“A FALECIDA”
ou
(DE COMO UM
DIRETOR
E UM ELENCO
GENIAIS
ME FAZEM
GOSTAR MUITO
DE UM
ESPETÁCULO.)
Nunca fiz segredo, para ninguém, de que, indo na direção contrária à daqueles que endeusam Nelson Rodrigues, como “o maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos”, eu e ele jamais dividiríamos o mesmo pacote de biscoito “Globo”, até porque, se eu prefiro a versão doce da iguaria, ele devia gostar mais da salgada; nem o copo de limonada, na Praia de Copacabana. Os gostos são diferentes, graças a Deus! Se Nelson fosse apenas o grande cronista de costumes e de futebol, certamente, eu até lhe cederia a minha parte no “lanchinho”. Já confessei, tantas vezes, que, de suas 17 peças escritas, só gosto de 5 - e “A FALECIDA” não é uma delas -, que não perderei tempo em me fixar nisso. Faço, porém, questão de deixar bem claro que não me alinho com alguns críticos, de sua época, quando classificavam as peças rodriguianas (A grafia está correta; não é “rodriguEanas”, como se pode pensar.) como “obscenas”, “imorais” e “vulgares”. Não partiriam de mim tais epítetos, os quais seriam substituídos por outros diferentes.
Muito
curiosamente, para esse “maior dramaturgo brasileiro de todos os
tempos”, o TEATRO entrou na
sua vida por acaso, ou “por necessidade”. O autor se encontrava em
dificuldades financeiras e “achou, no TEATRO, uma possibilidade de sair
da situação difícil em que estava...”. Foi quando escreveu sua primeira
peça: “A Mulher sem Pecado”, em 1941. “A FALECIDA” Só foi surgir em 1953.
Sempre
que escrevo sobre a encenação de algum texto de Nelson, faço questão de
ressaltar um detalhe da sua escrita que muito me agrada – a linguagem coloquial -
e que me faz dar boas risadas: o vocabulário, no qual encontramos
preciosidades da língua, hoje tornadas arcaísmos, no falar do dia a dia,
até porque, sendo o veículo de comunicação verbal entre os homens um organismo
sempre em transformação, vive a perder elementos e a incorporar outros, os neologismos.
Tais raridades ocorrem, nas peças de Nelson, numa grande quantidade, com
muitas expressões e várias gírias, verdadeiros regionalismos, típicas do Rio
de Janeiro, tais como: “É batata!” (Talvez a sua preferida.), “No
duro!”, “Carambolas!”, “Papagaio!”, “É espeto!”, “É fogo na roupa!”, “É de morte!”, “Uma teteia!”, “Estou frito!”, “Sossega o periquito!”, “Comigo não, violão!”, “Desembucha, anda!”, “Uma
pinoia!”, “Gaita” e “Erva” (dinheiro)... E por aí vai...
Também não posso omitir a
minha admiração por muitas de suas frases de efeito, sempre muito provocativas,
cunhadas com um humor muito inteligente, em muitas delas, sendo que algumas revelam
o machista e reacionário que sempre foi, embora muitos dos “rodriguesmaníacos” as
justifiquem como “uma consciente e proposital brincadeira” do escritor (A algumas, eu até assim as considero.): “Entre o psicanalista e o
doente, o mais perigoso é o psicanalista.”, “Toda
mulher bonita é um pouco a namorada lésbica de si mesma.”, “O jovem tem todos os defeitos
do adulto e mais um: o da imaturidade.”, “O artista tem que ser gênio para
alguns e imbecil para outros; se puder ser imbecil para todos, melhor ainda.”, “Todo
amor é eterno e, se acaba, não era amor.”, “Só o inimigo não trai nunca.”, “O dinheiro compra até amor verdadeiro.”, “Só
o rosto é indecente; do pescoço para baixo, podia-se andar nu.”, “A
plateia só é respeitosa, quando não está a entender nada.”, “Sem
paixão, não dá nem pra chupar um picolé.”, “Não há ninguém mais bobo do que
um esquerdista sincero; ele não sabe nada, apenas aceita o que meia dúzia de
imbecis lhe dão para dizer.” (Em se tratando dos últimos anos, no Brasil,
digo que a frase se aplica bem melhor aos da direita; da extrema direita, principalmente).
