A BALA NA AGULHA
(BATALHA DE EGOS ou DUELO ENTRE UM
REVÓLVER E MUITAS PALAVRAS.)
Nada pode ser mais prazeroso do que ir a um teatro,
tendo de ficar engarrafado por 2 horas e 15 minutos (desesperador), cheio de
expectativa por um espetáculo e, depois de 70 minutos, sair de lá em total
estado de graça, uma vez que a peça superou, em muito, aquela expectativa. Foi
o que ocorreu na última 5ª feira (20/03/2014), depois de ter visto A BALA NA AGULHA, um texto primoroso de
NANNA DE CASTRO, dirigido, excepcionalmente,
por OTÁVIO MARTINS, interpretado por
um trio de atores que me representam:
o brilhante EDUARDO SEMERJIAN; um
jovem, não menos competente, JÚLIO
OLIVEIRA; e uma grande dama da cena brasileira, infelizmente, tão bissexta
entre nós, cariocas, DENISE DEL VECCHIO.
Não tenho o hábito de recorrer a sinopses alheias;
faço-as, de próprios dedos e teclado, de acordo com a minha decodificação do enredo,
entretanto, contando com a generosidade e a compreensão de quem redigiu a que
consta no programa da peça, por considerá-la perfeita, tomo a liberdade de
transcrevê-la, com mínimas adaptações, antes de iniciar minhas considerações
sobre o espetáculo:
“A
BALA NA AGULHA” é a história do embate entre um grande “ATOR” de TEATRO, que chegou aos 60 anos doente,
sem dinheiro e esquecido, e um jovem “ator”, galã, que desponta, com enorme
sucesso, na TV. Durante uma peça que
estão representando, o ator mais velho, CHICO
VALENTE, aponta uma arma para o jovem ator, CADU, e o obriga a duelar com ele pela própria vida, numa espécie
de “reality show”, onde apenas o melhor ator sobreviverá. CÉLIA
DE CASTRO, atriz que está na plateia, antiga amiga de CHICO
e atual colega de trabalho de CADU,
na televisão, sobe ao palco para tentar intermediar o conflito e evitar o pior.
Mas o envolvimento afetivo dela com CHICO, no passado e, no presente, com CADU, torna-se mais um ingrediente
explosivo neste duelo entre a maturidade e a juventude, o permanente e o
descartável, a tradição e a inovação, a entrega por amor e as estratégias em
busca do sucesso. Um drama
carregado de humor mordaz e ironia, com uma linguagem enxuta e ágil, que coloca
a plateia dentro da trama e a surpreende a cada momento.
Já assisti a vários espetáculos que se encaixam na classificação de “metateatro”,
entretanto confesso que, até hoje, nunca havia visto essa ideia, que deixou de
ser original faz muito tempo, tão bem explorada e concebida no papel, como
neste texto. Logo, isso o torna muito
original e criativo. No caso, uma
companhia de teatro se propõe a encenar o clássico ESPERANDO GODOT, do mestre Samuel
Beckett. Entretanto, dentro da
encenação, ainda podemos saborear trechos de Henrik Ibsen e Anton Tchekhov. Que luxo!
CHICO VALENTE é um velho ator,
que dedicou a vida ao teatro, mas que está sem dinheiro e esquecido do grande
público. A possibilidade de montar um
clássico da dramaturgia universal reacende nele suas esperanças de voltar a
atuar e a ganhar bem. O problema é que o
escolhido, por CÉLIA (produtora da
montagem), para contracenar com ele é CADU,
um jovem galã da televisão, sem muitas referências culturais ou experiência nos
palcos.
O universo em que corre a trama é o das luzes, dos focos, das
purpurinas, o universo das artes – o TEATRO
e a TV, no caso -, mas poderia ser transposto para qualquer outra atividade profissional,
em que pode ocorrer o “simples” fato de um profissional competente, vencedor, ganhador de
prêmios, porém “velho”, se ver ameaçado pela juventude de um incompetente,
ignorante, protegido e despreparado dono de uma carinha bonitinha e um corpinho
saradão, mas que “vende muito sabonete” (no caso do texto, cursos de
inglês). Esse detalhe pode levar muitos
espectadores a se identificar com algum dos dois contendores. O texto é ótimo, para se discutir o valor do
“mérito” no mundo globalizado e imediatista de hoje. O porquê de se fazer TEATRO de antigamente é o mesmo de hoje? O TEATRO
teria, hoje, o mesmo sentido de ontem? O
público vai ao teatro, hoje, para se informar, se entreter (é claro) e para
refletir? Para ver um bom texto, de um
dramaturgo consagrado, ou para ver, de perto, o seu artista preferido da novela
das oito?
