terça-feira, 1 de julho de 2025

“EDDY, VIOLÊNCIA E METAMORFOSE”

ou

(UM SERVIÇO DE UTILIDADE PÚBLICA.)

ou

(UMA ODE À DIGNIDADE HUMANA.)

        

 


Para comemorar os 10 anos de bons serviços dedicados ao TEATRO BRASILEIRO, a “Polifônica Cia”, fundada por LUIZ FELIPE REIS e JULIA LUND, está encenando, na Sala Multiuso do SESC Copacabana, o espetáculo “EDDY – VIOLÊNCIA E METAMORFOSE”, uma arrojada e acertada montagem, que merece ser vista pelo maior número possível de espectadores. O espetáculo é uma adaptação de três livros da obra de ÉDOUARD LOUIS. No elenco, JOÃO CÔRTES, JULIA LUND e IGOR FORTUNATO, sob a direção de LUIZ FELIPE REIS e MARCELO GRABOWSKY (VER SERVIÇO)



            A despeito de ser um dos maiores fenômenos literários da última década, o escritor francês ÉDOUARD LOUIS ganha sua primeira adaptação para o teatro brasileiro, fruto da reunião de três dos seus mais emblemáticos livros: “O Fim de Eddy”, “História da Violência” e “Mudar: Método”, contando com o aval do autor, obras as quais já vou me apressar a ler.



 

SINOPSE:

A peça gira em torno de um episódio real, vivido pelo autor, representado aqui por JOÃO CÔRTES, no Natal de 2012, em Paris.

Após um jantar com amigos, ao voltar para casa, Édouard é abordado por um jovem de origem argelina, Redá, personagem de IGOR FORTUNATO, e, então, seguem para o apartamento do escritor.

Após uma noite de amor, entretanto, na manhã seguinte, Édouard é violentado pelo homem e quase assassinado.

O episódio traumático, elaborado na obra “História da Violência”, dá início a uma jornada reflexiva e de elaboração a respeito das estruturas sociais que viabilizam a produção, a reprodução e a circulação da violência em nossas sociedades.

Um ano após o terrível episódio, após lidar com uma série de procedimentos médicos, policiais e jurídicos, relacionados ao caso, Édouard inicia uma viagem de retorno à sua cidade natal, hospeda-se na casa da sua irmã, Clara, vivida por JULIA LUND, e é a partir desse reencontro que se inicia um jogo de relatos, de narrativas e de representações, que reconstituem e investigam o ocorrido naquela noite, em que vêm à tona uma pluralidade de questionamentos e de reflexões acerca do machismo, do racismo e da homofobia enraizadas na nossa sociedade.

Ao longo do espetáculo, a narrativa de “História da Violência” também é atravessada por trechos de “O fim de Eddy” e culmina na recriação de fragmentos de “Mudar: Método”, obra em que Édouard reconta sua trajetória de emancipação social e intelectual, desde a saída da sua cidade natal, Hallencourt, até a sua chegada e estabelecimento em Paris.

 


Um pouco sobre ÉDOUARD LOUIS, retirado, com adaptações, do “release” que recebi da assessoria de imprensa da peça: ÉDOUARD LOUIS, nascido Eddy Bellegueule, é um autor super contemporâneo, de 32 anos, tendo vindo ao mundo em outubro de 1992, na região operária da Picardia, norte da França. É um dos principais nomes da literatura contemporânea europeia. Formado em sociologia pela École Normale Supérieure, foi aluno do filósofo e sociólogo Didier Eribon, cuja influência transparece em sua obra. Estreou em 2014 com “Para Acabar com Eddy Bellegueule”, uma narrativa autobiográfica, que retrata a infância marcada pela pobreza, homofobia e violência familiar. Em 2016, publicou “História da Violência”, um relato intenso sobre o estupro que sofreu e seus desdobramentos psicológicos e sociais. Em 2018, lançou “Quem Matou Meu Pai”, uma denúncia comovente sobre as consequências das políticas neoliberais no corpo e no destino de seu pai operário. Já em 2021, publicou “Luta e Metamorfose de uma Mulher”, focando na trajetória de sua mãe, uma mulher que tenta romper com as amarras da submissão patriarcal. Os livros de LOUIS têm sido traduzidos para dezenas de idiomas e amplamente debatidos por seu teor político e sua fusão entre experiência pessoal e crítica social. Seus temas centrais são: identidade, exclusão social, sexualidade, violência e desigualdade. Seus livros conferem à sua obra um caráter profundamente político e transformador. Embora jovem, já recebeu reconhecimento significativo, como o “Prêmio Pierre Guénin contra a Homofobia” (2014), e teve suas obras adaptadas para o TEATRO e analisadas em meios acadêmicos. Sua escrita, marcada por uma linguagem direta e sem ornamentos, faz da dor um ponto de partida para repensar as estruturas sociais que moldam e limitam as vidas marginalizadas.



