domingo, 22 de janeiro de 2023

 

“O INCIDENTE –

AMERICAN SON”

ou

(TERIA SIDO MESMO?)

ou

("A RAÇA É CRIA

DO RACISMO,

E NÃO PAI.”

- TA-NEHISI COATES)


 

        Não! Definitivamente, não! Eu não estava preparado para assistir a este espetáculo, com tanta carga emocional, capaz de “destruir”, “levar a nocaute” qualquer um que consiga se colocar no lugar do outro, no caso aqui, em especial, da personagem Kendra.

 

 

Flavia Santana e Leonardo Franco.

 

        Ocorre, na grande totalidade das vezes, de, antes de assistir a uma peça, eu ler a SINOPSE que me é enviada, sempre, num “release”, o que, evidentemente, gera uma determinada expectativa, normalmente a que encontro. É para ir ao Teatro “armado” para o que espero encontrar. Aborrece-me, quando o que oferecem fica abaixo do nível de excelência que eu aguardava e, por outro lado, “flutuo”, após uma sessão, se o que está no palco vai além do que eu aguardava ver. Com relação a “O INCIDENTE – AMERICAN SON”, o material que recebi de BARATA PRODUÇÕES (Assessoria de Imprensa), não contempla, propriamente, uma SINOPSE, entretanto, pelo teor geral de sua redação, embora não conhecesse também um filme correspondente à peça, ao qual assisti ainda há pouco, sabia do que se tratava e me preparei para “x” e me surpreendi com “y”; ou “z”. “Y”, ou “Z”, para mais ou para menos? Nem uma coisa nem outra, entretanto bastante surpreendente.

 

 

  O elenco.


        Como o início da “safra” teatral de 2023 vem apresentando, em quase toda a sua totalidade, excelentes produções, e gosto de escrever sobre todas as que me agradam, em diferentes níveis, desde as “boas”, passando pelas “muito boas”, as “ótimas”, até atingir as “obras-primas”, preciso tentar ser mais objetivo e conciso nas minhas modestas análises, mas, como me conheço muito bem, não devo consegui-lo. Vou, pelo menos,  tentar pôr em prática isso aqui. Quando inicio a escrita de uma crítica, não sei quanto tempo vou utilizar nisso nem a sua extensão, ao final.

 


 

 

SINOPSE:

É madrugada.

Noite de chuva, numa delegacia de Polícia, na Flórida (Miami), e uma mãe, negra, bastante aflita, procura notícias do filho, Jamal, de 18 anos, também negro, um jovem interracial (O pai era branco.) desaparecido, que fora identificado em uma ação policial, um “incidente”.

Kendra Ellis-Connor (FLÁVIA SANTANA), a mãe, caminha, ansiosa, de um lado para outro, tentando entender o porquê do desaparecimento de seu Jamal, o qual não atende às suas muitas ligações telefônicas nem responde às mensagens enviadas pelo WhatsApp.

Ela busca informações com um policial novato no posto, branco, o qual lhe diz, por diversas vezes, diante da insistência da angustiada mulher, que não pode lhe dar informações, “devido ao protocolo”, que era necessário aguardar a chegada do colega que o renderia, no próximo turno, pela manhã.

Ali, naquelas circunstâncias, a mulher negra passa por uma série de situações desagradáveis e deselegantes: perguntas irritantes e totalmente desnecessárias, como se o jovem tem apelidos, se tem o corpo tatuado ou, ainda, se traz dentes de ouro, estereótipos racistas, que deixam às claras um sistema cheio de preconceitos subjacentes.

Uma das formas mais patentes de discriminação racial se dá no tratamento que o policial Paul Larkin (DANIEL VILLAS) confere àquela mulher desesperada, totalmente hostil e debochado, com desprezo e constantes perguntas e insinuações de cunho racista, totalmente ao contrário de como trata o Sr. Scott (LEONARDO FRANCO), um agente do FBI, branco, pai de Jamal, quando este vai ao encontro da ex-mulher.

Contra a mulher negra, o policial sente-se superior; com o homem branco e um “colega” de profissão, numa unidade de polícia de prestígio, do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, uma espécie de “sonho de consumo” para Larkin, submissão (interesseira) e respeito. 

