DOIS
AMORES E UM BICHO
(OU MUITOS BICHOS PARA POUCOS
AMORES?)
Para
mim, um espetáculo é bom, quando saio do teatro feliz, seja que gênero for, e
com vontade de ligar, imediatamente, para todos os meus amigos (o custo seria
alto, graças a Deus), recomendando-lhes a peça.
Sempre fui assim. Se gosto de um
espetáculo teatral, de um filme, de um livro, de um disco, não sossego,
enquanto não conseguir fazer com que as pessoas que me são muito caras possam
compartilhar comigo o prazer daquela “degustação”.
Foi
o que aconteceu, numa noite chuvosa e fria de uma sexta-feira, quando deixei o Galpão das Artes do Espaço Tom Jobim,
dentro do Jardim Botânico.
O
nome da peça é DOIS AMORES E UM BICHO,
de um autor venezuelano, GUSTAVO OTT,
pela primeira vez encenado em palcos brasileiros, e que, infelizmente, só fica em cartaz até o dia 10 de agosto. NÃO
PERCAM!!! Espero que o espetáculo se
transfira para outro teatro, finda a atual temporada. Gostaria de revê-lo.
Procurarei
ser breve na justificativa para tanta empolgação por essa peça. A leitura de uma simples sinopse do texto já
é motivo para atrair o espectador ao teatro.
É instigante e abre um leque de expectativas para quem se propõe a
assistir ao espetáculo.
Vítor Fraga.
Yndara Barbosa (de
costas) Ana Paula Novellino e Vítor Fraga.
SINOPSE 1: “Num zoológico, um orangotango
maltratado chama a atenção de uma família, que, a partir daí, relembra um
episódio traumático do passado.” (Mais
instigante é impossível! Economia de palavras,
provocando interesse e alimentando a curiosidade. O porquê dos maus-tratos? Que “episódio do passado” teria uma relação
com um orangotango maltratado num zoológico?)
SINOPSE 2: “Uma família está entretida
num zoológico. Isolado em sua jaula, um
orangotango chama a atenção. O bicho
fora colocado em quarentena, por ter molestado outro macaco. O motivo leva CAROL, veterinária do zoológico, a se lembrar do episódio que levou
o pai, PABLO ESTEFANO, à prisão,
quando ela era criança. Ele matara o
cachorro da família.” (Mais detalhes instigantes. O verbo “molestar” apresenta dezenas (isso
mesmo) de significados. Por qual deles o
pobre orangotango teria sido responsável?
Que razão teria levado o pai da veterinária a matar o cachorro da
família e que relação isso teria com a molestação do animal enjaulado a um
outro bicho do zoológico?)
SINOPSE
3: “DOIS AMORES E UM BICHO
foi adaptado do texto do venezuelano GUSTAVO OTT. No espetáculo, o público é
convidado à sala de estar de uma adorável família, às voltas com crimes do
passado e do presente. Em meio a um jogo
perverso e patético, eles encenam e revivem o passado, investigando os motivos
que levaram PABLO, o pai, a espancar
um cachorro, até a morte, há 15 anos. No
presente, novos assassinatos de animais começam a ocorrer em um zoológico das
redondezas. Os crimes teriam ligação?! (Agora,
é para levar o leitor da sinopse a largar tudo o que está fazendo e correr ao
teatro. Crimes do passado e do
presente? A forma como Pablo matou o cão
foi por espancamento (pontapés), e há 15 anos? Mortes sucessivas de animais no zoológico? Assassinatos ou mortes naturais? Ligação entre tudo isso?)
Ana
Paula Novellino e Vítor Fraga.
O enredo se
destaca por seu caráter inusitado. Um
fato acontecido no passado, quando CAROL
tinha nove anos, levou seu pai, PABLO,
a cumprir, por quarenta dias, uma prisão: ele matara, a pontapés, o cão da
família, mas a filha não entendera o motivo.
