“FORTALEZA”
ou
(“ESSES
MOÇOS, POBRES MOÇOS...
AH! SE
SOUBESSEM O QUE EU SEI...”
- LUPICÍNIO
RODRIGUES.)
ou
(UMA
AGRADÁVEL SURPRESA TEATRAL.)
Que
diferença pode haver entre um espetáculo que conseguiu captar altas cifras,
além de patrocínios e apoios, e outro cuja produção arca com parcos recursos
próprios, para concretizar o sonho de montá-lo? Se os dois forem BONS, sinceramente, NENHUMA,
a não ser, obviamente, a “embalagem”. Para mim, não importa
se o presente vem embrulhado luxuosamente ou se o pacote foi feito em “papel
de pão”. O que interessa é o que está dentro da caixa. Chega a ser um
certo exagero, assumo, a comparação, mas a imagem foi criada propositalmente, para
deixar bem claro que a qualidade de um espetáculo teatral, a meu juízo, depende
muito mais de que sejam, no mínimo, bons o texto, a direção
e a interpretação.
O
que dizer, por exemplo, da cenografia, dos figurinos e da iluminação
do espetáculo “FORTALEZA”, ao qual
assisti no último sábado (09 de março de 2023), no simpático
e agradável Espaço Abu, um endereço alternativo, em Copacabana (VER SERVIÇO),
de facílimo acesso, o qual, desde sua inauguração, em 2019, só apresentou, de
tudo o que eu vi lá encenado – e foi muita coisa -, bons espetáculos? Considerando-se
o caráter de “primo pobre” da peça, em termos de recursos financeiros, não
muita coisa a ser dita, além de que os três elementos de apoio e criação estão
perfeitamente a serviço da montagem.
A cenografia,
assinada por PAULO DENIZOT,
resume-se a um armário de ferro ou aço, desses encontrados em vestiários, com
cinco ou seis compartimentos, deitado no chão, com as portinhas voltadas para cima. De
dentro dele, os atores retiram objetos a serem utilizados em algumas cenas. É
preciso que se diga que o Espaço Abu é muito pequeno,
comportando apenas uma média de 40 espectadores, por sessão,
dependendo da configuração compatível com cada peça, o que, indubitavelmente, é
um problema para os cenógrafos, os quais não podem se “expandir” muito. Para um
profissional da cenografia, competente e criativo, é um desafio, porém fácil de ser
contornado, como o fez DENIZOT. Sobre o único elemento cênico, ainda tenho a dizer que considero ótima a ideia de o público contribuir com o cenário, ao ser convidado, terminado o espetáculo, a deixar alguma coisa escrita nas faces brancas do móvel, alguma mensagem, qualquer coisa relativa à peça. No momento em que não houver mais espaço a ser preenchido, as pessoas poderão continuar a escrever sobre o linóleo branco, que reveste o piso do espaço cênico.
Os figurinos,
assinados por HUMBERTO CORREIA, estão
completamente adequados aos dois personagens. São únicos, durante toda a
encenação, dando-nos a impressão de serem peças do próprio guarda-roupa dos
atores. Se são ou se apenas nos dão essa ideia, isso não faz a menor diferença,
uma vez que funcionam muito bem em cena. E é o que basta.
PAULO DENIZOT também se encarregou da iluminação.
Assumo que, decorridos uns 20 minutos iniciais de peça, comecei
a achar que o desenho de luz parecia muito simples e “inadequado”, noção que,
aos poucos, foi sendo modificada, até que eu ficasse deslumbrado com a luz de
uma determinada cena – não darei “spoiler” –, que vale
por todo o espetáculo.
Salvo engano, pela
primeira vez, em 11 anos de blogue, praticando a crítica teatral, já tendo
escrito mais de 800, é a primeira vez que inicio uma dissertação sobre
uma peça pelos três componentes acima comentados, porém isso tem a ver com o
parágrafo com o qual iniciei esta minha visão crítica do espetáculo.
SINOPSE:
Com quantos amigos se destrói uma “Fortaleza”?
A peça joga luz sobre a construção da masculinidade,
por meio da relação de dois melhores amigos.
Muito mais do que responder a perguntas, propõe
questionamentos e reflexões, deixando que cada espectador saia com a
sua própria interpretação.