No conteúdo do que destaquei sobre o autor do texto, já fica, de modo implícito, o que penso deste incrível texto e, também – acrescento - da estupenda adaptação de suas três obras, já mencionadas, para as tábuas, um trabalho criterioso e preciso, de LUIZ FELIPE REIS e MARCELO GRABOWSKY, que também assinam, a quatro mãos, a cirúrgica direção desta montagem. É conhecida a teoria de que “o cinema é a arte do diretor e o TEATRO, a dos atores”. Nesta peça, a despeito dos irretocáveis trabalhos de interpretação do trio de atores, afirmo, peremptoriamente, que, contrariando aquela teoria, é a direção, a partir de uma estupenda adaptação, a cereja do bolo. É assaz difícil tentar descrevê-la ou dissertar sobre ela, mas quem conseguir assistir ao espetáculo – Os ingressos se esgotam no primeiro dia de venda para uma semana. -, certamente, irá concordar comigo. Realidade atual com memórias, em notáveis “flash backs”, se cruzam dos diálogos de uma maneira formidável, que – o melhor de tudo – não confunde o espectador, o qual não desperdiça sua atenção, projetada ao espaço cênico e de lá não se afasta, durante quase 2 horas de espetáculo, que passam sem que o percebamos.



O público é pego de surpresa a cada nova cena; a respiração vai ficando meio comprometida e as batidas do coração tornam-se mais marcantes e rápidas; um quase pânico se instala em cada espectador, que sofre, junto com o protagonista, por todas as situações de horror por que ele passa; tudo isso graças a uma interpretação digna de premiações, por parte dos três personagens: um na categoria protagonista e dois na de coadjuvantes (de luxo). Cumpre dizer que a direção deste espetáculo (LUIZ FELIPE REIS e MARCELO GABROVSKI) é das coisas mais engenhosas, elegantes, criativas e precisas daquilo que tenho visto nos últimos anos, com o cuidado de valorizar as cenas se sexo, sem o mínimo de apelação..



            Volto a insistir na importância da dramaturgia, que sustenta, com total perfeição, da primeira à última cena, a estrutura de um espetáculo que não é para divertir; muito pelo contrário, é uma obra para lá de densa e imprescindível, que chama a atenção para os perigos de alguém se deixar envolver com um desconhecido, levado, apenas, por uma espécie de compulsão atrelada ao desejo carnal, a ponto de o levar para a sua casa, a fim de saciar os desejos do sexo. É claro que isso não é o mote da trama, mas é o apertar do gatilho, para que a ação possa existir e que as denúncias e críticas sociais sejam estabelecidas.



            A ideia do aproveitamento dos três livros, para que a peça viesse a existir, foi muito bem recebida por ÉDOUARD LOUIS, o qual não só a aprovou como assim se manifestou: “É a primeira vez que isso será feito no mundo, então, sim, façam isso, realizem esse projeto!” 

