseguiu, com muita propriedade, atingir um equilíbrio entre o clássico vocabulário original e inserções linguísticas mais próximas à nossa realidade, sem macular o original, utilizando um vocabulário, ao mesmo tempo, refinado e simples, objetivo, que se presta, de forma natural, à compreensão do texto por parte de qualquer indivíduo de inteligência e sensibilidade consideradas normais.  Tive a grata oportunidade de cumprimentá-lo pessoalmente, visto que estava sentado à minha frente, visivelmente emocionado, no dia da sessão para convidados.

 

7) A correta e brilhante direção de ELIAS ANDREATO, como já vi acontecer em espetáculos anteriores, dirigidos por ele, opta pela simplicidade, pela objetividade, transferindo ao ator o foco principal.  Dessa forma, JUCA DE OLIVEIRA, com seu indiscutível talento, dá uma aula de interpretação, permitindo que sejam, facilmente, identificados todos os personagens e momentos em que atuam, por meio de variadas expressões faciais e corporais, associadas a diferentes vozes.  Quando o ator se apresenta como o REI LEAR, consegue passar, de forma transparente, a figura do monarca confuso, angustiado, insano e cercado de inescrupulosos inimigos.  Da mesma forma, conduz cada um dos outros personagens que representa.

8) Merece um destaque o fato de que toda emoção e energia que partem do palco, em direção à plateia, são construídas sem o auxílio de qualquer elemento de cena – cenário (FÁBIO NAMATAME) -, a não ser uma cadeira simples, onde o personagem inicia sua atuação e a termina, assumindo uma mesma postura.  Em compensação, tudo é posto em relevo por uma boa iluminação, de WAGNER FREIRE, a qual cria ambientes e momentos de nebuloso mistério, em memoráveis efeitos plásticos.

9) Combina com tudo o figurino correto, também de FÁBIO NAMATAME, que apresenta um rei sem coroa, sem trono nem a postura da realeza.  O visagismo do personagem, certamente de propósito, o aproxima de um homem comum.

10) É excelente a trilha sonora assinada por DANIEL MAIA.

 


 

 

 


 

 


 
                                                     FICHA TÉCNICA:

Texto: WILLIAM SHAKESPEARE
Tradução
e Adaptação: GERALDO CARNEIRO
Elenco: JUCA DE OLIVEIRA
Direção: ELIAS ANDREATO
Assistente de Direção: ANDRÉ ACIOLI
Figurino e Cenário: FÁBIO NAMATAME
Iluminação: WAGNER FREIRE
Preparação Corporal: MELISSA VETTORE
Trilha Sonora: DANIEL MAIA
Fotografia: JOÃO CALDAS FILHO
Logo: ELIFAS ANDREATO
Programação Visual: VICKA SUAREZ
Making-Off: REMBRANT ARTS
Gestão de Patrocínios: AT Cultural
Produção Rio: GÁVEA FILMES – BIANCA DE FELIPPES
Produção Executiva RJ: GABRIEL BORTOLINI
Direção de Produção: KEILA MÉGDA BLASCKE
Assessoria de Imprensa: JSPONTES COMUNICAÇÃO – JOÃO PONTES
e STELLA STEPHANY
 

 

 



 

 

 


 

 

 


 

 

 

 

SERVIÇO:
 
TEATRO DOS QUATRO (Shopping da Gávea – 2º piso)
 
Horários: De quinta-feira a sábado, às 19h.
Domingo, às 18h30min. 
 
Temporada até 30 de novembro.


 

 


 


 

 


 

Considero este espetáculo um grande presente de Natal antecipado, digno do nome de WILLIAM SHAKESPEARE.

 

 

(FOTOS: JOÃO CALDAS FILHO)

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