terça-feira, 9 de julho de 2024

 

“AS AVENTURAS

DE PÉ DE VENTO

NO DIA DE

COSME E DAMIÃO”

ou

(PARA CRIANÇAS

DE TODAS AS IDADES.)

ou

(UM TEATRO POÉTICO.)




 

            Algo que justifique um deslocamento de cerca de 30 quilômetros, incluindo uma boa parte dele pela famigerada Linha Amarela, dos arrastões e assaltos individuais? Sim, existem várias justificativas para tal gesto de "coragem", todas reunidas numa só: assistir a uma peça no Teatro Miguel Falabella, dentro do Norte Shopping, no Cachambi, bairro da zona norte carioca. Trata-se de “AS AVENTURAS DE PÉ DE VENTO NO DIA DE COSME E DAMIÃO”, em cartaz nas tardes dos sábados e domingos deste mês de julho, sempre às 15 horas (VER SERVIÇO.).


 

 


SINOPSE:

A peça conta a história fantástica de Pé de Vento, um menino nascido no sertão da Paraíba, que não conhecia a tradição das festas de Cosme e Damião, com a tradicional distribuição de doces, até pegar carona, primeiro, num redemoinho, e, depois, num drone, e viajado, até chegar ao Rio de Janeiro, exatamente num dia 27 de Setembro, data em homenagem aos “santos meninos”, e ficar fascinado com a novidade para ele.

 



        Pode ser que a SINOPSE supra não seja suficientemente capaz de despertar o interesse de alguém pela peça, porém, para chegar à mesma avaliação positiva que eu trago do espetáculo, é só bancar o São Tomé (“Ver para crer.”) e conferir o que estou dizendo, e ainda direi mais, sobre este magnífico espetáculo, escrito por FÁTIMA COLIN, dirigido por ISAAC BERNAT e interpretado por CLARA SANTHANA e LEANDRO CASTILHO, com uma excelente participação do músico convidado IGOR LEMOS, além de trazer uma equipe “poderosa” de artistas de criação.  

 

 

 

         Para criar o texto, a dramaturga se inspirou numa crônica de Rubem Braga, “São Cosme e São Damião”, de 1957, que se encontra, na íntegra, ao final destas minhas considerações críticas. É de uma beleza e poesia comparáveis à peça, à qual assisti no último sábado (06/07/2024), na sessão de estreia. Antes de mais nada, faço questão de dizer que o espetáculo me remeteu à minha infância, quando uma tia materna reunia seus dois filhos, um pouco mais velhos que eu, este “senhor-criança”, e meus dois irmão menores e saíamos, pelas ruas de um bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, Brás de Pina, onde ela morava, à cata de saquinhos de doces, os tão cobiçados “saquinhos de Cosme e Damião, munidos de bolsas de feira, que, ao final da tarde, computavam dezenas e dezenas de saquinhos, contendo as mais variadas guloseimas: maria mole e peitinho de moça, uma variação “erótica” do doce molenga; cocadas, não só as de coco, mas também de abóbora e de batata doce (“Aboborada” e “batatada”. Momento descontração!); geleias; pés de moleque; pirulitos; suspiros, que se mantinham inteiros por pouco tempo; balas e bombons; cocô de rato, uma porcaria sem gosto, que não como, hoje, nem sob tortura; doce de leite... Uma “munição” que dava para abastecer as nossa gulosas barriguinhas por bem mais de um mês. É incrível como me lembro, em detalhes, de cada dia 27 de setembro da minha infância e pré-adolescência!

 

 



 

    Considero esta peça de uma enorme importância, porque, mais que, simplesmente, divertir, seu propósito é um caminho para resgatar uma tradição que, aos poucos, foi sendo abandonada – ainda há um pouco, felizmente, principalmente nos bairros mais afastados do Centro da cidade, nos subúrbios e na periferia da Baixada Fluminense – por conta de vários motivos, sendo um deles, indiscutivelmente, a violência na nossa cidade. Dois dos meus netos, livres desse flagelo, por residirem no Canadá, de certa forma, conseguem fazer a mesma coisa que eu fazia, na idade deles, só que no dia em que se comemora o “Halloween”. 

 







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(Fotos de jornais, recolhidas na internet.

  Como está escrito, no “release” que recebi, de RACHEL ALMEIDA (Racca Comunicação – Assessoria de Imprensa), “A peça explora a memória afetiva do subúrbio carioca, a partir da cultura de distribuição de doces, no Dia de Cosme e Damião”. Para escrever o texto, FÁTIMA COLIN, mãe da atriz CLARA SANTHANA, esta a idealizadora do projeto, mergulhou numa profunda pesquisa, que chegou à vida dos gêmeos, médicos, desde seus trabalhos de atendimentos gratuitos aos doentes e os curava, não só com seu saber, mas através de milagres propiciados por suas orações. Dessa forma, eles arregimentaram muitos novos adeptos para a fé cristã, até a canonização, depois de terem sido decapitados, em 27 de setembro, provavelmente entre 287/303 d.C.. No trabalho de pesquisa, a autora leu bastante, entrevistou pessoas ligadas àquela tradição e se aproveitou do resgate de momentos da própria vida. Na história criada por FÁTIMA, o personagem descobre a tradição da distribuição de doces e vive uma aventura repleta de novidades, quando se depara com as belezas e os perigos que envolvem a cidade maravilhosa. De uma certa forma, Pé de Vento, o protagonista da narrativa, seria uma espécie de “alter ego” da autora, que nasceu numa cidade do sertão da Paraíba, não conhecia a cultura da festa de Cosme e Damião e, “apenas quando se mudou para o Rio, conheceu a tal tradição da distribuição dos saquinhos de doces pelas ruas nos bairros ... e a correria desenfreada de crianças para pegarem mais e mais guloseimas”, imagem que ficou registrada em sua memória afetiva.