Em tempos de “politicamente
correto ou incorreto”, certamente, merecem críticas negativas e, até
mesmo, causam repúdio total, algumas frases de Nelson, como estas: “Toda
mulher gosta de apanhar; o homem é que não gosta de bater.”, “Só o cinismo redime um casamento; é preciso
muito cinismo, para que um casal chegue às bodas de prata.”, “O amor entre marido e mulher é uma grossa
bandalheira; é degradante que um homem deseje a mãe de seus próprios filhos.”,
“Os
homens mentiriam menos, se as mulheres fizessem menos perguntas.”, “As
feministas querem reduzir a mulher a um macho mal-acabado.”, “A
mulher pode trair o marido; o amante, jamais!”, “O homem nasce bom e, ao decorrer
da vida, a mulher o corrompe.”, “O casamento já é indissolúvel na véspera”...
Resta saber se ele as considerava na prática, quanto a si mesmo. De todas as
suas frases de efeito, que reproduzem, ou não, seu verdadeiro pensamento, a que
mais me incomoda, com a qual nunca concordei, não concordo e jamais concordarei
é “Toda
a unanimidade é burra.”. Mas não é mesmo, Sr. Rodrigues!!!
Um dos mais renomados e
respeitados críticos e grande estudioso de TEATRO, Sábato Magaldi (1927 / 2016),
ao estudar a obra de Nelson Rodrigues, pelas
características básicas de cada peça, reuniu-as em três grupos, assim
classificando-as: peças psicológicas (“A Mulher sem Pecado”, “Vestido
de Noiva”, “Valsa Nº6”, “Viúva, porém Honesta” e “Anti-Nelson
Rodrigues”); peças míticas (“Álbum de Família”, “Anjo
Negro”, “Senhora dos Afogados” e “Doroteia”); e tragédias cariocas (“A
Falecida”, “Perdoa-me por Me Traíres”, “Os Sete Gatinhos”, “Boca
de Ouro”, “O Beijo no Asfalto”, “Bonitinha, mas Ordinária”, “Toda
Nudez Será Castigada” e “”A Serpente”). As que compõem o
terceiro grupo, no qual “A FALECIDA”
foi alocada, são as de caráter mais popular, evidenciando o dia a dia do subúrbio
carioca, seus tipos e costumes. No caso particular da peça aqui analisada, esse
cotidiano nos é dado conhecer por meio de diálogos concisos e bastante
ágeis; dinâmicos, em suma. E bem naturais também. A propósito, no que diz
respeito a essa “naturalidade”, convém dizer que, antes de Nelson, os diálogos dos
dramaturgos brasileiros eram mais artificiais, rebuscados, bem mais próximos da
língua escrita, escrava das normas gramaticais, que da modalidade falada, mais
livre e próxima ao falar popular.
Quando
“A FALECIDA” foi encenada pela
primeira vez, em 1953, em pleno palco “sagrado” do Theatro Municipal do Rio de
Janeiro, “causou”, como se diz na gíria de hoje (Será que essa gíria ainda está
valendo? Preciso me atualizar. Momento descontração.). Imaginem como o
público da época recebeu uma peça que criticava a sociedade, de uma forma geral, e
suas instituições, sobretudo o casamento, destacando vários
tipos urbanos e suburbanos da Capital Federal, numa linguagem assaz coloquial, cheia de “carioquices”, com diálogos sobre futebol e outros assuntos corriqueiros ou mundanos!
“A FALECIDA” apresenta a jornada de Zulmira
(CAMILA MORGADO), a qual, assim como
marido, não vê mais expectativas na vida, tuberculosa e frustrada, para
realizar o sonho de ter um enterro espetaculoso, cheio de luxo e pompa, a fim
de mostrar à sociedade que sua família está “bem de vida”.
A
protagonista, uma moradora do subúrbio do Rio de Janeiro,
acredita-se moribunda, por causa da doença, e planeja, para si mesma,
um enterro luxuoso,
para compensar sua vida modesta, um drástico contrate com sua existência
simples e regrada.
