“AS AVENTURAS
DE PÉ DE VENTO
NO DIA DE
COSME E
DAMIÃO”
ou
(PARA CRIANÇAS
DE TODAS AS
IDADES.)
ou
(UM TEATRO
POÉTICO.)
Algo que justifique um deslocamento de cerca de 30 quilômetros, incluindo uma boa parte dele pela famigerada Linha Amarela, dos arrastões e assaltos individuais? Sim, existem várias justificativas para tal gesto de "coragem", todas reunidas numa só: assistir a uma peça no Teatro Miguel Falabella, dentro do Norte Shopping, no Cachambi, bairro da zona norte carioca. Trata-se de “AS AVENTURAS DE PÉ DE VENTO NO DIA DE COSME E DAMIÃO”, em cartaz nas tardes dos sábados e domingos deste mês de julho, sempre às 15 horas (VER SERVIÇO.).
SINOPSE:
A peça conta
a história fantástica de Pé de Vento, um menino nascido no
sertão da Paraíba, que não conhecia a tradição das festas de Cosme
e Damião, com a tradicional distribuição de doces, até pegar carona,
primeiro, num redemoinho, e, depois, num drone, e viajado, até chegar ao Rio de
Janeiro, exatamente num dia 27 de Setembro, data em homenagem
aos “santos
meninos”, e ficar fascinado com a novidade para ele.
Pode ser que a SINOPSE supra não seja suficientemente capaz de despertar o interesse de alguém pela peça, porém, para chegar à mesma avaliação positiva que eu trago do espetáculo, é só bancar o São Tomé (“Ver para crer.”) e conferir o que estou dizendo, e ainda direi mais, sobre este magnífico espetáculo, escrito por FÁTIMA COLIN, dirigido por ISAAC BERNAT e interpretado por CLARA SANTHANA e LEANDRO CASTILHO, com uma excelente participação do músico convidado IGOR LEMOS, além de trazer uma equipe “poderosa” de artistas de criação.
Para
criar o texto, a dramaturga se inspirou numa crônica de Rubem Braga, “São
Cosme e São Damião”, de 1957, que se encontra, na íntegra,
ao final destas minhas considerações críticas. É de uma beleza e poesia
comparáveis à peça, à qual assisti no último sábado (06/07/2024), na sessão
de estreia. Antes de mais nada, faço questão de dizer que o espetáculo me
remeteu à minha infância, quando uma tia materna reunia seus dois filhos, um
pouco mais velhos que eu, este “senhor-criança”, e meus dois irmão
menores e saíamos, pelas ruas de um bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, Brás de
Pina, onde ela morava, à cata de saquinhos de doces, os tão cobiçados “saquinhos
de Cosme e Damião, munidos de bolsas de feira, que, ao final da tarde,
computavam dezenas e dezenas de saquinhos, contendo as mais variadas guloseimas:
maria
mole e peitinho de moça, uma variação “erótica” do doce
molenga; cocadas, não só as de coco, mas também de abóbora e de batata
doce (“Aboborada”
e “batatada”. Momento descontração!); geleias; pés
de moleque; pirulitos; suspiros, que se mantinham inteiros
por pouco tempo; balas e bombons; cocô de rato, uma
porcaria sem gosto, que não como, hoje, nem sob tortura; doce de leite... Uma “munição”
que dava para abastecer as nossa gulosas barriguinhas por bem mais de um mês. É
incrível como me lembro, em detalhes, de cada dia 27 de setembro da minha
infância e pré-adolescência!
Considero esta peça de uma enorme importância, porque, mais que, simplesmente, divertir, seu propósito é um caminho para resgatar uma tradição que, aos poucos, foi sendo abandonada – ainda há um pouco, felizmente, principalmente nos bairros mais afastados do Centro da cidade, nos subúrbios e na periferia da Baixada Fluminense – por conta de vários motivos, sendo um deles, indiscutivelmente, a violência na nossa cidade. Dois dos meus netos, livres desse flagelo, por residirem no Canadá, de certa forma, conseguem fazer a mesma coisa que eu fazia, na idade deles, só que no dia em que se comemora o “Halloween”.
Como está escrito, no “release” que recebi, de RACHEL ALMEIDA (Racca Comunicação – Assessoria de Imprensa), “A peça explora a memória afetiva do subúrbio carioca, a partir da cultura de distribuição de doces, no Dia de Cosme e Damião”. Para escrever o texto, FÁTIMA COLIN, mãe da atriz CLARA SANTHANA, esta a idealizadora do projeto, mergulhou numa profunda pesquisa, que chegou à vida dos gêmeos, médicos, desde seus trabalhos de atendimentos gratuitos aos doentes e os curava, não só com seu saber, mas através de milagres propiciados por suas orações. Dessa forma, eles arregimentaram muitos novos adeptos para a fé cristã, até a canonização, depois de terem sido decapitados, em 27 de setembro, provavelmente entre 287/303 d.C.. No trabalho de pesquisa, a autora leu bastante, entrevistou pessoas ligadas àquela tradição e se aproveitou do resgate de momentos da própria vida. Na história criada por FÁTIMA, o personagem descobre a tradição da distribuição de doces e vive uma aventura repleta de novidades, quando se depara com as belezas e os perigos que envolvem a cidade maravilhosa. De uma certa forma, Pé de Vento, o protagonista da narrativa, seria uma espécie de “alter ego” da autora, que nasceu numa cidade do sertão da Paraíba, não conhecia a cultura da festa de Cosme e Damião e, “apenas quando se mudou para o Rio, conheceu a tal tradição da distribuição dos saquinhos de doces pelas ruas nos bairros ... e a correria desenfreada de crianças para pegarem mais e mais guloseimas”, imagem que ficou registrada em sua memória afetiva.