Apenas KAREN, a mãe da menina,
sabia o segredo, ou seja, a causa de tão brutal e letal espancamento.
O tempo passou,
CAROL, agora moça, se tornou
veterinária e foi trabalhar no zoológico próximo à residência da família, lugar
este visitado, frequentemente, por seu pai, o qual também era veterinário, daí
uma grande identificação e afinidade entre os dois, muito mais do que entre mãe
e filha.
Yndara
Barbosa.
Numa tarde, em
visitação ao zoo, o casal PABLO e KAREN, encontrou um orangotango
confinado, isolado, numa jaula, “de castigo”, e ao questionar o motivo daquilo,
ficaram sabendo, pela filha, que o animal, macho, estava “de quarentena”,
porque estava tentando praticar sexo com outros animais do mesmo sexo.
Aquela
explicação mexeu, profundamente, com o casal e, a partir dali, o passado veio à
tona e ficou esclarecido o que levara PABLO
a, num ato de total desatino, violentar, até a morte, o cão da família: este
também tinha o hábito de práticas homossexuais com outro cão da casa, o que era
inadmissível para o chefe da família.
Há quinze anos, uma bomba explodira em uma
escola, matando crianças, professores e funcionários. Exatamente no momento em que a TV, em casa da
família, noticiava o terrível, estúpido e inaceitável ato terrorista, o pai percebera
a prática “errada e proibida” dos dois cães machos, sendo que, segundo ele, o
sodomizado (Bandido) tentava não
ceder às investidas do “tarado” (Cabral), que, maior e mais forte, o molestava, “à
força”, às vistas da família. A
morte cruel de quinze seres humanos não fora capaz de superar a fúria do homem
diante de um fato muito menos grave, o relacionamento homossexual entre dois
animais de classe inferior.
Flashback.
“Matei porque era um cachorro homossexual”. Essa frase do personagem gera uma
desconfiança de que um homossexualismo latente, inconsciente ou conscientemente
não admitido e aceito por ele, bem lá no seu âmago, pode ter sido a verdadeira
causa de sua homofobia, o que o levou ao tresloucado gesto. Quem assistir à peça poderá refletir sobre
isso, juntando trechos de algumas de suas falas à maneira como elas são ditas.
Quem
sou eu?
A
homossexualidade entre não-humanos, há muito, vem sendo motivo de estudos sérios
e profundos, e a ciência já afirma ser um fato real, incontestável, entre as
mais diferentes espécies do reino animal.
E este é um dos ganchos utilizados pelos “gays” na defesa de sua causa:
o homossexualismo é patente entre animais de uma forma geral, porém o Homem é o
único animal homofóbico, motivo de tantas tragédias, no mundo moderno e no passado.
Até aquela tarde, no zoológico, a família não havia travado uma conversa
acerca do que levara PABLO ao curto
período de prisão, quinze anos atrás, entretanto a insistência da filha em
saber o que acontecera, e seu porquê, gera um diálogo em que reinam, à solta, o
patético, o perverso, o tenso, o sarcasmo, o sádico e, até mesmo, o lírico. Por outro lado, a troca de farpas e acusações,
sem que se saiba até que ponto os personagens são sinceros no que dizem ou mentem,
para se livrarem de culpas e arrependimentos, leva ao término de um casamento com aparência sólida, mas de alicerces
frágeis.
O texto, muito
bem escrito e, da mesma forma traduzido, é bem atual – pode-se dizer “de
vanguarda” - por tratar de temas tão em evidência nas mídias, como homofobia (o
principal de todos), violência, terrorismo, hipocrisia e intolerância, de uma
forma geral, dentre outros. Nota-se nele
um interessante paralelo entre terrorismo e intolerância e uma dualidade, durante
todo o seu decorrer, entre tolerância e intolerância. Aquela, como caminho para a libertação, para
uma independência; esta, como uma porta para os conflitos, os crimes. Os diálogos são muito bem construídos e não
economizam palavras que funcionam como dedos certeiros em feridas mal
cicatrizadas. Não se pode omitir que o
texto mescla diálogos com uma espécie de solilóquios, quando o personagem “conversa”
diretamente com a plateia. É muito bem
aplicada essa técnica na peça. Também é
bastante interessante a presença dos “flashbacks”.