            Sobre a proposta da “Polifônica Cia”, diz o diretor LUIZ FELIPE REIS: “Ao longo desses dez anos, buscamos, através de cada trabalho, propor uma reflexão coletiva acerca das consequências da desmedida ânsia masculina por poder, controle, dominação e submissão; sobre como isso produz danos nos mais diferentes corpos — humanos, além de humanos e de toda a Terra —, mas, principalmente, em tudo aquilo que se aproxima ou é identificado como feminino. Meu interesse pela obra do ÉDOUARD surge como desdobramento dessa investigação contínua que venho realizando sobre diferentes modos de violência, sobretudo os que constituem o mundo masculino — seu ethos e psiquismo, as regras e normas das sociedades patriarcais e, sobretudo, do regime totalitário do capital sob o qual estamos todos subjugados. ÉDOUARD reflete e escreve sobre violência social, política, econômica, cultural, racial, sexual, de gênero; ou seja, sobre inúmeras formas de produção e de circulação da violência, sobre todo um circuito de violência que rege nossos comportamentos e pensamentos, sociais e individuais. Em outras palavras, ÉDOUARD descreve, com precisão iluminadora, os efeitos devastadores das forças de opressão e de destruição que constituem a nós e nossas sociedades contemporâneas. Por isso, sua obra é um alerta e um chamado a encontrar vias de contraposição e de combate a tais forças. Investigar a violência é buscar formas de responder à violência, modos de reagir que questionem e, se possível, transformem as violências naturalizadas que constituem a realidade. É por isso que violência e metamorfose são temas profundamente conectados: as forças de violência, de algum modo, provocam e convocam as forças de transformação. A violência do mundo nos interpela a tomar posição, reagir e transformar este mesmo mundo”. Uma brilhante reflexão, facilmente captada pelos que assistem ao espetáculo em tela.



     A situação crucial pela qual o protagonista passa corresponde a um rompimento da normalidade e pode acontecer – ou está acontecendo agora – em qualquer lugar, e há de, infelizmente, continuar a acontecer, o que faz com que o texto seja considerado universal e atemporal. A violência se deu num contexto cultural francês, todavia, poderia muito bem ter acontecido com qualquer um ou uma de nós, num contexto brasileiro, “pois há sempre uma força violenta de destruição e de morte que ronda e ameaça o feminino (Masculino também, acrescento eu.), seja em que corpo ou lugar ele estiver”.



            Tirante a sofisticação tecnológica, representada por excelentes projeções e a captação de imagens ao vivo, tudo projetado numa tela ao fundo, posso dizer que o espetáculo é modesto, em termos de cenografia (ANDRÉ SANCHES) e figurinos (ANTÔNIO GUEDES), o mínimo necessário para o apoio às cenas. Com relação a estes, vale a pena dizer que apenas JOÃO CÔRTES vive um único ser. Os dois atores “em papeis coadjuvantes” interpretam outros personagens de menor importância na trama, além dos seus dois titulares: a irmã Clara, para JULIA LUND, e Redá, para IGOR FORTUNATO. Sendo assim, para que o espectador entenda quem está falando e agindo, a direção optou pelo uso de algumas peças que identificassem cada personagem.



           Ainda que já tenha exposto minha admiração pelo trabalho do trio de atores, cumpre completar minha análise com mais algumas palavras. JOÃO CÔRTES, assumidamente um homem “gay”, diz se identificar muito com a trajetória do protagonista, o qual ele interpreta com uma força e uma verdade a toda prova. Édouard, graças ao belíssimo e irretocável trabalho do JOÃO, passa um quê de ternura e ingenuidade, o que, creio eu, reforça a empatia do público pelo personagem. O ator diz conhecer “esse lugar de lidar com a violência, a insegurança, a autoaceitação, e o desejo de ser amado”. “Na verdade, estou interpretando uma mistura de alterego, uma versão teatral dele, e o próprio Édouard.” É fascinante o trabalho de JOÃO CÔRTES! 



 IGOR FORTUNATO abraça forte a oportunidade de interpretar o estrangeiro Redá, que acaba se tornando algoz do protagonista na trama. IGOR analisa a origem da brutalidade nas relações, quando o oprimido se transforma em opressor. Isso está relacionado com o preconceito como é tratado, nas pele de um estrangeiro, um “intruso”, como se isso pudesse justificar suas atitudes de tortura e crueldade contra um ser frágil e indefeso. Seria, pois, uma maneira de seu vingar dos mais poderosos que ele. “A partir de tantas violências cotidianas sofridas por ser imigrante — assim como eu, um ator nordestino que veio para o Rio de Janeiro, guardadas as devidas proporções, é claro —, vejo que meu personagem é ambíguo e está inserido nesse sistema perverso, para que exista, dessa forma, no mundo: se, por um lado, sofre, por outro, acaba se autorizando a praticar as micro e macroviolências.”, avalia o excelente ator, que se conduz com muita garra no papel.  