O texto inédito, de JOSÉ PEDRO PETER, narra a história de dois amigos de infância, PH (CARLOS MARINHO) e Bruno (JOSÉ PEDRO PETER), que veem sua amizade acabar, por causa de preconceitos, inseguranças e pressão dos pais e colegas de escola.
“FORTALEZA” só vem ratificar o meu ponto de
vista de que a maior viga de sustentação de um espetáculo teatral reside na boa
qualidade do texto, o qual, efetivamente, deve girar bem torno de uma
boa ideia, de uma boa história. A dramaturgia aqui é de JOSÉ PEDRO PETER, que, em teatro,
se destaca mais como produtor. Embora já tenha feito
alguns trabalhos como ator e adaptador de texto (“A Última Ata”, espetáculo
recente, é um dos bons exemplos.), pela primeira vez, se apresenta como
autor,
o que o credencia a continuar investindo na profissão. A história é excelente e
a maneira como ele a conta, de forma não linear, do ponto de vista cronológico,
é admirável. O grande mérito desta peça começa pelo texto.
O fato de uma dramaturgia ser atemporal e universal, sob os meus
critérios, já conta positivamente, e se ela se pontua com mais pertinência nos
dias atuais, considero isso melhor ainda, como é o caso de “FORTALEZA”, trazendo à tona, para reflexões e debates, alguns
importantíssimos “vieses” numa relação interpessoal, como amizade, “bullying”, sexualidade,
descoberta da sexualidade, remorso, culpa e perdão,
entre dois amigos de infância.
Não posso me estender muito nos meus comentários, ainda que a vontade de esmiuçar cada aspecto importante do texto seja enorme, por estar muito atarefado, com pouquíssimo tempo disponível, e, principalmente, para – mais uma vez vou dizer – não dar “spoilers”. Tenho que me policiar muito quanto às duas justificativas, principalmente quanto à segunda, para não roubar o prazer aos que ainda irão assistir à peça. Há muitas surpresas durante a peça.
PH, personagem de CARLOS MARINHO, é quem conta a história,
alternando-se entre narrador e personagem. Ele e Bruno, interpretado por JOSÉ PEDRO PETER, são “melhores
amigos!” desde a infância, mas o tempo presente, para os dois é quando já
se tornaram adultos, na casa dos 35 aos 40 anos. Isso é um indicativo
de que, no texto, sobra espaço para admiráveis “flashbacks”. Conquanto
vivesse uma vida aparentemente “tranquila”, já casado, com mulher e
filhos, PH carrega uma culpa e um arrependimento de/por algo que, aos
poucos, vai sendo desvendado e compreendido pelo público; e não consegue ficar
em paz com o seu passado. “Ele apenas sobrevive”, como diz o
dramaturgo. E como existem PHs por aí, infelizmente, resultado de uma
educação rígida e equivocada de um pai extremamente preconceituoso, um
ignorante “fascista”, daqueles que dizem que “prefiro ter um filho ladrão do
que (sic) viado (sic)”. Um boçal, que “tem certeza” de que “a
AIDS é doença de viados (sic) e só eles a transmitem”. Toda a estrutura humana de PH foi construída à sombra de mentiras, de farsas, de “fake
news”, tão ao gosto da “ignorantalha abjeta e fascista”, a ponto de fazer dele um
atormentado refém do que aconteceu com seu melhor amigo no passado, carregando
uma culpa por algo que ele não é capaz de reverter. Aliás, ninguém.
Durante a infância,
enquanto ainda não tinham discernimento para discutir e entender coisas da
sexualidade e da masculinidade, tudo fluía como uma regato manso entre a dupla, entretanto,
chegada a adolescência, com o desabrochar do interesse pelo corpo, o próprio e
o alheio, parece que uma “Babel” desmoronou sobre eles, os
quais passaram a ter dificuldade de comunicação, por conta de divergências de
pensamentos. Tudo em virtude das “verdades” em que PH acreditava,
fomentado pela “educação” de um pai intolerante e insipiente para seu filho “macho”.
