CAROS
OUVINTES
(UMA VERDADEIRA, E AGRADÁVEL,
AULA DE HISTÓRIA DO BRASIL, ATRAVÉS DAS ONDAS DO RÁDIO.)
Sexta-feira,
5 de dezembro de 2014, dia de conferir o tão elogiado espetáculo CAROS OUVINTES, em cartaz, naquele dia,
na Grande Sala do MASP. Assisti à peça e adorei o que vi. Embora já tenha terminado sua trajetória,
após uma longa temporada, de sucesso de público e de crítica, vale a pena o
registro. Espero que venha para o Rio de
Janeiro.
SINOPSE:
CAROS OUVINTES é uma comédia sobre o começo das telenovelas, visto
sob o olhar dos atores que faziam sucesso nas radionovelas.
Na década de 60, sob o
peso da ditadura militar, quando os aparelhos de televisão começaram, aos
poucos, a fazer parte das casas brasileiras, o público passou a prestar atenção
não somente na voz dos personagens, mas também em sua imagem. Assim, muitos atores, que faziam sucesso no
rádio, começaram a temer a TV: galãs, cujos visuais, até então, não eram
conhecidas do grande público, na verdade, eram gordinhos e carecas; muitas
mocinhas, de voz doce e suave, tão cobiçadas pelo universo masculino, ao vivo
e, ainda, não em cores, já eram senhoras.
Em CAROS OUVINTES, a ação se passa numa das últimas emissoras a
produzir e transmitir radionovelas. O
elenco prepara uma grande apresentação ao vivo, no último capítulo, para,
depois, se despedir do público, em um palco armado do lado de fora da estação
de rádio.
VICENTE MARTINHO (PETRÔNIO GONTIJO), o produtor da radionovela,
mantém, com a atriz CONCEIÇÃO NEVES
(NATÁLLIA RODRIGUES), um caso amoroso, que entra em colapso, quando ela é
chamada para estrelar uma telenovela.
Empenhado em que o último capítulo da radionovela seja impecável, VICENTE conta com a absoluta lealdade e
profissionalismo do sonoplasta EURICO
BOAVISTA (ALEX GRULI) e do locutor WILSON
NÉLSON (RODRIGO LOPEZ).
VESPÚCIO NETO (ALEXANDRE SLAVIERO), um publicitário, quer que o
casal romântico da rádio repita a dose na telenovela, que seu cliente irá
patrocinar, despertando ódio em PÉRICLES
GONÇALVES (EDUARDO SEMERJIAN), um ex-galã anacr, ERMELINDA PENTEADO (AGNES ZULIANI) e a cantora decadente LEONOR PRAXEDES (AMANDA ACOSTA).
A série de atritos é
desencadeada quando o anúncio de que o patrocinador passará a produzir
telenovelas vem à tona, colocando em risco o final da radionovela.
Outro tema também abordado
na peça, ainda que superficialmente, uma vez que, durante a ditadura militar,
tudo era proibido, é a questão da homossexualidade, representada por dois
personagens, um dos radioatores, que é apenas citado, mas não aparece em cena,
e o locutor.
O título da peça é uma
expressão que se tornou o bordão de milhares de radialistas na chamada Era de Ouro do Rádio, no período de
1940-1960.
Achei muito feliz, inteligente, a
ideia de OTÁVIO MARTINS, que
escreveu o texto, de abordar a decadência do folhetim numa mídia, o rádio, e o
começo de sua trajetória em outra, a televisão.
Mais interessante, ainda, é ter explorado um momento marcante, e triste,
da nossa história, que foi o golpe militar de 1964 e seus infinitos e tristes
desdobramentos, que vivenciamos até os dias de hoje.
