sábado, 29 de março de 2014

FIM DE PARTIDA

 

(INÍCIO DE UM FIM QUE NUNCA CHEGA.)

 


 

 

 


ADRIANA SEIFFERT

 

 

            Que SAMUEL BECKETT é um dos ícones da dramaturgia mundial e que FIM DE PARTIDA (ENDGAME), de 1957, é um dos seus textos mais reconhecidos e encenados no mundo inteiro não é nenhuma novidade. 

            Que a companhia ALFÂNDEGA 88 é pra lá de competente - prova disso foi o sucesso de seu projeto de ocupação (ou residência artística), por quase dois anos, no Teatro Serrador (2011 / 2013), com montagens brilhantes e inesquecíveis - também é do conhecimento de todo mundo que aprecia o bom TEATRO.  Assisti a todas as montagens da companhia, durante esse período; algumas, até mais de uma vez.

            Mas ver quatro atores, esbanjando talento na atual montagem de FIM DE PARTIDA, que, infelizmente, encerra sua temporada no Teatro Ipanema, na próxima semana, 2 e 3 de abril, às 21h, é algo que mexe com a sensibilidade e o senso crítico de qualquer pessoa que ama TEATRO, principalmente por se tratar de um texto muito hermético e, portanto, de difícil montagem.

            Ainda que, ao se ouvir falar de BECKETT, ato contínuo, venha à nossa mente seu carro-chefe, ESPERANDO GODOT, FIM DE PARTIDA talvez seja seu texto mais interessante e emblemático, por reunir o elemento trágico ao cômico mordaz, por meio de uma arquitetura dramática invejável e singular. 

BECKETT é um dos mais representativos sócios do clube do TEATRO DO ABSURDO, ao lado de ALFRED JARRY, considerado o precursor do movimento, EUGÈNE IONESCO (talvez o “sócio 01”), ARTHUR ADAMOV, HAROLD PINTER, FERNANDO ARRABAL, até JEAN GENET e EDWARD ALBEE, uma seleção nada “fraca”.

 

 


RAFAEL MANNHEIMER e LEONARDO HINCKELL

 

 

            A peça se passa no período pós-guerra (2ª Guerra Mundial) e conta a história de HAMM e CLOV, confinados a um espaço, num abrigo à beira-mar, apenas com duas pequenas janelas, que se voltam para um quase nada, um mundo destroçado, quase destruído, e inóspito.  O espectador, via de regra, compartilha do desconforto ao qual os personagens estão submetidos, entretanto, diferentemente do que ocorreu comigo, em montagens anteriores, nesta, não me senti claustrofóbico.  Pelo contrário, do início ao fim do espetáculo, fiquei muito à vontade, e na primeira fila, a menos de três metros da “clausura”.

Propriamente enlatados, os dois protagonistas travam diálogos herméticos, desconexos, sobre a condição humana, a solidão e a antirrelação que estabelecem entre si e entre os dois mundos que os separam.

HAMM, um artista fracassado, cego e paralítico, é o “chefe” e comanda o patético e trágico universo da peça.  CLOV, um misto de escravo e filho de HAMM, vive ameaçando seu “senhor” de ir embora, promessa que nunca cumpre e que não fica claro ser sua real intenção (acho que não o é).  É seu serviçal e sofre de uma curiosa doença, que não lhe permite sentar-se (?).  Há, entre os dois, uma relação de justificável interdependência, de bastante sadismo, de mórbida banalidade, de cumplicidade doentia, de paradoxal amor/ódio, o que torna o texto, de certa forma, ambíguo, no sentido de provocar, no espectador, leituras diversas sobre os dois personagens. 

 

 


RAFAEL MANNHEIMER

 

 

 


RAFAEL MANNHEIMER

 

 

NAGG e NELL, pais de HAMM, também têm mutilações e vivem, metaforicamente, dentro de galões, limitados a um microcosmo geográfico, dentro de um outro microcosmo, presos à memória de um tempo que já se foi, em relação a um outro, que se mantém imutável e que parece estar sempre aquém do fim.

“Vítimas” de uma hecatombe emocional, os quatro personagens dividem um abrigo e tomam conhecimento do mundo, lá fora, não muito diferente do ambiente em que “vivem”, ou do que restou dele, pela luneta de CLOV.  Estão em “fim de partida” (“partida”, ambiguamente, no sentido de “um jogo”, o da vida, ou de “uma “ida”, certamente, sem volta), no limite de suas condições humanas ("desumanas" ficaria melhor), procurando um fim “que não chega nunca” (Ou será que já chegou e ninguém percebeu?).

            Mergulhar no universo beckttiano, traduzir, com precisão, seu pensamento, por vezes, impreciso, e conduzir um elenco a uma satisfatória representação de um dos textos desse grande dramaturgo é tarefa desafiadora, cujo resultado muito me encantou, pela cabeça e pelas mãos de uma bem jovem diretora, DANIELLE MARTINS DE FARIAS, que conta com todo o meu respeito e admiração como profissional.

            Ótima é a tradução, de FÁBIO DE SOUZA ANDRADE, outra tarefa dificílima, uma vez que o texto foi escrito, originariamente, em francês e, depois, vertido para o inglês, pelo próprio autor.  Não sei de que idioma FÁBIO se valeu para fazer a tradução.

 

 


ADRIANA SEIFFERT, SILVANO MONTEIRO e LEONARDO HINCKELL

 

 

 


ADRIANA SEIFFERT e SILVANO MONTEIRO

 

 

            A iluminação, do mestre AURÉLIO DE SIMONI, o cenário, de SÉRGIO MARIMBA, e os figurinos, de RAQUEL THEO são elementos muito importantes nesta montagem, por sua excelência.

            Mas o que fez, mesmo, eu me deixar levar sobre nuvens, ao sair do teatro foi o trabalho de interpretação de um incrível quarteto de atores: ADRIANA SEIFFERT (NELL), LEONARDO HINCKELL (HAMM), RAFAEL MANNHEINER (CLOV) e SILVANO MONTEIRO (NAGG).  Meus caros, vocês não têm ideia do quanto me tornei admirador do talento de vocês (conhecia mais o trabalho da ADRIANA) e do quanto lhes sou grato pelo incomensurável prazer que me proporcionaram, na pele daqueles personagens.           

            Já havia assistido, nos meus 64 anos de vida, a algumas montagens de FIM DE PARTIDA, entretanto nenhuma delas me causou tanto deslumbramento e impacto quanto esta. Saí do Teatro Ipanema em total estado de graça.  Além de o texto ser um clássico da dramaturgia universal, a direção é brilhante e o trabalho dos atores é digno, como foi, dos meus prolongados aplausos, de pé, na primeira fila.

 

 


SILVANO MONTEIRO, LEONARDO HINCKELL e RAFAEL MANNHEIMER

 

 



Muito obrigado pelo magnífico espetáculo que tive diante dos meus olhos e ouvidos.

Parabéns!

Parabéns!

Parabéns!...

 

E que nunca nos esqueçamos de que, como disse o próprio BECKETT, “O fim está no princípio e, no entanto, prosseguimos.”

 


LEONARDO HINCKELL

 




 

           

(FOTOS: DIVULGAÇÃO/PRODUÇÃO DO ESPETÁCULO)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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