Durante 100 minutos de ação, de acirradas discussões, gritos, ofensas e acusações mútuas, entre os quatro personagens da trama - ainda entra, quase ao final da peça, o Tenente Stokes (MARCELO DIAS), que dará fim àquele indesejável encontro, com a resposta para os anseios daquela sofrida mãe -, a noite se torna fora de controle e a narrativa chega ao seu epílogo com um final inesperado.


 


 


 

A peça é bem recente e foi escrita pelo advogado e dramaturgo norte-americano CHRISTOPHER DEMOS-BROWN, que já escreveu mais de uma dúzia de peças e roteiros em seu currículo, algumas merecedoras de prêmios regionais de TEATRO ao longo dos anos. AMERICAN SON”, título original da peça, estreou, na Broadway, em 2019, entretanto já havia feito um “esquenta”, em 2016, numa cidade de Massachusetts, estado norte-americano.   


 

 

“O INCIDENTE - AMERICAN SON” é uma representação sensível da dinâmica racial moderna e de suas tensões sistêmicas, não só nos Estados Unidos, onde a trama se passa, como em tantas outras partes do mundo, incluindo, infelizmente, e muito, o Brasil. Apesar de a trama se passar em Miami, Estados Unidos, onde se concentra uma população bem expressiva de imigrantes, principalmente latinos, tudo o que ocorre no palco é muito familiar a nós, brasileiros, visto que a história poderia acontecer em qualquer departamento de polícia no Brasil. Quase todos os dias, particularmente, assisto a matérias, na TV, sobre problemas relacionados a “equívocos”, envolvendo negros, principalmente jovens.

 

 



O espetáculo pode ser entendido como um grande grito de protesto contra o racismo, incluindo o dito estrutural, jogando luz sobre as relações sociais, num todo, com ênfase, é claro, como não poderia deixar de ser, nas que envolvem o relacionamento entre brancos e negros.

 

 


 

A abordagem da temática da peça não é inédita (Perdi a conta de quantas vezes travei conhecimento dela nos palcos.), entretanto isso não é, nem de longe, um ponto negativo para o espetáculo. Quanto mais se abordar o assunto "batido", de modo correto e profundamente, mais se acende, em nós – em mim, particularmente – a chama da esperança de que, um dia, embora isso pareça bem utópico, possamos conviver, harmoniosamente - com nuito amor e respeito -, brancos, negros, mulatos, índios, orientais...

 

 


 

Com uma legião de amigos e conhecidos negros, sei que a maioria dos jovens dessa raça (Não gosto de quando os próprios negros se autodenominam “pretos”, uma vez que “preto” é cor e “negro” é raça. Mas cada um faça como quiser!), especialmente do sexo masculino, ouve, repetidamente, e com bastante ênfase, orientações de suas mães, ao sair de casa: “levar o documento”, “não correr”, “ficar longe de brigas”, “procurar se manter calmo e não falar de modo incisivo, que possa parecer ríspido, a um policial”, e  tudo isso porque sabem que, se o negro for abordado, numa operação policial, a possibilidade de se ver “culpado” por algo errado QUE NÃO FEZ é muito grande; o perigo é iminente, uma vez que o racismo tem força o suficiente para violentar “pessoas de cor”. Basta uma rápida e simples pesquisa nas estatísticas da imprensa e dos órgãos de proteção aos negros. “Segundo o ‘Anuário Brasileiro de Segurança Pública’, de 2020, 8, em cada 10 pessoas mortas pela polícia, em 2019, eram negras. 99% delas eram homens. 23% tinham menos de 19 anos, 31% tinham menos de 24 anos e 19% tinham menos de 29 anos.”. Creio não ser necessário “desenhar”.

 

 


 

A questão que envolve os conflitos interraciais já começa dentro de casa, no contexto da peça, uma vez que o casal leva, para a cena, discussões domésticas, provocadas per Kendra, uma psicóloga e professora, sobre a relação entre pai e filho, especialmente pelo fato de aquele, por ser branco, jamais ter demonstrado a menor importância por fazer com que o filho compreendesse a problemática da discriminação racial. Em discussão acalorada com seu ex-cônjuge, a mulher o acusa de negligência para com a família, afirmando que isso afetara a saúde mental de seu filho. Scott havia abandonado Kendra e Jamal fazia quatro meses (Kendra diz que Scott abandonara o filho, mas ele insiste em afirmar que o abandono fora em relação a ela e que ainda se preocupava muito com Jamal.). O ex-casal passou a se entender menos, após o divórcio, e Kendra ainda guarda muitos rancores contra ele.

