OS JAVALIS
(O TEATRO DO ABSURDO, QUEM
DIRIA, ACABOU NA GÁVEA.)
Faz
alguns meses, recebi um telefonema de um jovem ator, grande amigo, cuja
carreira acompanho desde seu início. Sou
avesso a telefone e não tenho o hábito de me prolongar nas ligações, as quais,
geralmente, mais recebo do que efetuo e não ultrapassam alguns poucos
minutos. Naquele dia, porém, a bateria
quase descarregou por completo, pois ficamos, por cerca de uma hora, numa conversa
que me deixou muito feliz.
Ele pedia a
minha opinião sobre permanecer vinculado a um contrato com uma emissora de TV
ou se dedicar a um projeto de montar uma peça, arcando com a direção, atuação e
possível produção, se não encontrasse quem a financiasse.
Falava de um
modo tão apaixonante sobre aquilo, que cheguei a imaginar, do outro lado da
linha, um brilho especial nos seus olhos, compatível com seu tom de voz. Eram empolgação e emoção ao extremo. Senti o quanto a montagem daquele espetáculo
seria importante para ele. E, como, para
amigos, não se deve negar nada, não só lhe dei a maior atenção, feliz por sua
felicidade, como lhe passei os meus palpites acerca de tentar fazer os dois
trabalhos paralelamente, o que todos sabemos ser uma tarefa hercúlea. Mas tudo dá certo, quando se deseja e se tem
força e garra para lutar por aquilo em que se acredita. Ele acreditava muito, lutou e conseguiu.
OS JAVALIS, texto de GIL VICENTE TAVARES, direção de EMILIANO D’AVILA, com o próprio EMILIANO e RAFAEL MEDRADO, no elenco.
O
espetáculo, livremente inspirado num dos clássicos do chamado Teatro do Absurdo, O Rinoceronte, de Eugène Ionesco,
pode, e deve, por isso mesmo, enquadrar-se em tal categoria, a qual muito me
agrada. Jamais deixei de assistir a
várias montagens das peças dos grandes mestres desse tipo de TEATRO.
Emiliano D’Ávila e
Rafael Medrado.
Para
ilustrar um leitor pouco familiarizado com ele, aproprio-me, um pouco, do
verbete da Wikipédia, com adaptações, e passo a informar-lhe que o Teatro do Absurdo foi um termo
empregado, pela primeira vez, em 1961, pelo crítico húngaro, radicado na Inglaterra,
Martin Esslin,
tentando sintetizar uma definição que agrupasse as novas obras de dramaturgos
de diferentes países, que, apesar de serem completamente diferentes em suas
formas, tinham, como centro de sua obra, o tratamento de aspectos inusitados e
inesperados da vida humana. Teatro do
Absurdo é, então, a designação que agrupava, inicialmente, as peças
teatrais de vários dramaturgos europeus, principalmente no final dos anos 1940,
após o fim da Segunda Guerra Mundial, e nos anos 1950 e 1960. É uma forma do teatro moderno, que se utiliza,
para a criação do seu enredo, das suas personagens e de seu diálogo, de
elementos do ilógico. Um dos
antecessores deste procedimento dramático teria sido Alfred Jarry
(Ubu Rei 1896),
e, entre seus principais dramaturgos, Esslin
destaca o romeno, radicado na França, Eugène
Ionesco, o irlandês Samuel
Beckett, o russo Arthur Adamov,
o inglês Harold Pinter,
o espanhol Fernando
Arrabal, o francês Jean Genet
e o americano Edward Albee.
O tiro de
misericórdia.
A
sinopse da peça é esta: Um homem solitário tem sua casa
invadida por um
pretenso vendedor de produtos de limpeza, que,
desesperado, anuncia o fim da humanidade, segundo ele, devastada por
javalis. Inicialmente desacreditando, o
dono da casa começa a ser levado pelo discurso do vendedor e por eventos
estranhos que acontecem em sua casa e no seu entorno. A trama é conduzida por uma potencial ameaça
que vem de fora, mas que, em momento algum, se revela ou é confirmada. Desconstruindo e edificando questões, essa
situação entre tensão e humor é o estopim para as transformações que
encaminharão ambos os personagens a caminhos surpreendentes.
O
texto da peça é muito bom e bastante contemporâneo, embora tenha sido escrito
em 1998 e sua primeira montagem tenha ocorrido em 2008, e contempla as mazelas
do dia a dia de uma sociedade
moderna.
Aqui, transcrevo, para
algumas considerações e comprovação do que disse no parágrafo acima, trechos extraídos do programa do espetáculo, sem
crédito, mas que creio serem do próprio autor da peça:
“Há um tempo,
assustados com a fragilidade das pessoas, frente a notícias completamente
estapafúrdias, ilógicas e equivocadas (proliferadas, principalmente, em redes
virtuais), vendo suas reações de crença, adesão e aceitação, pensamos no quanto
OS JAVALIS soaria atual, urgente, como forma de questionar essa histeria de
ideias, notícias e ameaças.”
Imagine-se invadido, em sua
privacidade, por alguém que adentra sua casa com a notícia de que javalis estão
devorando a tudo e a todos e que só você e ele, o emissário da esdrúxula
notícia, ainda estão vivos, mas por pouco tempo. Como reagir? Acreditar ou não? Aceitar ou não a “realidade” de que lhe resta
pouco tempo de vida? Acreditar ou
não? Acreditar ou não em tudo o que é
veiculado pela internet? Como reagir a cada
enxurrada de informações que caem nos nossos colos, minuto a minuto, das mais
insignificantes às mais terríveis e perturbadoras?