 

 


 O espetáculo é de uma alegria contagiante, pontuado por muitas canções dos mais prestigiados compositores brasileiros, como Gilberto Gil, Lamartine Babo, Jorge Benjor, Toquinho, Vinícius de Moraes, Rita Lee, Paulo César Pinheiro e Arlindo Cruz, tudo reunido numa eclética “set list”, com vários ritmos: samba, xote, galope, sambalanço, pontos de terreiro e “rock ‘n’ roll”, que entusiasmam os pequenos e os adultos. Todas as canções são interpretadas pela dupla de atores, os quais também tocam instrumentos musicais, além do músico IGOR LEMOS; um grande percursionista, diga-se de passagem, com ótima direção musical, de LEANDRO CASTILHO.

 

 


  O espetáculo tem uma direção a seis mãos, de ISAAC BERNAT, CLARA SANTHANA e LEANDRO CASTILHO, que resolveram – e conseguiram – levar para o palco um clima de festa, como é a dos “santos gêmeos”, a qual se estende à plateia, numa comunhão de fé, risos e cantos, mesclado com histórias e personagens do nosso rico folclore, como é o caso do Saci Pererê. E, já que falei do moleque pretinho, de uma perna só, quero registrar a beleza do trabalho de confecção de um boneco do ente imaginário, e de outros objetos de cena, feitos pelo artista ALEXANDRE GUIMARÃES. É excelente a direção do espetáculo, que prioriza a alegria, a brincadeira e o afeto “como veículos de visita ao sagrado e ao cuidado”.

 

 

 

  Sem nenhuma intenção de desfraldar bandeiras catequizadoras, sem pregar esta ou aquela religião, o espetáculo abarca, muito acertadamente, o sincretismo religioso que há entre os dois santos da Igreja Católica e orixás das religiões de matriz africana, os “ibejis”; são “erês”, crianças, que, “na Umbanda, são espíritos de crianças evoluídas, que não chegaram a encarnar e que estão muito próximas dos Orixás, transmitindo suas sabedorias. Já no Candomblé, eles são vistos como entidades intermediárias, que conectam o Orixá ao seu filho ou filha, em rituais de iniciação”.

 

 

         Para esta encenação, os responsáveis pela produção e direção escolheram nomes de respeitáveis e premiados profissionais da área de criação. DÓRIS ROLLEMBERG criou uma graça de cenografia, com duas barracas, dessas de quermesse do interior, que guardam todos os lindos objetos de cena, adereços e alguns instrumentos musicais, usados pelos atores; uma de cada lado do palco. Ao centro, ficam os muitos instrumentos de percussão, que também compõem aquele cenário de festa. Uma cenografia simples, bela, expressiva e lúdica. WANDERLEY GOMES, o premiado figurinista “do momento”, criou modelos graciosos e coloridos, como tudo, aliás, que se vê no palco. Ao mestre AURÉLIO DE SIMONI, coube a magia de iluminar, com uma beleza ímpar, o espetáculo.


(Foto: Loreco Ferreira.)

 


       Desnecessário é falar do brilho que CLARA SANTHANA e LEANDRO CASTILHO ostentam em cena. Dois grandes artistas ecléticos, que interpretam, cantam e ainda tocam instrumentos musicas, habilidade esta mais voltada ao ator. Como narradores das "AVENTURAS...", o casal o faz, com muita naturalidade, elegância, harmonia e graciosidade, um belo trabalho. Merecem muitos aplausos. 




FICHA TÉCNICA:

Idealização e Pesquisa: Clara Santhana

Texto: Fátima Colin

Direção: Isaac Bernat

 

Elenco: Clara Santhana e Leandro Castilho

Músico convidado: Igor Lemos

 

Cenário: Dóris Rollemberg

Figurinos: Wanderley Gomes

Iluminação: Aurélio de Simoni

Direção Musical: Leandro Castilho

Direção de Movimento: Clara Santhana e Leandro Castilho

Assessoria de Imprensa: Racca Comunicação (Rachel Almeida)

Fotos: João Saidler (estúdio) e Danton Valério (cena)

“Design” Gráfico: Luciana Mesquita

Direção de Produção: Sandro Rabello (Diga Sim! Produções)

Produção Executiva: Márcio Netto

Realização: Diga Sim! Produções e Naine Produções

 


 

 


 


SERVIÇO:

Temporada: De 06 a 28 de julho de 2024.