O espetáculo
foi escrito para ser apresentado no tradicional palco italiano, entretanto o
diretor, GUILHERME DELGADO, optou
pelo formato de arena, o que, indubitavelmente, foi um grande acerto, uma vez
que a proximidade do público com a cena favorece uma participação mais ativa dos
espectadores, que se “projetam” nas situações, quase que participando da
contenda, tomando este ou aquele partido, nas discussões que envolvem, direta
ou indiretamente, aspectos ligados a ética, moral, homossexualismo, justiça,
impunidade, consciência crítica, “politicamente correto” e mais alguns outros
valores sociais.
Comentários
sobre a ficha técnica:
TEXTO: GUSTAVO OTT – já foram feitos.
TRADUÇÃO: CARLITO AZEVEDO – Idem.
DIREÇÃO e CONCEPÇÃO VISUAL: GUILHERME
DELGADO – Excelente trabalho! Não
assisti a nenhuma outra montagem deste texto, mas posso afiançar que ganhou
muito em qualidade pelas mãos de um diretor competente. Além dos três membros da família, há a
participação de outros poucos personagens de pouca relevância, os quais,
originalmente, eram representados pelas duas atrizes, entretanto a opção do
diretor, em incluir um quarto ator, revezando-se em todos, foi muito acertada.
ELENCO: VÍTOR FRAGA (PABLO ESTEFANO), ANA
PAULA NOVELLINO (KAREN), YNDARA BARBOSA (CAROL) e LUIZ PAULO BARRETO (vários
personagens). Há um grande equilíbrio
na atuação do quarteto, com um certo destaque para VÍTOR e ANA PAULA, os
quais, talvez, pela grande carga dramática de seus personagens, conseguem, em
determinados momentos, prender mais a atenção da plateia e provocar-lhes
sentimentos até opostos, como ódio e piedade.
CENOGRAFIA: CARLOS AUGUSTO CAMPOS –
Muito boa! Algumas pequenas jaulas, de
tamanhos diversos, estão espalhadas sobre a arena ou pendentes do teto, “recheadas”
de animais de pelúcia (lindos, por sinal), de vários tamanhos, aprisionados, à
espera de uma liberdade (vão, aos poucos, sendo retirados das jaulas, à medida
que vão morrendo), sentimento, de certa forma, que pode atingir também a plateia,
a qual, pela geografia do acanhado espaço do teatro, pode se sentir incomodada,
o que é muito positivo, dentro do contexto da peça.
Luiz
Paulo Barreto.
CENOTÉCNICA: JOÃO BATISTA.
FIGURINO: RICARDO ROCHA – Nada a
destacar; apenas dizer que são interessantes e estão inseridos no contexto da
peça.
ILUMINAÇÃO: DANIEL ARCHANGELO – Boa,
responsável por realçar e valorizar certas cenas do espetáculo.
ASSISTENTE DE ILUMINAÇÃO: DANIELE DE DEUS.
PROGRAMAÇÃO VISUAL: NOT.A.PIPE.
PRODUÇÃO EXECUTIVA: DANIEL ARCHANGELO.
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: GUILHERME DELGADO.
REALIZAÇÃO: TENTÁCULOS ESPETÁCULOS.
Vítor
Fraga e Luiz Paulo Barreto.
Um bom
espetáculo, no qual há mais bichos do
que amores, o qual, apesar da aridez da temática, diverte, mas também faz
refletir e pensar na maravilha que seria se vivêssemos num planeta chamado TOLERÂNCIA.
(FOTOS: MAYRA VAZ)
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAdorei a resenha♥ Tema super interessante♥
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