O que se vê em cena, também, é uma velha rivalidade entre algumas
pessoas que circulam no universo de duas mídias: TEATRO ou televisão? O total
emprego das maiúsculas e o detalhe do negrito já são o indício do lado que mais
valorizo, ainda que não deixe de reconhecer o “adversário”. Particularmente, faço, aqui, um pequeno
parêntese, para dizer que reconheço mais o talento de quem representa num
palco, sem desmerecer aqueles que jamais o pisaram, como é o caso de Glória Pires, por exemplo, que parece
ter uma profunda relação de amor eterno com as câmeras, o que não é motivo de
nenhum desmérito, e, segundo consta, já declarou não ter interesse em fazer TEATRO , o que é digno de todo respeito. Por outro lado, existe, sabemos todos, uma
quantidade enorme de atores e atrizes, principalmente os mais jovens, que
despontam, com muito sucesso, na TV, mais por sua plástica do que por seu
talento, e que, quando tentam o palco, é um fracasso. Cada vez que vejo, no TEATRO, um “bonitinho” ou uma “bonitinha”, oriundos da TV, marcando
sua passagem no palco com talento, competência, dignidade profissional, não me
furto a aplaudir de pé e a dizer: Aí
está um/a ATOR/ATRIZ! Felizmente,
isso tem acontecido com boa frequência nos últimos tempos. É o caso, inclusive, do jovem ator que
representa CADU, JÚLIO OLIVEIRA. Pesquisei sobre sua trajetória, sua história
de vida, que achei linda e muito me emocionou (pesquisem vocês também), e sei
que já fez mais de um trabalho televisivo, que nunca tive a oportunidade de
ver, mas, desde que começou a atuar, em A BALA NA AGULHA, imediatamente, constatei que
se tratava de um ATOR. Como isso me deixa feliz!
Um detalhe interessante na escalação do elenco é o fato de que os três
atores apresentam pontos em comum com os personagens, como o fato de EDUARDO SEMERJIAN ser, basicamente, um
ator de TEATRO; JÚLIO OLIVEIRA ter migrado da TV para o TEATRO; e DENISE DEL VECCHIO
ter iniciado sua carreira no TEATRO,
fazendo, depois, simultaneamente, TEATRO
e TV, e saber jogar bem, e marcar muitos gols de placa, nos dois gramados.
NANNA DE CASTRO soube
retratar, muito bem, um tema bastante atual, que permeia o texto, do início ao
fim, que é viver, e sobreviver, num mundo em que a jovialidade é colocada em
primeiro plano e, cada vez mais, as pessoas procuram maneiras eficazes, não
importa se éticas ou politicamente corretas, para retardar o envelhecimento e,
consequentemente o ocaso.
Não sei se o espetáculo foi apresentado, em São Paulo , em teatro de
arena, mas acredito que sim, pois o próprio texto assim o exige. CHICO
VALENTE, ao desafiar o insipiente “ator” para três diferentes embates,
deseja transformar o espaço cênico numa arena cheia de leões, onde o jovem “ator”
será a “vítima” “para o delírio da plateia”.
Durante cerca de 90% da peça, alguém tem uma
arma (revólver) apontada para outrem, o que gera um clima de tensão fantástico,
aproximando atores e plateia. Há uma
ameaça constante de que, a qualquer momento, uma bala sairá do cano e ferirá, mortalmente,
alguém, até um dos espectadores (Quem sabe?).
Há um constante duelo, aparentemente injusto,
no qual alguém sempre levará a melhor, uma vez que só existe uma arma em jogo,
contudo, isso não é verdade, porque a outra arma, que não é física, também está
em cena, representada pelas palavras, às vezes, mais letais que um tiro.
“Bala na
agulha” é uma expressão que pode apresentar
vários significados, como, por exemplo, ao pé da letra, “uma bala já
engatilhada para o disparo” ou, conotativamente falando, as respostas prontas,
que uma pessoa tem, para serem ditas, no momento mais indicado.
Um pouco sobre a ficha técnica:
TEXTO –
NANNA DE CASTRO – nada mais a acrescentar:
excelente.
DIREÇÃO
– OTÁVIO MARTINS – Muito boa. Se o texto faz transbordar um humor
corrosivo, cheio de mordacidade, este aspecto foi muito bem explorado pela
direção. Costumo ficar atento a diversos
pequenos detalhes, uma das razões pelas quais gosto de ver um espetáculo mais
de uma vez, por meio dos quais observo o dedo do diretor e suas possíveis
intenções. Às vezes, “viajo”; outras,
mantenho-me estacionado na plataforma de embarque. Achei muito interessante o detalhe do
balanço, no qual o jovem ator se movimenta, em prolongados movimentos
(insegurança), enquanto os dois veteranos ATORES, quando dele fazem uso, ficam
apenas sentados, parados (estabilidade).
Será?
ELENCO
– Não preciso desperdiçar palavras para
comentar a atuação de cada um dos três:
EDUARDO
SEMERJIAN – faz um trabalho comovente e
convincente. Acompanho a carreira do
ator, nos palcos, e creio que, nesta montagem, ele teve a grande oportunidade de
mostrar seu potencial. E o fez.