Dessa forma, ela provocaria inveja em sua prima e
vizinha Glorinha - personagem que apenas é citada na trama - com quem
nem fala mais e tem uma relação inexplicável de competição, chegando ao ponto
extremo de ficar feliz, quando sabe que a seriedade e sisudez da prima, uma
característica marcante desta, advêm de um seio extirpado, por conta de um
câncer.
No fundo, Zulmira quer se vingar da
sociedade abastada, que lhe nega protagonismo, vez e voz.
Um pouco antes de morrer, a protagonista pede para
seu marido, Tuninho (THELMO FERNANDES),
que está desempregado e gasta todo o dinheiro com apostas, procurar o
milionário Pimentel (ALCEMAR VIEIRA).
Sem dar maiores explicações a Tuninho nem dizer como
ela conheceu o riquíssimo empresário, e pedindo ao marido que se passasse por
seu primo, Zulmira quer que o milionário lhe pague um enterro de 35
mil cruzeiros, o que beira o absurdo, uma vez que, na época, os
funerais custavam menos de mil.
Consumado o óbito, logo depois da morte da esposa, Tuninho
vai à mansão do ricaço Pimentel e descobre que ele e a “casta
e recatada” Zulmira eram amantes.
O marido traído ameaça contar tudo para um jornal
inimigo de Pimentel e consegue arrancar dele uma pequena fortuna – e ainda
um pouco mais, para uma “missa de sétimo dia”.
Tuninho, então, dá à Zulmira um reles enterro “de
cachorro” e, fanático torcedor do Vasco da Gama, aposta todo o resto
do dinheiro num jogo de futebol.
Cenas de “flashback” se misturam à narrativa presente, numa troca de ambientes que, por vezes, tenciona e, por outras, causa um inusitado e bem-vindo alívio cômico.
Deixei
o Teatro
Copacabana Palace, naquela sessão de estreia, para convidados, na 6ª
feira, 23 de fevereiro de 2024, com a certeza que já me
levara lá: a de que gostaria muito da encenação, o que pode parecer bastante estranho
para quem já sabe da minha falta de afinidade com os enredos desenvolvidos por Nelson
Rodrigues. Uma felicidade plena, que até superou o meu mau humor, por
ter pago o absurdo de R$ 32, por duas garrafinhas de água
mineral, no Café do Teatro. O que ocorreu, e não foi a
primeira vez, é que, a despeito de eu sempre afirmar que um BOM
TEATRO se faz com a junção de três excelências: texto,
a “espinha
dorsal” do espetáculo; direção e elenco, não desmerecendo
os elementos
de criação, é óbvio, ali estava uma montagem irretocável, em
que o texto, na minha visão, é secundário, coadjuvante. (Respeitem a opinião alheia, por
favor, e guardem suas pedras para quem as mereça mais que eu.) Só que,
em raríssimas ocasiões, a genialidade do trabalho de um diretor e um não menos
talentoso elenco podem “fazer milagre” e gerar um
espetáculo que guardo, com muito carinho e cuidado, no meu escaninho das OBRAS-PRIMAS.
O que SERGIO MÓDENA fez, para erguer
uma produção que merece todos os elogios que conheço, pelas mãos, pés, corpo,
cabeça e voz de um hepteto de admiráveis atores, é algo que me fez retornar à
minha casa, naquela noite, com a alma em festa, “lavada e enxaguada”,
como dizia o personagem Odorico Paraguaçu, da fantástica
lavra de Dias Gomes, um dos meus favoritos dramaturgos brasileiros.
O
que me obrigou a conter meus instintos de fanático por um BOM TEATRO e não correr
ao palco, para abraçar, um a um, aqueles fabulosos artistas, na hora dos agradecimentos,
foi o bom senso, que falou mais alto, advertindo-me de que não tenho mais idade
para “pagar
mico”. Mas era a vontade que eu sentia naquele emocionante momento em
que uma plateia inteira, lotada, aplaudia, freneticamente, os artistas,
gritando-lhes “VIVAS” e “BRAVOS”. E tenho a certeza de que
não era uma manifestação corporativista, pelo fato de o público daquela sessão
ser formado por amigos e colegas de ofício. É assim que “toda unanimidade é burra”,
Sr.
Rodrigues? Ora, por quem sois?! Com franqueza!