 

 


 

Scott descobre que Jamal dirigia seu carro, que estava no nome do pai, com um enorme adesivo no para-choque, com uma frase que trazia um trecho em caracteres maiores, o que teria sido, então, a causa do “incidente”. Por motivos mais que evidentes, reservo-me o direito de não revelar que frase corresponde a tal inscrição. A propósito, com relação ao significado do vocábulo “incidente”, transcrevo-o, para aguçar a curiosidade do leitor: Episódio inesperado ou circunstância acidental, não esperada, que altera a ordem normal das coisas.” E como, no caso da peça!!!

 

 


 

  Passa, de forma bem clara, no texto de JAMES DEMOS-BROWN, a importância da descoberta da própria identidade de um indivíduo, no caso de Jamal, o entendimento da força da representatividade de um homem negro, com posicionamento político, num país tradicionalmente racista, o que se enquadra, como uma luva, no Brasil. Com relação a isso,  a peça cita “Os Grandes Seis”, chamados por Malcolm X (Martin Luther King, James Farmer, John Lewis, A. Philip Randolph, Roy Wilkins e Whitney Young, grandes ativistas da igualdade racial.), e a campanha “Black Lives Matter” (“Vidas Negras Importam”), mostrando quanto os norte-americanos ainda ainda precisam aprender sibre a história da desconstrução de seu enraizado sistema segregacionista e da importância da luta dos negros oprimidos por liberdade e segurança. O Sr. Scott chega a acreditar, e a defender sua tese, em que o racismo não existe e que a violência policial é justificada. Assistimos a diferentes perspectivas e a uma dinâmica conjugal tensa, entre o casal Kendra e Scott, este um homem intolerante, que enxergava, no ativismo negro da esposa, uma atitude vitimista, partindo daí o conflito familiar.

 

 


A tensão emocional corre do início ao fim da encenação, e o espectador, no sentido mais lato do vocábulo, não consegue fugir à sensação de angústia daquela mãe, sentindo-a também, não, porém, é óbvio, na mesma intensidade. Essa angústia, causada pela falta de informação, é potencializada quando, por ser inteligente e perspicaz, Kendra percebe que aquilo é intencional, fruto da má vontade do policial, por estar aquele "agente da lei", homem e branco, tratando com uma  mulher e, principalmente, negra. 

 

 

Além da potência do texto, acrescente-se a esta montagem, o dedo correto de TADEU AGUIAR, quando conduz a direção do espetáculo com muita simplicidade, a serviço do excelente texto de CHISTOPHER DEMIOS-BROWN. Talvez o diretor pudesse pensar em “enxugar” um pouco o texto, sem prejudicar sua estrutura dramática, é claro. A peça dura meia hora a mais que o filme, lançado pela plataforma Netflix, com o título de “American Son”, em 2019. “A montagem é brasileira. Como somos latinos, temos um tom mais apaixonado do que o dos americanos, que são mais racionais. O espetáculo não é uma cópia do americano. É uma montagem original e inédita e com certeza sua história cabe em qualquer parte do mundo. A questão racial é universal. No Brasil, se tornou mais evidente mais recentemente. Nas artes, por exemplo, embora se fale há muito tempo sobre o racismo estrutural, tanto produtores quanto artistas tinham pouco espaço para levar à cena falas pretas”, avalia TADEU.

 

 


O quarteto de atores está bastante afinado e os quatro demonstram ter estudado, profundamente, a psiquê de seus personagens. Não é um trabalho fácil interpretar aqueles personagens - muito pelo contrário -, principalmente o da grande protagonista, Kendra Ellis-Connor, muito bem defendido por FLAVIA SANTANA, embora, talvez, ficasse melhor, se a atriz modulasse um pouco mais as entonações e o volume de voz, de acordo com o nível de tensão que cada momento requer, para evitar o tom monocórdio, principalmente pelo fato de a peça ser longa, para os padrões atuais. É uma sugestão, apenas, que penso ser merecedora de um "agasalho", por parte da atriz e da direção. Tudo o que é bom pode melhorar, todos sabemos. LEONARDO FRANCO transita bem entre o representante da “raça dominadora” e um dos responsáveis pelo nascimento de um ser “híbrido”, entre a “consciência” e o “arrependimento”, entre a “fortaleza” e a “fragilidade”. DANIEL VILLAS também faz um bom trabalho, como o grande antagonista, que “cutuca com vara curta”, intencional e cruelmente, o “inimigo”. MARECELO DIAS, embora tenha uma participação pequena, porém importante, nos últimos momentos da peça, desempenha, como os demais, seu trabalho com a boa qualidade que atribuo a todos, merecendo um aplauso particular, por ter entrado no elenco quase às vésperas da estreia da peça e conseguido decorar um texto com falas parecidas e recheado de termos técnicos, além da construção de seu personagem.