“PH
não mede esforços, para deixar claro seu ponto de vista preconceituoso e o
machismo, herdados do pai.” (Trecho extraído do “release” a mim enviado
por GUILHERME SCARPA - assessoria
de imprensa.). Um dos pontos altos dessa “distorção” é o rapaz não
aceitar que Bruno aprecie a obra de um grande poeta, o cantor e compositor Cazuza,
porque o pai lhe dissera que não se pode gostar de um cantor “gay”,
que está com AIDS e é um perigo, pois transmite a doença até por toque em
outra pessoa.
Bruno é vítima da intolerância, da desinformação, da estupidez e do machismo, expresso ou estrutural, generalizado. Não importa. É vítima, assim como, o amigo PH, de certa forma, também o é. Mas é Bruno quem sofre uma pesada carga de humilhação e perseguição, em virtude de sua orientação sexual, não assumida, por medo de ser quem é, por receio de sofrer mais do que já sofria. No fundo, também, é aquele que sabe o que quer, porém não tem a coragem suficiente para fazer valer sua natureza humana, por viver numa sociedade machista e intolerante. Ou será que não sabia? Vivia em constante conflito consigo mesmo, sem coragem (Ou seria condição?) de "chutar a porta do armário". A pressão que sofria fazia com nem ele mesmo tivesse certeza de seus instintos sexuais.
O texto traz, de forma
muito pertinente e precisa, referências dos anos 1980 e 1990,
tais como o já citado Cazuza, a banda de “rock”
inglesa “Oasis” (1991–2009), fitas VHS e revistas pornôs, vendidas
em bancas de jornal, dentro de um saco plástico preto, apenas para maiores de
idade, mas que eram adquiridas por adolescentes e jovens menores de 18
anos, mediante um “agrado” ao jornaleiro “corrupto” do bairro. Os dois personagens, adolescentes típicos naquela época, não eram exceção a
essas referências – menos PH, com relação a
Cazuza - e tinham como um dos passatempos preferidos, assistir a filmes
pornôs, um na casa do outro, com direito a “sessões de masturbação”. E foi
exatamente durante a descoberta da sexualidade, sob o domínio dos hormônios masculinos,
que começou a ser destruída a “FORTALEZA” que os protegia. A partir
daquela fase, tão difícil para qualquer adolescente, começou a se deteriorar
uma linda amizade em que PH servia de exemplo para Bruno,
na visão dos pais deste, porém a recíproca não era verdadeira. É o momento em
que o “bullying”, na escola, começou a tomar forma e Bruno
passou a ser o “boiola” do grupo. Principalmente os homens que orbitam na
faixa dos 35/40 anos se identificarão com as mensagens da peça e poderão entender
melhor como foi formada a geração de homens dessa faixa etária, o que não quer
dizer que os mais velhos também não o consigam.
A presença
da banda “Oasis”, um dos ícones da juventude mundial daquela época,
nesta peça, vai muito além de contribuir com uma canção para compor a ótima trilha
sonora, obra de DANIEL DIAS DA
SILVA. A canção é “Wonderwall”, cuja tradução mais
pertinente é “porto seguro”, em forma adjetivada, como alguém que protege,
dá sustentação e é indispensável à existência de uma outra pessoa. Os dois
amigos eram fãs da banda e, em especial, de “Wondewall”, cuja
tradução de alguns versos aqui está: “Eu não acredito que alguém / sinta
o mesmo que eu sinto por você agora. / E todas as estradas / que temos que
percorrer são tortuosas. / E todas as luzes / que nos levam até lá são
ofuscantes. / Há muitas coisas que eu / gostaria de dizer a você, / mas eu não
sei como, / porque, talvez, / você será aquele que me salva. / E, depois de
tudo, / você é meu protetor”.