O
espetáculo estreou em agosto de 2023, em São
Paulo, onde permaneceu em cartaz - todas as sessões com lotação
esgotada -, recebendo indicações a prêmios, merecidíssimas.
Por duas vezes, estive na capital paulista, durante a temporada por lá, e não
consegui, infelizmente, tornar compatível a minha agenda com as sessões da
peça, o que fez aumentar, ainda mais, meu desejo de conferi-la no Rio.
A maior prova de que, a meu juízo, todo o sucesso do espetáculo se deve menos
ao texto e muitíssimo mais a quem tornou concreta a sua representação é que,
sendo Nelson Rodrigues um “autor carioca”, embora fosse
pernambucano de nascimento, um cronista do cotidiano do Rio de Janeiro, a plateia
paulistana embarcou totalmente nas falas dos personagens, não havendo nenhuma alteração
no texto. Mas outras plateias, creio eu, em qualquer praça do Brasil,
também são capazes de absorver a geografia da (Ex-)Cidade Maravilhosa)
e a gíria carioca. Não faria o menor sentido, nem seria necessário, – é
mais que evidente – trocar a Aldeia Campista pela Mooca
ou o Brás,
para atingir os paulistanos. Ademais, seria um sacrilégio, algo como servir um
uísque Royal Salute 21 Anos num copinho de plástico, misturado com
guaraná. Isso jamais passaria pela cabeça de um diretor inteligente, criativo e
premiado, como SERGIO MÓDENA.
Na rubrica inicial do texto original, o autor passa uma orientação a quem se dispuser a encenar a peça: “não se trata de uma montagem realista e deve ser feita numa cena vazia, com os personagens trazendo seus objetos de cena, para indicar os lugares em que estão”. MÓDENA seguiu, à risca, tais prescrições, obedecendo ao determinado pelo dramaturgo, e se lançou num trabalho de direção que põe em destaque o talento dos atores, sempre muito bem escalados, uma prática sempre observada em todos os seus trabalhos, como diretor, como já venho observando em suas assinaturas mais recentes, como “A Arte da Comédia”, “Ricardo III”, “As Cangaceiras, Guerreiras do Sertão” e “Longa Jornada Noite Adentro”. É fantástica a sua capacidade de transformar o “menos” em “mais”. Em total harmonia com os artistas criadores, o diretor assina uma obra que haverá de entrar para os anais do TEATRO BRASILEIRO como uma das mais criativas de todos os tempos, sendo, portanto, uma fortíssima candidata a premiações no Rio de Janeiro também. Alguns signos não-verbais, talvez, até, muito óbvios, me deixaram intrigados, quanto à sua decodificação, como a utilização de algumas máscaras (Para acrescentar um tom farsesco?) e as entradas dos atores, de costas e em câmera lenta (Uma alusão à malemolência do malandro carioca?), o que não diminui, em nada, a minha admiração pela montagem. Creio não precisar dizer mais nada acerca da maravilha de direção de SERGIO MÓDENA, um dos responsáveis pelo meu arrebatamento.
Que cenografia! ANDRÉ CORTEZ, dentro da estética geral proposta pelo próprio autor
da peça, deixa o palco bem vazio de elementos cenográficos, porém pleno de sinais.
Ao fundo, uma parede, à primeira vista, que nada mais é do que um grande
mausoléu, revestido de ladrilhos pretos, com um nicho, para acomodar a “defunta”.
Pelo que podemos observar nos cemitérios de verdade, algumas dessas construções
são verdadeiros símbolos de pompa e ostentação, a obsessão de Zulmira.
Complementam o conjunto cenográfico uma peça como uma mesa, que serve a várias utilidades, e duas ou três
pequenas escadinhas domésticas, as quais estão para vários usos – elementos
cênicos coringas (Ou “curingas”. A ortografia varia, mas
as finalidades não.).
Que figurino! MARCELO
OLINTO desenhou trajes que se encaixam, perfeitamente, na estética dos anos
1950,
com algumas “poéticas liberdades criativas” e com várias “sugestões”,
como, por exemplo, na camisa do Vasco, que o personagem Tuninho
usa, com certa frequência, a qual remonta ao uniforme daquele time de futebol,
sem, necessariamente, apresentar a tradicional cruz de malta que caracteriza o
clube. O conjunto de vestes não reproduz, intencionalmente, a moda da época,
mas deixa bem claras muitas de suas características.