O espetáculo é
de uma alegria contagiante, pontuado por muitas canções dos mais prestigiados
compositores brasileiros, como Gilberto Gil, Lamartine Babo, Jorge
Benjor, Toquinho, Vinícius de Moraes, Rita
Lee, Paulo César Pinheiro e Arlindo Cruz, tudo reunido numa
eclética “set list”, com vários ritmos: samba, xote, galope, sambalanço,
pontos de terreiro e “rock ‘n’ roll”, que entusiasmam os
pequenos e os adultos. Todas as canções são interpretadas pela dupla de atores, os quais também tocam instrumentos musicais, além do músico IGOR LEMOS; um grande percursionista, diga-se de passagem, com
ótima direção musical, de LEANDRO
CASTILHO.
O espetáculo
tem uma direção a seis mãos, de ISAAC
BERNAT, CLARA SANTHANA e LEANDRO CASTILHO, que resolveram – e
conseguiram – levar para o palco um clima de festa, como é a dos “santos
gêmeos”, a qual se estende à plateia, numa comunhão de fé, risos e
cantos, mesclado com histórias e personagens do nosso rico folclore, como é o
caso do Saci Pererê. E, já que falei do moleque pretinho, de uma perna
só, quero registrar a beleza do trabalho de confecção de um boneco do ente
imaginário, e de outros objetos de cena, feitos pelo artista ALEXANDRE GUIMARÃES. É excelente a direção do espetáculo, que
prioriza a alegria, a brincadeira e o afeto “como veículos de visita ao
sagrado e ao cuidado”.
Sem nenhuma intenção
de desfraldar bandeiras catequizadoras, sem pregar esta ou aquela religião, o espetáculo
abarca, muito acertadamente, o sincretismo religioso que há entre os dois
santos da Igreja Católica e orixás das religiões de matriz africana, os “ibejis”;
são “erês”,
crianças, que, “na Umbanda, são espíritos de crianças evoluídas, que não chegaram a
encarnar e que estão muito próximas dos Orixás, transmitindo suas sabedorias. Já no
Candomblé, eles são vistos como entidades intermediárias, que conectam o Orixá
ao seu filho ou filha, em rituais de iniciação”.
Para
esta encenação, os responsáveis pela produção e direção escolheram nomes
de respeitáveis e premiados profissionais da área de criação. DÓRIS ROLLEMBERG criou uma graça de cenografia,
com duas barracas, dessas de quermesse do interior, que guardam todos os lindos
objetos de cena, adereços e alguns instrumentos musicais, usados pelos atores;
uma de cada lado do palco. Ao centro, ficam os muitos instrumentos de
percussão, que também compõem aquele cenário de festa. Uma cenografia simples,
bela, expressiva e lúdica. WANDERLEY
GOMES, o premiado figurinista “do momento”, criou
modelos graciosos e coloridos, como tudo, aliás, que se vê no palco. Ao mestre AURÉLIO DE SIMONI, coube a magia de
iluminar, com uma beleza ímpar, o espetáculo.
(Foto: Loreco Ferreira.)
FICHA TÉCNICA:
Idealização e Pesquisa: Clara Santhana
Texto: Fátima Colin
Direção: Isaac Bernat
Elenco: Clara Santhana e Leandro Castilho
Músico convidado: Igor Lemos
Cenário: Dóris Rollemberg
Figurinos: Wanderley Gomes
Iluminação: Aurélio de Simoni
Direção Musical: Leandro Castilho
Direção de Movimento: Clara Santhana e Leandro Castilho
Assessoria de Imprensa: Racca Comunicação (Rachel Almeida)
Fotos: João Saidler (estúdio) e Danton Valério (cena)
“Design” Gráfico: Luciana
Mesquita
Direção de Produção: Sandro Rabello (Diga Sim! Produções)
Produção Executiva: Márcio Netto
Realização: Diga Sim! Produções e Naine Produções
SERVIÇO:
Temporada: De 06 a 28 de julho de 2024.
Local: Teatro Miguel Falabella (Norte Shopping)
Endereço: Av. Dom Hélder Câmara, nº 5.474 – Cachambi - Rio de Janeiro – RJ.
Telefone: (21) 2597-4452.
Dias e Horários: Sábados e domingos, às 15h.