 O que mais me chamou a atenção no trabalho de JULIA LUND é a naturalidade do seu representar, mormente quanto interpreta Clara. JULIA, assim como IGOR, se insere na categoria que costumo chamar de “coadjuvante de luxo”, tais são a importância de sua personagem e a maneira simples e irrepreensível como a atriz a interpreta. JULIA não titubeia em dizer que o espetáculo deve – e é verdade – causar um grande impacto no público brasileiro, não fosse o Brasil o país “que mais mata pessoas LGBTQIAPN+: a cada 34 horas, uma pessoa é vítima de homicídio ou suicídio”. Admiradora confessa do autor do texto, a atriz acredita que sua obra deve ser vista “como uma grande porta de entrada para refletirmos sobre alguns temas fundamentais, como a violência social, sexual e de classe. A obra dele permite muitas vias de acesso e, por isso, interessa (a) e toca um público tão diverso"

 


 

FICHA TÉCNICA:

Idealização e Realização: Polifônica Cia (Luiz Felipe Reis e Julia Lund)

A partir da obra de Édouard Louis — “O fim de Eddy”, “História da violência”, “Mudar: método”

Dramaturgia: Luiz Felipe Reis e Marcelo Grabowsky

Direção: Luiz Felipe Reis e Marcelo Grabowsky

 

Elenco: João Côrtes, Julia Lund, Igor Fortunato

 

Direção de Movimento: Lavínia Bizzotto

Preparação Corporal: Alexandre Maia

Cenografia: André Sanches 

Cenógrafa Assistente: Débora Cancio 

Figurino: Antônio Guedes

Assistente de Figurino: Mari Ribeiro

Direção de Tecnologia e Iluminação: Julio Parente (Para Raio)

Criação de Vídeo: Daniel Wierman 

Trilha Sonora: Luiz Felipe Reis

Direção Musical: Carol Mathias

Produção Musical: Pedro Sodré 

Técnico de Luz e Operador de Luz e Vídeo: Rodrigo Lopes

Técnico-Operador de Som: Daniel Vetuani

Hair Stylist: Amadeu Marins (Salão Ará)

Make: Sabrina Sanm 

Fotografia de Estúdio: Renato Pagliacci

Fotografia de Cena: Luiz Felipe Reis.

“Design” Gráfico: Clara Seleme (Paspatur)

Assessoria de Comunicação: Dobbs Scarpa

Direção de Produção: Luiz Felipe Reis e Julia Lund (Polifônica)

Produção Executiva: Roberta Dias (Caroteno Produções)

Assistente de Produção: Luciano Pontes

  


 

SERVIÇO:

Temporada: de 19 de junho a 13 de julho de 2025.

Local: SESC Copacabana (Mezanino).

Endereço: Rua Domingos Ferreira, nº 160, Copacabana – Rio de Janeiro.

Telefone: (21) 31805226. 

Dias e Horário: De 5ª feira a domingo, sempre às 20h30min.

Valor dos Ingressos: R$ 10 (associado do Sesc), R$ 15 (meia-entrada) e R$ 30 (inteira).

Bilheteria - Horário de funcionamento: De 3ª a 6ª feira, das 9h às 20h; sábados, domingos e feriados, das 14h às 20h.

Classificação Indicativa: 18 anos. 

Duração: 110 min.

Gênero: Drama.

 

 


         “EDDY – VIOLÊNCIA E METAMORFOSE” é um brilhante espetáculo, imprescindível para os amantes do bom TEATRO, motivo pelo qual REITERO A MINHA RECOMENDAÇÃO. A “Polifônica Cia” também está em cartaz, no momento, com um outro grande espetáculo, o qual, graças às lotações esgotadas, teve sua temporada prorrogada, no Teatro Poeira: “Deserto”.

 

 

FOTOS: RENATO PAGLIACCI (ESTÚDIO)

e

LUIZ FELIPE REIS (CENA)

 


 

É preciso ir ao TEATRO, ocupar todas as salas de espetáculo, visto que a arte educa e constrói, sempre; e salva. Faz-se necessário resistir sempre mais. Compartilhem esta crítica, para que, juntos, possamos divulgar o que há de melhor no TEATRO brasileiro!