Que iluminação! RENATO MACHADO “brinca” com cores e intensidades, com
luzes e claros-escuros, de uma forma brilhante – sem a intenção de trocadilho -,
criando detalhes belíssimos, quando faz uso de efeitos
especiais, ciando contrastes, sempre que certas partes de um lugar,
pessoas ou objetos recebem incidência de luminosidade, ao passo que outras
permanecem mais ou menos na sombra. O artista faz uso abundante de uma
admirável iluminação “setorial”, a ponto de, durante
algum tempo, eu achar que não havia um nicho ao fundo do cenário, uma concavidade, que a parede
era totalmente plana, efeito que julguei ter sido provocado por aquela opção de
luz.
Era intenção do diretor que a
encenação se ativesse a uma estética atemporal, conceito que,
evidentemente, deveria ter sido seguido por todos os seus colaboradores, artistas
de criação, como, de fato, ocorreu. E a trilha sonora não poderia
ficar de fora disso. Conquanto eu tenha me encantado com tudo, na peça, reservo
um comentário especial à trilha. Recordo-me de que a primeira
coisa que consegui dizer a quem me acompanhava, após o término da peça, já um
pouco refeito da emoção que de mim se apossara, foi esta frase exclamativa: “Que
trilha sonora é essa?!”. Demorei-me muito pouco, no “foyer”
do Teatro,
após a sessão, contudo, nos poucos minutos em que lá estive, cumprimentando
amigos também convidados, ouvi, de uma meia dúzia deles, a mesma frase, todos
tão encantados quanto eu. Parece-me que foi uma unanimidade (Outra
vez ela, a “unanimidade”, Senhor Rodrigues.). Trata-se um refinado
trabalho de MARCELLO H, premiadíssimo
profissional nesse segmento, atualmente na Europa, acompanhando a vitoriosa e
longa turnê de “Tom na Fazenda”, cuja trilha sonora também é assinada por ele.
Destacam-se, em “A FALECIDA”, uma canção
sacra, tema de Zumira, que se repete em várias cenas, chamada “Alleluia”,
cantada pelo coral Tabernacle Choir; “Sonho de Pobre”, de Tito
Climent, gravação de Dalva de Oliveira, executada no
início do espetáculo, ambas sugeridas pelo diretor; e o clássico “A
Flor e o Espinho”, de Nelson Cavaquinho, que encerra a
peça, sugestão de MARCELLO. Além
dessas, há muitos trechos de canções incidentais, escolhidas por este, tentando
– e conseguindo – aproximar o sagado e o profano. Para tanto, o
artista, numa conversa que tivemos, via WhatsApp, me disse ter-se lançado a
uma perfeita “salada de sons”, utilizando os que remetessem aos ancestrais –
tambores e outros instrumentos de percussão –, alguns ruídos que retratassem o
som das ruas, o urbano, havendo espaço para alguma coisa de Tom
Zé, e das bandas Nação Zumbi e Baiana System, cabendo,
até mesmo, um mantra budista. Um primor de trabalho!
Que elenco! Encabeçado
por CAMILA MORGADO, cuja ausência
sobre as tábuas já vinha sendo sentida há muito tempo – 11 anos de afastamento dos
palcos -, o elenco de “A FALECIDA”
reúne cinco nomes consagrados da cena teatral, com muitos anos de carreira, e
dois jovens atores, ALAN RIBEIRO e THIAGO MARINHO, os quais respondem à
altura, em suas interpretações, diante da responsabilidade de contracenar com
gente do calibre de CAMILA, THELMO FERNANDES, STELA FREITAS, GUSTAVO
WABNER e ALCEMAR VIEIRA.
Uma frase bem clichê, que assumo
totalmente: CAMILA MORGADO parece
ter nascido para interpretar Zulmira. Talvez pelo fato de que encenar
“A FALECIDA” fosse uma espécie de “sonho
de consumo” para a atriz e o diretor, agora realizado, ambos se jogaram
de cabeça na realização na montagem, sem pensar na profundidade das águas em
que estavam mergulhando, resultando em dois trabalhos irretocáveis. Nas
palavras de SERGIO MÓDENA, no “release”
que recebi, de DOUGLAS PICCHETTI (Pombo
Correio – Assessoria de Comunicação), tanto ela quanto THELMO FERNADES são dois atores “rodriguianos”.