 


 

Sempre admiro muito os trabalhos de cenografia de NATÁLIA LANA, e não foi diferente desta vez. Ainda que, na macroestrutura, a cenografia se assemelhe à do filme, no palco, estão à vista, para serem admirados, os detalhes que só NATÁLIA sabe criar. Ao mesmo tempo que simples, reproduzindo uma sala, nos fundos de uma delegacia de polícia, com tudo o que, comumente, encontramos nesse tipo de ambiente, é um cenário que tem lá a sua complexidade, para ser montado, em função da “água da chuva”, que cai, escorrendo pelas vidraças dos enormes janelões, quase durante a peça toda, talvez com umas três breves interrupções, no decorrer do espetáculo, chuva esta reforçada com a sonoplastia de trovões e a luz dos relâmpagos, que os antecedem.

 

 

 

"Pegando um gancho" aqui, já que falei de efeitos de iluminação, o desenho de luz, criado por DANIELA SANCHEZ, atende a todas as necessidades da encenação, sem muita variação, o que, também, seria desnecessário. Uma ausência também pode se tornar um grande acerto.

 

 


 

Para completar os comentários sobre os elementos de criação que fazem parte da FICHA TÉCNICA, devo mencionar o acerto de NEY MADEIRA e DANI VIDAL, na concepção dos figurinos, bem como o de quem os executou, pelo apuro dos acabamentos, marca registrada dos trabalhos da dupla.

 

 

 

A peça recebe, ainda, um bom tratamento de música original, composta por JOÃO CALLADO.

 

 

 

Louvem-se a produção geral, de EDUARDO BAKR, e a coordenação de produção, sob a responsabilidade de NORMA THIRÉ.

 

 


FICHA TÉCNICA:

Texto: Christopher Demos-Brown

Tradução: Tadeu Aguiar

Direção: Tadeu Aguiar 

 

Elenco: Flavia Santana (Kendra), Leonardo Franco (Scott), Daniel Villas (Larkin) e Marcelo Dias (Tenente Stokes)

 

Cenografia: Natália Lana

Figurinos: Ney Madeira e Dani Vidal

Desenho de Luz: Daniela Sanchez

Música Original: João Callado

Coordenação de Produção: Norma Thiré

Produção Geral: Eduardo Bakr

Realização: Papel Pardo e Estamos Aqui Produções Artísticas

Fotos: Carlos Costa (Oficiais.) e Ricardo Brajterman (Convidado.)

Assessoria De Imprensa: Barata Comunicação e Dobbs Scarpa


 

         


 

 

SERVIÇO: 

Temporada: De 12 de janeiro a 12 de fevereiro de 2023.

Local: Teatro Firjan Sesi Centro.

Endereço: Avenida Graça Aranha, nº 1 – Centro - Rio de Janeiro.

Dias e Horários: Quintas e sextas-feiras, às 19h; sábados e domingos, às 18h.

Valores dos Ingressos: R$40,00 (inteira) e R$20,00 (meia entrada).

Vendas pela plataforma Sympla ou na bilheteria do Teatro.

Classificação Etária: 12 Anos.

Duração: 100 minutos.

Gênero: Drama.

 

 


 

 

Se o que você busca, no TEATRO, no momento, é o mero divertimento, unicamente como fonte de lazer, o que é muito válido, não é ao Teatro Firjan Sesi Centro, no Rio de Janeiro, que você deve ir; na verdade, passe pela calçada oposta. Se, bem diferente disso, seu objetivo é travar contato com uma história bastante impactante, contada com palavras “duras”, “sem maquiagem”, provocativa, bastante realista, desencadeadora de muita motivação para debates sobre o comportamento humano, no que diz respeito a (in)tolerância, ao “pré-conceito” e ao extremo oposto da empatia, vai encontrar isso naquele Teatro (VER SERVIÇO.).








FOTOS: CARLOS COSTA 

(Oficiais)

e

RICARDO BRAJTERMAN (Convidado.)

 


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