Por ser muito bem cuidado, o espetáculo merece comentários detalhados:
1) Com
relação ao excelente texto, OTÁVIO MARTINS consegue, com maestria,
construir diálogos interessantes e mesclar elementos da comédia com os do
drama, na dose certa, de modo a divertir a plateia e a fazê-la, também,
refletir sobre os perigos advindos da ditadura militar, bem como foi difícil,
para os que não comungavam com o golpe, sobreviver, imunes, a uma perseguição
política e cruel. O texto faz rir bastante e pode, até, fazer chorar, sem apelar para o
pieguismo, mas, ao contrário, deixando aflorar a inteligência e a sensibilidade
do dramaturgo, o qual abusa da riqueza de detalhes precisos e preciosos.
2) OTÁVIO acumula as funções de autor
e diretor da peça, o que deve ser,
de certa forma, uma experiência bem interessante, já que, ao materializar, no
palco, o que escreveu, o diretor/autor
já tem o desenho do que deseja transmitir ao público. As tradicionais “rubricas do autor” até se
tornariam desnecessárias no papel. No
caso desta peça, tendo à sua disposição um ótimo elenco, ele soube extrair, de
cada ator, o melhor de seu desempenho, atingindo um excelente resultado, quase
que sem “estrelas”, devido ao nivelamento do grupo. A direção impõe um ritmo à peça, que faz com
que os noventa minutos de espetáculo pareçam nove. Bela direção!
3) Um elenco (em ordem
alfabética) como o desta peça merece comentários individuais:
AGNES ZULIANI (ERMELINDA PENTEADO): É uma pena que seu trabalho
fique restrito aos palcos paulistanos, pelo menos para mim (Não me lembro,
infelizmente, de tê-la visto, em TEATRO,
antes, ou a memória me falha neste momento).
Trata-se de uma atriz que merecia receber os aplausos de outras praças,
principalmente do Rio de janeiro. Que
excelente trabalho! Sua personagem é forte,
emblemática, representa o que havia de mais reacionário após o golpe de 64,
acrescida da “função” de delatora, de traidora dos colegas, “papel” a alguns
artistas atribuídos naquele momento negro da nossa história. É marcante a cena em que, despida de qualquer
pudor ou medo, sua personagem faz um discurso contra os subversivos, em defesa
do regime de exceção, regime este que “defende a família e a pátria”. Nunca me cansaria de vê-la atuando.
ALEX GRULI (EURICO BOAVISTA): Que ótimo ator! Como sonoplasta da novela, é o responsável pelos
melhores momentos de humor da peça. Tem
um excelente “timing” para a comédia. É
brilhante na cena em que tudo dá errado, durante o último capítulo da novela, e
o sonoplasta tem de improvisar, freneticamente, fugindo ao que estava no
“script”, utilizando os mais bizarros recursos, para atingir os sons
necessários à cena. A plateia delira
nesse momento, graças ao desempenho do admirável ator. Tornei-me um grande admirador do seu
trabalho.
ALEXANDRE SLAVIERO (VESPÚCIO NETO): É o representante do
capitalismo patrocinador das novelas, o “testa de ferro” de quem só tem cifrões
nos olhos e pouco se importa para preservar um patrimônio cultural, que seria a
radionovela. A ele, ou melhor, aos que
ele representa, já que é um publicitário que responde pelo patrocinador, só
interessa o “progresso”, pisando sobre tudo o que acha passado e retrógrado; ou
seja, o que não rende tanto lucro. O
personagem, aparentemente, não é dos mais importantes na trama, mas o ator se
sai muito bem na sua representação e o valoriza bastante.
AMANDA ACOSTA (LEONOR PRAXEDES): Considero-me “suspeito” para
analisar o trabalho da AMANDA, uma
vez que sou seu fã incondicional, pela bela voz e pelos seus trabalhos em
musicais que tive a oportunidade de ver, no Rio de Janeiro (Esta é a Nossa Canção) e em São Paulo (My Fair Lady). Sua
personagem é uma cantora decadente, exatamente como se deu, na vida real,
quando do advento da TV. Os musicais da
televisão não comportavam as divas da época e poucas sobreviveram,
infelizmente. Ao mesmo tempo em que
lamenta a sua sorte, LEONOR luta,
ferrenhamente, para tentar manter viva a chama do rádio e a dignidade de sua
profissão. Mais um excelente trabalho no
currículo da cantriz! Seus números
musicais, na peça, são uma atração à parte.