É claro que entendi o pensamento do diretor, porém, antes de tudo, digo que
ambos são dois magníficos intérpretes. Infelizmente, só consegui vê-la no palco
por duas vezes, além da atual, e há muito tempo, no início da carreira, em “Ventriloquist” e “O
Príncipe de Copacabana”, o suficiente para enxergar o seu talento e
profissionalismo. Como não tenho muita intimidade com as telas – a “-inha” e a “-ona” -,
não acompanho muito sua carreira na TV e no cinema, porém o pouco que já vi
sempre me agradou.
Sua primeira aparição, aqui, dentro da cripta, é quase uma “epifania”.
Parada, “morta”, já dá vontade de aplaudi-la. No decorrer da trama, CAMILA sabe dosar as emoções e “forçar”,
quando necessário, este ou aquele sentimento, explorando, formidavelmente, a
voz e o corpo. O patético, contido na personagem, também é muito bem trabalhado
pela atriz, a ponto de nos provocar boas risadas. Por vezes – eu, pelo menos -,
me questionava: “Será que ela disse isso mesmo? E dessa maneira?” Já a partir da
cena, logo no início da peça, importantíssima no seu contexto, em que uma
cartomante “de araque” (Esta eu roubei do Nelson.) orienta a personagem a “tomar
muito cuidado com uma loura”, que Zulmira identifica como sendo sua
prima Glorinha, sua vizinha, tantas vezes citada, mas que não aparece
fisicamente na encenação, a protagonista passa a desenvolver um profundo ranço
pela parenta e a fantasiar mil “armações e traições” desta para com
ela.
Zulmira sempre foi uma mulher de comportamento “normal”,
até se converter à “Igreja Teofilista”, uma “religião” inventada por Nelson
Rodrigues, que aparece também em outra de suas peças, “Os
Sete Gatinhos”, a qual prega a obrigação de o crente se prender a
valores morais, muito embora a personagem seja uma adúltera (Será
que isso atenta mesmo contra a moral?!). Está aí uma excelente crítica
do autor à falsa moralidade de muitos segmentos das atuais igrejas evangélicas
neopentecostais e da sociedade, de uma forma geral.
#prontofalei! Talvez a personagem até quisesse conter seus
instintos da carne, mas estes eram mais fortes que sua crença na doutrina
religiosa; daí seu sentimento de culpa. Sua fixação na morte, que adviria pelo
agravamento de sua doença, a tuberculose, uma certeza que ela alimentava, pode
ser entendida como uma espécie de redenção, de “elevação
e evolução”, uma forma de se tornar “imortal”,
ou seja, lembrada, e valorizada, para sempre, passando de “pecadora” a “santa”
e ganhando o perdão de todos, principalmente o dela mesma. Trata-se de uma
personagem intensa, que CAMILA MORGADO
interpreta, da primeira à última cena, da forma mais visceral possível.
Seguindo, muito de perto, os passos de CAMILA, destaco o fascinante trabalho
de THELMO FERNANDES, como Tuninho,
o marido traído, e vingativo, d’“A FALECIDA”.
Um dos melhores atores de sua geração, com um currículo invejável, cheio de
prêmios e indicações a outros, THELMO
acrescenta, à sua galeria de ricos personagens, milimetricamente construídos,
mais um, um típico suburbano carioca, machista, desempregado, que vive do que
restou de sua indenização, após ter perdido o emprego, jogador inveterado de
sinuca e fanático torcedor do Vasco da Gama, a ponto de perder
muito dinheiro, apostando na vitória de seu time de coração. A “química”
que há entre o casal de atores, CAMILA
e THELMO, resulta em memoráveis
cenas entre eles. O próprio Nelson Rodrigues, em várias entrevistas,
afirmou que seus personagens “são seres, paradoxalmente,
dominados por uma força desmedida, que os faz agir exacerbadamente, sem
refletir, movidos pelas forças mais legítimas da natureza humana: o impulso
do instintos, sendo criaturas dominadas pela violência da paixão, obsessão e
loucura”. Zulmira e Tuninho não são exceções a isso.