Local: Teatro Miguel Falabella (Norte Shopping)

Endereço: Av. Dom Hélder Câmara, nº 5.474 – Cachambi - Rio de Janeiro – RJ.

Telefone: (21) 2597-4452.

Dias e Horários: Sábados e domingos, às 15h.

Valor dos Ingressos: R$ 70 (inteira), R$ 35 (meia-entrada).

Venda de Ingressos: Sympla (https://bileto.sympla.com.br/event/95129) e na bilheteria do Teatro.

Horário de Funcionamento da Bilheteria: De 3ª a 6ª feira, a partir das 14h.

Duração: 50 minutos.

Classificação Etária: Livre.

Capacidade de Público: 455 pessoas.

Gênero: Teatro Infantil.

 

 


 

 

“SÃO COSME E SÃO DAMIÃO”

 

Escrevo no dia dos meninos. Se eu fosse escolher santos, escolheria, sem dúvida nenhuma, São Cosme e São Damião, que morreram decapitados, já homem feitos, mas sempre são representados como dois meninos, dois gêmeos de ar bobinho, na cerâmica ingênua dos santeiros do povo.

São Cosme e São Damião passaram o dia de hoje visitando os meninos que estão com febre e dor de cabeça, por causa da asiática(*), e deram muitos doces e balas aos meninos sãos. E, diante deles, sentimos vontade de ser bons meninos e também de ser meninos bons. E rezar uma oração.

“São Cosme e São Damião, protegei os meninos de Brasil, todos os meninos e meninas do Brasil.

Protegei os meninos ricos, pois toda a riqueza não impede que eles possam ficar doentes ou tristes, ou viver coisas tristes, ou ouvir ou ver coisas ruins.

Protegei os meninos dos casais que não se separam e se dizem coisas amargas e fazem coisas que os meninos veem, ouvem, sentem.

Protegei os filhos dos homens bêbados e estúpidos, e também os meninos das mães histéricas ou ruins.

Protegei o menino mimado, a quem os mimos podem fazer mal, e protegei os órfãos, os filhos sem pai, e os enjeitados.

Protegei o menino que estuda e o menino que trabalha, e protegei o menino que é apenas moleque de rua e só sabe pedir esmola e furtar.

Protegei, ó São Cosme e São Damião, protegei os meninos protegidos pelos asilos e orfanatos, e que aprendem a rezar e obedecer e andar na fila e ser humildes, e os meninos protegidos pelo SAM(**). Ah! São Cosme e São Damião, protegei muitos os pobres meninos protegidos!

E protegei, sobretudo, os meninos pobres dos morros e dos mocambos, os tristes meninos da cidade e os meninos amarelos, e barrigudinhos da roça; protegei suas canelinhas finas, suas cabecinhas sujas, seus pés que podem pisar em cobra e seus olhos que podem pegar tracoma(***) – e afastai de todo perigo e de toda maldade os meninos do Brasil, os louros e os escurinhos, todos os milhões de meninos deste grande e pobre e abandonado meninão triste, que é o nosso Brasil, ó Glorioso São Cosme, Glorioso São Damião!”

 

(Setembro, 1957 – Rubem Braga, no livro “Coisas Simples do Cotidiano”. São Paulo: Global Editora, 2ª ed., 2013.)

 

(*) Pandemia de gripe, de 1957 a 1958, surgida na China, provocada por um vírus da Gripe A, subtipo H2N2, que matou, pelo menos, um milhão de pessoas em todo o mundo, incluindo brasileiros.

 

(**) SAM (Serviço de Assistência ao Menor) tinha como missão amparar, socialmente, os menores carentes, abandonados e infratores, centralizando a execução de uma política de atendimento, de caráter corretivo-repressivo assistencial, em todo o território nacional. Era conhecido como uma instituição que não recuperava os menores infratores.

 

(***) Doença inflamatória ocular, um tipo de conjuntivite, causada pela bactéria Chlamydia Trachomatis, que  ocorre em áreas de maior concentração de pobreza, deficientes condições de saneamento básico e acesso à água.

 

 

 

 

          É tão rara, infelizmente, a oferta de bons espetáculos infantis, no Rio de Janeiro, que, quando surge algo com a qualidade de “AS AVENTURAS DE PÉ DE VENTO NO DIA DE COSME E DAMIÃO”, isso é para ser festejado e motivo de agradecimento a quem pensa, de verdade, nas plateias de amanhã e não poupa esforços para fazer o melhor. Leve as suas crianças e a criança que habita o seu interior, e que não deve morrer nunca, ao Teatro Miguel Falabella, para se divertir à farta e se emocionar bastante.  RECOMENDO MUITO O ESPETÁCULO!

 

 

 

FOTOS: JOÃO SAIDLER 

DALTON VALÉRIO.

 

 

 

GALERIA PARTICULAR

(Fotos: Rodrigo Nascimento.)









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