Valor dos Ingressos: R$ 70 (inteira), R$ 35 (meia-entrada).
Venda de Ingressos: Sympla (https://bileto.sympla.com.br/event/95129) e
na bilheteria do Teatro.
Horário de Funcionamento da Bilheteria: De 3ª a 6ª feira, a partir das
14h.
Duração: 50 minutos.
Classificação Etária: Livre.
Capacidade de Público: 455 pessoas.
Gênero: Teatro Infantil.
“SÃO COSME E SÃO DAMIÃO”
Escrevo no dia dos meninos. Se eu fosse escolher
santos, escolheria, sem dúvida nenhuma, São Cosme e São Damião, que morreram
decapitados, já homem feitos, mas sempre são representados como dois meninos,
dois gêmeos de ar bobinho, na cerâmica ingênua dos santeiros do povo.
São Cosme e São Damião passaram o dia de hoje
visitando os meninos que estão com febre e dor de cabeça, por causa da asiática(*),
e deram muitos doces e balas aos meninos sãos. E, diante deles, sentimos
vontade de ser bons meninos e também de ser meninos bons. E rezar uma oração.
“São Cosme e São Damião, protegei os meninos de
Brasil, todos os meninos e meninas do Brasil.
Protegei os meninos ricos, pois toda a riqueza não
impede que eles possam ficar doentes ou tristes, ou viver coisas tristes, ou
ouvir ou ver coisas ruins.
Protegei os meninos dos casais que não se separam e
se dizem coisas amargas e fazem coisas que os meninos veem, ouvem, sentem.
Protegei os filhos dos homens bêbados e estúpidos,
e também os meninos das mães histéricas ou ruins.
Protegei o menino mimado, a quem os mimos podem
fazer mal, e protegei os órfãos, os filhos sem pai, e os enjeitados.
Protegei o menino que estuda e o menino que
trabalha, e protegei o menino que é apenas moleque de rua e só sabe pedir
esmola e furtar.
Protegei, ó São Cosme e São Damião, protegei os
meninos protegidos pelos asilos e orfanatos, e que aprendem a rezar e obedecer
e andar na fila e ser humildes, e os meninos protegidos pelo SAM(**). Ah! São
Cosme e São Damião, protegei muitos os pobres meninos protegidos!
E protegei, sobretudo, os meninos pobres dos morros
e dos mocambos, os tristes meninos da cidade e os meninos amarelos, e
barrigudinhos da roça; protegei suas canelinhas finas, suas cabecinhas sujas,
seus pés que podem pisar em cobra e seus olhos que podem pegar tracoma(***) – e
afastai de todo perigo e de toda maldade os meninos do Brasil, os louros e os
escurinhos, todos os milhões de meninos deste grande e pobre e abandonado
meninão triste, que é o nosso Brasil, ó Glorioso São Cosme, Glorioso São
Damião!”
(Setembro, 1957 – Rubem
Braga, no livro “Coisas Simples do Cotidiano”. São Paulo: Global Editora, 2ª
ed., 2013.)
(*) Pandemia de gripe, de 1957
a 1958, surgida na China, provocada por um vírus
da Gripe A, subtipo H2N2, que matou, pelo menos, um milhão de pessoas em todo o
mundo, incluindo brasileiros.
(**) SAM (Serviço
de Assistência ao Menor) tinha como missão amparar, socialmente, os
menores carentes, abandonados e infratores, centralizando
a execução de uma política de atendimento, de caráter corretivo-repressivo
assistencial, em todo o território nacional. Era conhecido como uma instituição que não recuperava os menores infratores.
(***) Doença
inflamatória ocular, um tipo de conjuntivite, causada pela bactéria Chlamydia
Trachomatis, que ocorre em áreas de maior concentração de pobreza, deficientes condições de saneamento básico e acesso à água.
É tão rara, infelizmente, a oferta de bons espetáculos infantis, no Rio de Janeiro, que, quando surge algo com a qualidade de “AS AVENTURAS DE PÉ DE VENTO NO DIA DE COSME E DAMIÃO”, isso é para ser festejado e motivo de agradecimento a quem pensa, de verdade, nas plateias de amanhã e não poupa esforços para fazer o melhor. Leve as suas crianças e a criança que habita o seu interior, e que não deve morrer nunca, ao Teatro Miguel Falabella, para se divertir à farta e se emocionar bastante. RECOMENDO MUITO O ESPETÁCULO!
FOTOS: JOÃO SAIDLER
e
DALTON VALÉRIO.
GALERIA PARTICULAR
(Fotos: Rodrigo Nascimento.)
VAMOS AO TEATRO!
OCUPEMOS TODAS AS SALAS DE
ESPETÁCULO DO BRASIL!
A ARTE EDUCA E CONSTRÓI, SEMPRE; E
SALVA!
RESISTAMOS SEMPRE MAIS!
COMPARTILHEM ESTA CRÍTICA, PARA QUE, JUNTOS, POSSAMOS DIVULGAR O QUE HÁ DE MELHOR NO TEATRO BRASILEIRO!
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