UM
PAI (PUZZLE)
(É
PRECISO RASGAR O CORAÇÃO, PARA CICATRIZAR FERIDAS.)
Texto extraído do programa da peça:
“Esta peça não é um romance ou uma (auto)biografia romanceada.
Não tem nada de ficção.
Nela não será encontrado nenhum detalhe inventado, a fim de embelezar a
narração ou encorpar o texto.
Meu objetivo foi outro: fazer surgir, na minha memória, tudo o que se
passou de importante, de forte – trágico ou cômico – entre meu pai e eu.
Falar do pai que Jaques Lacan foi para mim, e não do homem em geral; muito
menos do psicanalista.
Trata-se de uma obra puramente subjetiva, fundada tanto nas minhas
lembranças daquela época quanto na visão que hoje tenho das coisas.”
(SIBYLLE LACAN. Um Père. Ed. Gallimard. 1997.)
Um belo espetáculo também do ponto de vista plástico.
Um
comovente, belo e tocante espetáculo é UM
PAI (PUZZLE), em cartaz no Teatro
II, do CCBB, Rio de Janeiro.
“BRAVO!”
É o mínimo que se poderia gritar, ao final da peça, mais de uma vez, entre
demorados aplausos, de pé, como eu fiz, tomado de muita emoção, seguido por,
praticamente, todos os que faziam parte dos convidados para aquela sessão
especial.
No
palco, com poucos recursos cênicos, umas caixas (“pufes”) quadradas, pretas, e
uma grande caixa de acrílico transparente, com água, ao fundo, usando um
figurino discreto e sob uma luz magnífica, ANA
BEATRIZ NOGUEIRA, mais uma vez, prova por que é considerada uma das
melhores atrizes de sua geração.
O
primeiro contato que tive com o seu trabalho não foi no TEATRO, e sim no filme Vera,
filmado em 1985 e lançado em 1987, o qual lhe rendeu o prêmio de Melhor Atriz,
no Festival de Brasília (Troféu Candango), e o Urso de Prata, no Festival de
Berlim. Já foi o suficiente para que eu
passasse a acompanhar sua rica trajetória de atriz.
O filme,
dirigido e escrito por Sérgio Toledo,
é baseado na vida de Anderson Herzer,
autor do livro A QUEDA PARA O ALTO,
que conta a história de Vera, uma
interna da Febem, transexual e poeta, dos maus-tratos no internato ao suicídio,
em 1982, passando pela fase em que saiu da FEBEM. pelas mãos do (então)
deputado Eduardo Suplicy que, sensibilizado com seu talento, deu-lhe apoio e
conseguiu-lhe emprego.
Bom gosto e elegância o tempo inteiro.
Segundo o ”release” fornecido pela produção do
espetáculo, objeto destes comentários, há seis anos, a atriz teve o seu
primeiro contato com o livro “Um pai”
(“Un père – Puzzle”, no original), escrito por SIBYLLE LACAN, filha do famoso psicanalista francês Jacques Lacan. Como se fosse um “puzzle”, um simples jogo de
quebra-cabeças, o texto, fragmentado, expõe as memórias de uma relação entre
pai e filha. São lembranças, alegres e
tristes, de diferentes momentos da vida da escritora.
Encantada com
a obra, a atriz decidiu levar o depoimento comovente de SIBYLLE (1940 – 2013) para o teatro, interpretando a própria
autora.
Escrito em uma
única noite, o livro foi lançado na França, em 1994, e, depois, em diversos
países, incluindo o Brasil.
“É um
grito de amor. SIBYLLE é pura demanda não atendida. ‘Sou o fruto do desespero; alguns dirão do
desejo, mas, nesses, eu não acredito’. Era
assim que ela se autodefinia”, conta ANA BEATRIZ NOGUEIRA, que esperou, pacientemente, cinco anos, para
adquirir os direitos da obra, que lhe foram concedidos pela própria autora, em
2013 – ano em que morreu, em Paris, aos 73 anos, de overdose de remédios.
“Ela
não queria que inventássemos coisas para o texto. Podíamos cortar, mas não
acrescentar informações”, explica a atriz, que convidou o cineasta EVALDO MOCARZEL para adaptar a obra para o TEATRO.
A direção de “UM PAI (PUZZLE)” ficou a cargo de dois amigos e parceiros de
trabalhos anteriores, GUILHERME LEME
GARCIA e VERA HOLTZ, entre os
quais se percebe uma estreita simbiose, com a qual lucram os que têm o prazer
de assistir a um belo trabalho de direção.
“Fragmentos” ("PUZZLE").
É
impossível que alguém não se veja representado por ANA/SIBYLLE, já que a temática/problemática da peça faz parte da
vida de qualquer anônimo. É universal e
atemporal. Todos já tiveram, ou ainda
têm, pendengas afetivas a resolver com entes queridos ou amigos. Faz parte da arte de viver.
O
texto é lindo, sensível, de uma delicadeza e sutileza invejáveis, de um lirismo
ímpar, realçados pelo talento da atriz, que, mergulhada na emoção, sabe
explorar, com variadas inflexões e pausas, milimetricamente dispostas ao longo
da “conversa” com o público, tudo o que vai na alma da filha rejeitada,
proscrita, indesejável: frustração, frustração, frustração...; dor, dor,
dor...; vazio, vazio, vazio...; paixão, paixão, paixão...; mágoa, mágoa,
mágoa...; ressentimento, ressentimento, ressentimento...