“Não tardou e
algo mais premente aconteceu no país. As
manifestações, que levaram às ruas milhões de pessoas, revelavam, também,
milhões de insatisfações, desejos, vontades; e diversos assuntos, como golpes, violência e
corrupção, vieram à tona. Mais uma vez,
lembramos da peça, que havia sido escrita em 1998, montada em 2008 e, ainda
hoje, parecia-nos ter o que dizer, ângulos diferentes para se provocar e perturbar
o espectador.”
São
novos tempos, de conscientização, de protestos, de cobranças; tempos de
destruir, para reconstruir, não no sentido físico, material, mas no campo dos
valores éticos e morais, no intuito de resgatar uma cidadania que vem sendo
deixada de lado há algum tempo. Então, a
imagem das manifestações populares que vêm emergindo, espontaneamente, nos
últimos meses, não têm uma relação direta com a metáfora que o texto
explora? Total simbiose.
Rafael e Emiliano.
A premissa de
invasão de seres estranhos, devastando uma cidade é recorrente na história da
literatura. Essa alegoria do
totalitarismo é marca indelével na história da humanidade e foi registrada, com
requintes de horror, em livros, fotos, depoimentos e filmes. A Hora dos Ruminantes, Guerra dos Mundos, O
Rinoceronte, diversas obras metaforizavam o inimigo lá fora, a invasão do
estranho, do diferente. Cinema e teatro
não ficaram de fora.”
Sei que há de aparecer
alguém, criticando a peça, dizendo que o texto não contém nenhuma
originalidade, que o tema é “batido” e que, portanto, não é bom. Todos os temas podem ser “batidos” e
originais, e bons, quando bem escritos. E este
texto é muito bem escrito. Todos os
temas, no fundo, são universais e sempre existiram e foram explorados, em todas
as artes. OS JAVALIS, é certo e inegável, guarda uma semelhança muito grande
com O Rinoceronte, entretanto a
qualidade do texto é indiscutível e há nele uma particularidade que o torna
original em relação ao clássico de Ionesco:
aqui, os javalis, que estão dizimando a humanidade, são os mesmos que servem de
alimentação às pessoas, num lauto almoço de domingo. Reserve um tempinho para refletir sobre isso.
A
proximidade dos atores/personagens com a plateia é um fator fundamental na
montagem deste texto. Foi escrito para
ser representado em ambientes intimistas.
Não é só o personagem de EMILIANO
D’ÁVILA que tem sua privacidade invadida, exposta, por um mensageiro do
apocalipse. Cada um de nós,
confortavelmente sentado em sua poltrona, é uma vítima em potencial dos javalis
que estão lá fora. Cada um de nós se
sente ameaçado. Cada um de nós luta por
sobreviver a uma catarata de injustiças, de impunidades, de desmandos, de
desrespeitos, de agressões das mais diversas ordens…
Sobre a ficha técnica do espetáculo, vale a
pena destacar:
TEXTO : GIL VICENTE TAVARES – Não precisaria
repetir: gostei muito.
DIREÇÃO : EMILIANO D’ÁVILA - Boa e convincente, em
se tratando da primeira experiência do ator nessa área.
ELENCO : EMILIANO D’ÁVILA e RAFAEL MEDRADO - Bom trabalho dos dois. EMILIANO,
às vezes, por conta da emoção, se excede um pouco no volume de voz, o que é
desnecessário e força as cordas vocais do ator.
O amigo aqui já lhe deu a dica, que foi muito bem aceita e reconhecida
por ele. Se mantiver o mesmo tom de voz
que utiliza na maior parte de sua atuação, estará perfeito. Representa com muita verdade e
determinação.
RAFAEL é um grande ator baiano, desconhecido do público carioca,
que o Rio de Janeiro
e o Brasil precisam conhecer. Muito
regular em sua interpretação, demonstra uma naturalidade muito grande e sabe
modular muito bem a sua voz, para revelar o caráter de seu personagem.
Dois bons trabalhos.
ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO : BRUNO HEITOR, CIRO SALES e NATÁLIA ROSA .
CENÁRIO : LORENA LIMA – simples, porém
bem ajustado à proposta do espetáculo.
FIGURINO : HUGO LEÃO - também simples, mas dentro da proposta da peça.
FIGURINO : HUGO LEÃO - também simples, mas dentro da proposta da peça.
ILUMINAÇÃO : FÁBIO ESPÍRITO SANTO e JOÃO GIOIA – cumpre, naturalmente, sua
função.
TRILHA SONORA
ORIGINAL : RICCO VIANA – Um elemento muito importante nesta montagem. RICCO,
vencedor do 8º Prêmio APTR de Teatro,
pelo espetáculo Jim, soube escolher,
minuciosamente, as canções e todos os outros sons que vão sublinhando cada
momento de suspense no espetáculo.
Excelente trabalho!
Vale muito a pena
conferir OS JAVALIS, no Teatro Maria Clara Machado, no Planetário da Gávea, de 6ª feira a domingo. Sextas-feiras,
às 20h30min; domingos, às 20h. Até 15
de junho.
“Pareciam homens de longe. Só de bem perto é que se via o quanto eram repugnantes.”
(fala do invasor)
Emiliano D’Ávila.
Emiliano, eu e
Rafael.
(FOTOS: PRODUÇÃO / DIVULGAÇÃO
DA PEÇA e BRUNO HEITOR.)
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