Aplaudi muito cada um deles.
EDUARDO SEMERJIAN (PÉRICLES GONÇALVES): Certamente, de todos, o
personagem é o mais prejudicado, com o surgimento da televisão. Vive uma realidade que ele criou, para alimentar
o próprio ego. Julga-se, ainda, detentor
do sucesso e do carisma de outrora, recusando-se a reconhecer que está
ultrapassado. EDUARDO é um dos grandes atores de TEATRO brasileiro e, mais uma vez, provou seu talento, depois de já
ter me emocionado tanto na última peça em que o vi atuar, ainda este ano, no
Rio: A Bala na Agulha. Um bom
personagem para um ótimo ator.
NATÁLIA RODRIGUES (CONCEIÇÃO NEVES): Com lugar garantido na novela
de TV, sua personagem poderia assumir uma postura de acomodação, diante das
perspectivas de um futuro sucesso, já que ainda é jovem e bonita, encaixando-se
no perfil exigido pela TV, entretanto, numa atitude bonita e corajosa, alia-se
aos colegas pela defesa da radionovela.
Boa atuação da atriz.
PETRÔNIO
GONTIJO (VICENTE MARTINHO): Infelizmente, não posso avaliar seu trabalho,
uma vez que, na sessão a que assisti, seu personagem foi interpretado por MARCOS DAMIGO, de quem passo a falar:
Como diretor da estação de rádio, vê-se mexido e ameaçado pelo advento da TV e
luta, com garras e dentes, como uma leoa, na defesa da cria, e não abre mão de
sua ideologia. Joga todas as suas fichas
e arrisca-se, bravamente, a lutar por seus “subordinados”, numa atitude louvável
de comandante de um barco, na iminência de um naufrágio, determinado a ser o
último a abandoná-lo. Ótimo trabalho do
ator.
RODRIGO
LOPES (WILSON NÉLSON): personagem muito interessante e difícil de ser
interpretado, uma vez que requer do ator um cuidado muito grande, para passar
ao público a sua condição de gay, hermeticamente “trancado num armário”, que
vive uma relação não assumida com aquele que será o futuro galã da telenovela e
que não aparece em cena. Vivencia uma
situação de dupla dor, por ter de se reprimir em seus sentimentos e pelo
sofrimento e preocupação com a prisão de seu companheiro, o que se deu pelas
forças da repressão, uma vez que o rapaz tinha envolvimento com o sindicato dos
atores, considerado pecado mortal pela ditadura militar. Numa atitude corajosa, para a época, acaba
assumindo sua condição de gay, numa cena emocionante. Pontos para o ator.
4) O cenário,
de MARCO LIMA, é excelente. Reproduz, com total fidelidade, os estúdios
de uma estação de rádio: dois “aquários”, um em cada extremidade lateral do
palco, sendo um, especificamente, para a sonoplastia das radionovelas, e outro para
a execução de músicas. Ao centro do
palco, um terceiro estúdio (espaço aberto), onde os radioatores se apresentam,
o locutor lê os anúncios dos patrocinadores e a cantora apresenta, ao vivo,
seus números musicais. Um grande achado,
esse cenário!
5) Os figurinos
da peça, de FÁBIO NAMATAME, são dignos
de muitos elogios. Criativos, originais,
fiéis à moda da época, bem confeccionados...
6) O apuro nos detalhes do que poderíamos chamar
de “direção de arte”, afetos ao cenógrafo e ao figurinista, estão presentes, por exemplo, na forma de umas galochas,
usadas pela personagem ERMELINDA
PENTEADO, e pelo mimeógrafo, que reproduz os capítulos da radionovela, para
os radioatores.