As feridas podem ser
curadas, mas as cicatrizes são eternas e, indelevelmente, atuam como afiados
punhais a nos ferir, todas as vezes que olhamos para elas. Segundo DANIEL DIAS DA SILVA, a peça é “uma
espécie de ‘Dom Casmurro’ moderno”. O Espaço Abu não é só um
desafio para o cenógrafo; também o é para o diretor, uma vez que, por ser
pequeno e comportar duas pequenas arquibancadas, com cadeiras, para o público,
num formato de quase uma “meia arena”, já, de certa forma, “impõe”
uma dinâmica de direção, ou, pelo menos, a limita, deixando sobrar uma área
muito restrita para que o diretor “se vire” em traçar boas marcações e
empreenda um ritmo dinâmico ao espetáculo, para que não se formem “barrigas”
durante a apresentação. Com bastante experiência no TEATRO, quer como ator, quer
como diretor, DANIEL transpôs todos
as muralhas que tinha à sua frente e realizou um ótimo trabalho de direção,
tirando partido de cada fala, sugerindo mais que mostrando. São excelentes os
anticlímax; ou falsos clímax, que ele consegue, contando com o talento do par
de atores. Poucas pessoas percebem, enquanto aguardam o início da peça, sons de vozes e gritos de crianças num recreio escolar.
Para finalizar estas considerações, resta-me exaltar o trabalho de CARLOS MARINHO e JOSÉ PEDRO PETER, como PH e Bruno, respectivamente. Fico muito feliz, quando consigo aplaudir o talento de jovens atores, empenhados em apresentar um trabalho que convença o espectador, assim como o faça rir, quando for necessário, e mexa com o seu sentimento. Melhor ainda é quando provocam empatia, naqueles que a têm, naturalmente; ou seja, tudo o que consegui enxergar na dupla. Ambos abraçaram seus personagens com muito afinco e, sobretudo, amor. Cada personagem que um ator representa é como se fosse parte de si próprio, até mesmo quando a “persona” é o oposto da pessoa. Se represento um assassino estuprador, muito embora eu não seja um e abomine esse tipo de “gente”, preciso “amar” o personagem, defender, “com unhas e dentes”, esse meu “filho”, que eu criei, para poder contribuir com a minha parte, a fim de que uma história ficcional se torne o mais possível verossímil. Assim agem MARINHO e PETER em cena, dando-nos a impressão de que estamos diante de uma verdadeira “lavação de roupa suja”, como se atores e personagens fossem um elemento uno, indivisível, tal é a naturalidade com que atuam.
Dramaturgia: José Pedro
Peter
Direção: Daniel Dias da
Silva
Elenco: Carlos Marinho e
José Pedro Peter
Cenário: Paulo Denizot
Figurino: Humberto
Correia
Iluminação: Paulo
Denizot
Assistente de Direção:
Vitor Almeida
Movimento de Corpo:
Marcelo Aquino
Assessoria de Imprensa:
Dobbs Scarpa
Fotos: Roberto Cardoso
Arte: Cristian Schumman
Coprodução: Territórios
Produções
Produção e Realização: PEDROPETERPROD
Temporada: De 02 de
março a 01 de abril de 2023.
Local: Espaço Abu.
Endereço: Avenida Nossa
Srª. de Copacabana, nº 249 - Loja E – Copacabana – Rio de Janeiro.
Dias e Horários: Sábados,
domingos e 2ªs feiras, às 20h.
Valor dos Ingressos: R$
60 (inteira) R$ 30 (meia-entrada).
Duração: 70 minutos.
Indicação Etária: 14
anos.
Gênero: Drama.
Não resta a menor dúvida de que a temática explorada na peça é bastante “pesada”, forte, sofrida, e a história poderia ter sido contada de uma forma até chocante. O autor não poupou palavras “duras”, no texto, embora também nos alivie, de vez em quando, com toques de humor, mas a direção encontrou uma atalho para tornar a aspereza mais suave, sem deixar, porém, de chamar a atenção do público para a importância do tema, cada vez maior, nos dias de hoje. Se não fosse a cumplicidade de uma equipe e a brilhante interpretação do elenco, eu, talvez, não estivesse aqui, dando as últimas “marteladas” no teclado, para dar forma a este texto.
RECOMENDO, COM EMPENHO, O ESPETÁCULO!
FOTOS: ROBERTO CARDOSO.
GALERIA PARTICULAR:
(Fotógrafos Diversos.)
VAMOS AO TEATRO!
OCUPEMOS TODAS AS SALAS DE
ESPETÁCULO DO BRASIL!
A ARTE EDUCA E CONSTRÓI, SEMPRE; E SALVA!
RESISTAMOS SEMPRE MAIS!
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JUNTOS, POSSAMOS DIVULGAR O QUE HÁ DE MELHOR NO TEATRO BRASILEIRO!
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