Completam o elenco, nivelado por cima e
revezando-se em mais de um(a) personagem, STELA FREITAS, GUSTAVO WABNER, ALCEMAR
VIEIRA, ALAN RIBEIRO e THIAGO MARINHO, todos impecáveis em
suas composições. Reservo um aplauso especial para STELA, agraciada como “Melhor Atriz Coadjuvante”, na mais
recente versão do “Prêmio FITA” (“Festa Internacional de Teatro de Angra dos
Reis”), evento no qual a montagem também alcançou a premiação de “Melhor
Espetáculo”, pelo Júri Popular. É importante dizer que
todos os atores que representam personagens coadjuvantes aproveitam, com
afinco, os momentos nos quais têm a oportunidade de deixar suas marcas no
espetáculo, no que incluo os dois jovens e talentosos atores THIAGO MARINHO e ALAN RIBEIRO, os quais, como já disse, são submetidos à
responsabilidade de contracenar com colegas que já têm uma carreira definida e consagrada nos palcos.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Nelson Rodrigues
Direção: Sérgio Módena
Elenco: Camila Morgado,
Thelmo Fernandes, Stela Freitas, Gustavo Wabner, Alcemar Vieira, Alan Ribeiro e
Thiago Marinho
Direção Musical: Marcelo
H
Cenário: André Cortez
Figurino: Marcelo Olinto
Iluminação: Renato
Machado
Preparação Corporal:
Laura Samy
Programação Visual e
Fotos: Victor Hugo Cecatto
Assessoria de Imprensa:
Pombo Correio
Produção Executiva: Ana
Velloso e Vera Novello
Direção de Produção:
Lúdico Produções Artísticas
Produtores Associados: Camila Morgado, Sergio Módena e Lúdico Produções
SERVIÇO:
Temporada: De 23 de fevereiro a 07 de
abril de 2024.
Local: Teatro Copacabana Palace.
Endereço: Avenida Nossa Senhora de
Copacabana, nº 261, Rio de Janeiro – RJ.
Dias e Horários: Às 6ªs
feiras e aos sábados, às 21h; aos domingos, às 20h.
Valor dos Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia-entrada) | R$ 160
(inteira) e R$ 80 (meia-entrada) (Dependendo da localização dos assentos.)
Vendas “online” pela Sympla: https://bileto.sympla.com.br/event/90776
Venda Presencial na Bilheteria do Teatro: 2 horas antes de cada sessão.
Capacidade: 330 lugares.
Acessibilidade: A peça terá acessibilidade em Libras e Audiodescrição. O Teatro é acessível, na plateia, a cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida.
Classificação Etária: 16
anos.
Duração: 90 minutos.
Gênero: Tragédia (Carioca).
A
despeito de a peça ter-se tornado septuagenária no ano passado, ela se revela
muito viva e atual, se considerarmos, principalmente, que ainda vivemos “sob
a égide” de uma sociedade regida pelas nefastas falsa moralidade e
hipocrisia. “Nos dias de hoje, o fanatismo religioso abordado por Nelson Rodrigues
tornou-se ainda mais significativo em nosso país.”, diz SERGIO MÓDENA, com o que concordo
plenamente, haja vista o período de trevas que representou o quatriênio 2019
/ 2022 para o Brasil.
Considero
esta montagem de “A FALECIDA” uma OBRA-PRIMA
e não ficarei surpreso se ela receber, merecidamente, ao final do ano teatral
em curso, muitas indicações a prêmios, pelos quais estarei torcendo, com os
dedos cruzados.
FOTOS: VICTOR HUGO CECATTO
VAMOS AO TEATRO!
OCUPEMOS TODAS AS SALAS DE
ESPETÁCULO DO BRASIL!
A ARTE EDUCA E CONSTRÓI, SEMPRE; E SALVA!
RESISTAMOS SEMPRE MAIS!
COMPARTILHEM ESTE TEXTO, PARA QUE,
JUNTOS, POSSAMOS DIVULGAR O QUE HÁ DE MELHOR NO TEATRO BRASILEIRO!
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