O
que doía forte, em SIBYLLE, além da
ausência física do pai e de seu desinteresse por ela, era a consciência da sua
inferioridade e a de seus dois irmãos, Caroline
e Thibault, diante da sua meia-irmã, Judith, filha do segundo casamento de Lacan, a quem o pai se dedicava
inteiramente, desprezando e ignorando os outros três. Isso é revelado logo no início do texto: “Quando
eu nasci, meu pai não estava mais conosco. Até poderia dizer que, quando fui concebida,
ele já estava em outro lugar (...). Sou
o fruto do desespero. Alguns dirão que
sou fruto do desejo, mas não creio nisso.”
Quanto
à questão do sentimento de inferioridade e, ao mesmo tempo, de admiração com
relação a Judith, em outro trecho,
revela SIBYLLE a insegurança ligada
à predileção do pai por aquela: “Meu primeiro encontro com Judith me
arrasou. Ela era tão amável, tão perfeita... e eu, tão desajeitada, tão inábil.
Ela era a socialidade, a descontração;
eu, a camponesa do Danúbio...”.
Monólogo
é um tipo de espetáculo que afasta muita gente dos teatros. São, genericamente,
ligados à monotonia, o que, na maioria das vezes, não corresponde à verdade,
como ocorre neste espetáculo.
Ainda mais
devido à temática, a peça tinha tudo para ser um “ranço” só, além de deixar a
plateia deprimida. Não, isso não
ocorre. Não há como o espectador deixar
de se emocionar, de se envolver, com o drama de SIBYLLE,
porém, tudo é dito de forma tão leve, num tom confessional de cumplicidade com
o público, que os 60 minutos de ação passam num ritmo que faz com que o tempo
cronológico se torne imperceptível e as pessoas deixem o teatro tristes, é
verdade, compartilhando os sentimentos da protagonista, mas não deprimidas.
MANECO QUINDERÉ nos brinda com mais um
de seus brilhantes trabalhos de iluminação,
economizando na claridade, reservando-a para destacar ângulos da atriz, em
determinadas falas de relevada importância, como na última cena, em que, de
forma genial, a direção encontrou uma resolução para fazer com que SIBYLLE pudesse tocar a lápide de seu
idolatrado pai (Ou seria o profissional?), ela que foi proibida de vê-lo em
seu leito de morte e de ir ao seu velório.
Pouparei os
leitores de detalhes da cena, para não lhes roubar a singela e linda surpresa,
único momento em que a filha rejeitada teve a “sua certeza” de que estava sendo
ouvida pelo desnaturado pai: “Eu te amo.
Você é meu pai. Você sabe.”.
Ajustam-se,
perfeitamente, à proposta do espetáculo o ótimo cenário, de MARCELO LIPIANI
e o figurino, de MARCELO OLINTO.
Cenário.
Foi ótima a
escolha de ZÉLIA DUNCAN, para se
encarregar da direção musical da
peça, assim como da trilha sonora, esta
com ANDRÉA ZENI. O resultado é um belo trabalho de apoio ao
texto.
Preparando para a cena final.
Para o mundo, Lacan era “O” cientista, psicanalista, genial profissional. Para SIBYLLE,
era apenas “UM”, pai. Indefinido, volátil, herói virtual...
Nunca eu
poderia imaginar que um homem como o festejado psicanalista pudesse ter feito
tanto mal a uma criatura, sua filha legítima.
Será que ele tinha noção disso?
E a gente
pagando caro para ser analisado...
UM PAI (PUZZLE) é um dos bons
espetáculos da atual safra, que merece ser visto, para deleite e aprendizado de
como se faz um bom TEATRO neste
país.
FICHA TÉCNICA:
Elenco:
Ana Beatriz Nogueira
Texto:
Sibylle Lacan
Adaptação:
Evaldo Mocarzel
Tradução:
Ângela Leite Lopes
Direção:
Vera Holtz e Guilherme Leme Garcia Garcia
Direção
Musical: Zélia Duncan
Trilha
Sonora: Zélia Duncan e Andrea Zeni (A
música “Les Tendre Dangereux Visage De L’amour” é tema original de Lucina, com
acordeon, teclado e gravação de Léo Brandão e direção musical, voz e violão de
Zélia Duncan)
Assistente
de Trilha Sonora: Joyce Santiago
Iluminação:
Maneco Quinderé
Cenário:
Marcelo Lipiani
Figurino:
Marcelo Olinto
Visagismo:
Adriana Alves e Sheila Reis
Fotos:
Marcelo Correa
Direção
de Produção: Sílvia Rezende
Realização:
Trocadilhos 1000 (Ana Beatriz Nogueira)
Assessoria
de Imprensa: Paula Catunda e Fernanda
Lacombe
SERVIÇO:
Temporada: Até 3/5/2015
Dia/Horário:
sextas-feiras, sábados e domingos, às 19h30min
Local:
Centro Cultural Banco do Brasil – Rio de Janeiro – Teatro II
Endereço:
Rua Primeiro de Março, 66 – Centro – Rio de Janeiro (RJ)
Ingresso:
R$10,00 (inteira) / R$5,00 (meia)
Duração
do Espetáculo: 60 minutos
Gênero:
Drama
Classificação:
Não recomendado para menores de 14 anos
Enfim, eu te toco.
(FOTOS: MARCELO CORREA)
São 60 minutos de puro prazer, os quais são lindamente relatados em sua magnifica resenha! Parabéns duplo!
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