7) Outro detalhe interessante, nesta peça, é a
inserção de notícias da época, nos intervalos da novela. É ótima essa mistura de realidade e
ficção. Não permite que o público
“viaje”, apenas, na história, mas que, vez por outra, pise o chão firme e se
lembre do preço que pagamos para atingir o atual estado de democracia, embora
esta ainda um pouco questionável, em tempos dos governos “ditos” democráticos,
após o período das trevas, principalmente os mais recentes, incluindo o atual.
8) Questões sociológicas muito emblemáticas,
citadas na peça, são o fato da reprovação a mulheres que fumavam e a estranheza
pelo fato de uma mulher utilizar talão de cheques, assim como o constrangimento
e a discriminação impostos aos filhos de pais desquitados.
9) Apesar de se passar numa determinada época e de
ter como pretexto registrar e mostrar a decadência, pelo menos aparente, do
rádio, no Brasil, perdendo espaço para a TV, esse gancho serve de “escada”, ou
de suporte, para que seja mostrado o quanto de terror o regime ditatorial, dos
militares, representava para o povo civil, de uma maneira geral, e, ao mesmo
tempo, trata-se de um texto muito atual, quando assistimos, em pleno século
XXI, atitudes de despotismo, por parte dos governos, principalmente na esfera
federal, ao mesmo tempo em que, nas ruas ou nas redes sociais, vemos algumas,
ainda que, graças a Deus, discretas, manifestações, de pessoas alienadas e
inconsequentes, que, insatisfeitas com o tsunâmi de corrupção que assola o
país, reivindicando a volta dos militares ao poder. VADE
RETRO!!!
10) Gostei muito da luz, de WAGNER FREIRE,
um elemento de extrema importância neste espetáculo.
11) Também merece um destaque positivo a música original, composta por RICARDO SEVERO.
Para finalizar, só me resta
dizer que CAROS OUVINTES é daqueles
espetáculos que cumprem duas das mais importantes funções do TEATRO: divertir e fazer pensar. Na sessão em que estive presente, a plateia
deve ter mais se divertido do que outra coisa, uma vez que havia muitos
estudantes, jovens adolescentes, que, decerto, precisam conhecer mais detalhes
da nossa história recente, para poder entender melhor o espetáculo. Em contrapartida, ouvi, no saguão do teatro,
enquanto aguardava amigos do elenco, para cumprimentá-los, comentários de
pessoas mais velhas, que conseguiram captar a outra, ou a mais importante,
intenção do autor do texto.
Que bom! TEATRO
é isso, e para isso!
Façamos uma cruzada pela vinda
da peça ao Rio, para uma longa temporada, de preferência. Os cariocas merecemos CAROS OUVINTES.
FICHA TÉCNICA:
Texto e Direção: Otávio Martins
Elenco (em ordem alfabética): Agnes
Zuliani (Ermelinda Penteado), Alex Gruli (Eurico Boavista), Alexandre Slaviero
(Vespúcio Neto), Amanda Acosta (Leonor Praxedes), Eduardo Semerjian (Péricles
Gonçalves), Natália Rodrigues (Conceição Neves), Petrônio Gontijo / Marcos Damigo (VicenteMartinho) e
Rodrigo Lopes (Wilson Nelson).
Diretora Assistente: Maria Silvia Siqueira Campos
Assistente de Direção: Marcos Damigo
Desenho de Luz: Wagner Freire
Cenografia: Marco Lima
Música Original: Ricardo Severo
Figurino: Fábio Namatame
Fotografia: Priscila Prade
Direção de Produção: Ed Júlio
Produção Executiva: Gabriel de Souza
Relacionamento Empresarial: Laís Campos
Assessoria de Imagem: Beatriz Cervone
Assessoria de Imprensa: Morente Forte Comunicações
Realização: Baobá Produções Artísticas
(FOTOS: PRISCILA PRADE)
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