Eduardo Semerjian
DENISE
DEL VECCHIO – Para os cariocas, é mais
conhecida por seus trabalhos na TV, já que, infelizmente, pouco aparece por
aqui com um espetáculo teatral (deveria vir mais). Considero-a, sem nenhum favor, uma das
maiores atrizes brasileiras. E, aqui,
limito-me ao TEATRO, já que não
tenho muita oportunidade de assistir a novelas (nada contra). Embora seja difícil, sua missão, a do
personagem, é intervir como mediadora, na contenda, e, a despeito de também vir
a ser alvo de agressões verbais por parte dos dois personagens masculinos,
consegue manter-se, até onde o limite permite, tranquila, e sai vitoriosa,
como, talvez, a vencedora de uma duelo, no qual sua participação não estava nos
seus planos. Faz um trabalho impecável,
além de ser uma bela figura em cena.
Denise Del Vecchio
JÚLIO
OLIVEIRA – Que coisa boa ver esse rapaz em cena!
Na ficha técnica do espetáculo, também aparece
o nome de ALEXANDRE SLAVIERO. E eu fiquei pensando que houvesse um quarto
personagem. Só depois, entendi que o
papel de CADU é interpretado pelos
dois atores. O que não sei é se eles se
revezam, na temporada carioca, ou se JÚLIO
ficou sendo o titular do papel nesta curtíssima temporada de três semanas. Até gostaria de ver ALEXANDRE, como CADU, mas
a lembrança que guardarei, para sempre, de JÚLIO,
na pele do personagem, é a de um jovem grande ATOR, que, espero, ainda nos brindará com outras brilhantes
atuações. Tornei-me um admirador do seu
trabalho.
Júlio Oliveira
DESENHO
DE LUZ – PEDRO GARRAFA – Logo nas
primeiras cenas, não me contive e sussurrei aos amigos que me acompanhavam: Que luz linda! Assim foi até o final da peça.
CENÁRIO
– CLÁUDIO SOLFERINI – Foi a primeira coisa
que me chamou a atenção, logo que adentrei a arena do SESC Copacabana. Muito bonito!
Os galhos secos, presos ao teto, e as folhas secas, espalhadas pela
arena, remonta ao outono, que, curiosamente, se iniciava naquele dia e que,
simbolicamente, é a estação que representa o amadurecimento e a velhice (de CHICO) - (Primavera = nascimento, o novo que surge. Verão = vigor, força, auge da juventude. Outono = amadurecimento, época de colher os
frutos, velhice. Inverno = morte, o
fim).
FIGURINOS
= MARICHILENE ARTSEVISKS – bem
interessantes.
TRILHA
SONORA = OTÁVIO MARTINS – Boa. Acho que deva ser uma vantagem a trilha
sonora ser feita pelo próprio diretor do espetáculo. Talvez seja mais fácil escolher a música que
melhor contribuirá para que o público embarque nas intenções do “maestro” da
montagem.
Quando falei, acima, da expectativa de um
quarto personagem, posso dizer que ele existe.
Não fisicamente, mas se “materializa” por meio de toques da tradicional
campainha do teatro, que marca os sinais, para o início do espetáculo. ÉDEN,
um contrarregra, participa das ações, operando luz e som, previamente acordado
com CHICO
VALENTE, e atende às solicitações dos personagens, principalmente as de CHICO, acendendo este ou aquele
refletor, fazendo tocar esta ou aquela música e, o mais importante, respondendo,
afirmativa ou negativamente, aos questionamentos que lhe são feitos, com um ou
dois toques da campainha, respectivamente.
Quase sempre, um toque; quando a aciona duas vezes... É preciso assistir ao espetáculo. Não vou contar.
Valeu a pena tanto sacrifício, para chegar ao Espaço SESC Copacabana, onde a peça
ficará em cartaz apenas até o dia 30 de março, sempre às 5ªs, 6ªs e sábados, às 20h30min,
e, aos domingos, às 19h.
(FOTOS – DIVULGAÇÃO / PRODUÇÃO / FACEBOOK. Observação: nas fotos de cenas do espetáculo,
o ator que interpreta o personagem CADU é sempre ALEXANDRE SLAVIERO; não foram
encontradas fotos com o ator JÚLIO OLIVEIRA).
Espetáculo parece instigante.
ResponderExcluirGilberto, bela percepção da metáfora do balanço... Parabéns! Não havia embarcado nesta viagem, mas pensado agora, notei que, ao final, Chico Valente enrosca-se no balanço, simbolizando toda a sua desorientação naquele momento.
ResponderExcluirEis um belo espetáculo, que certamente agradará qualquer amante das artes cênicas!
A peça tem um texto muito inteligente. Ótimo espetáculo.
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