PRESSA
(O MUNDO ESTÁ / É DOENTE
OU
DOENTE ESTAMOS / SOMOS TODOS NÓS?
ou
UM ÓTIMO TEXTO,
UM DRAMA QUE
NOS FAZ RIR;
MAS DO QUÊ?
ou
QUEM TEM PRESSA
NÃO É À TOA.)
No
ano passado, bem no início de setembro, assisti a um espetáculo, no penúltimo
dia da temporada e, simplesmente, o adorei. Não fazia sentido escrever sobre a peça,
ao apagar dos últimos refletores. Preferi, então, aguardar que voltasse ao
cartaz, o que me fora prometido, sem data prevista, para ter o prazer de
assistir a ela novamente e, então, tecer comentários sobre o que vi. E é o que
estou fazendo agora. Demorou um bom tempo, quatro meses, mas, para a alegria de quem
gosta do bom TEATRO, ele está de
volta.
O
espetáculo chama-se “PRESSA” e
revi-o, na nova temporada, na sessão para convidados, na última 2ª feira, com
três ótimas substituições no elenco,
no Teatro Gláucio Gill (VER SERVIÇO.).
Trata-se de uma
peça inédita, texto indicado a Prêmio Botequim Cultural, do autor e ator paulistano OCTÁVIO
MARTINS, confiado à COMPANHIA
OS FODIDOS PRIVILEGIADOS,
uma das mais conceituadas e consagradas companhias cariocas, nascida, há 26 anos (1991), fundada pelo saudoso e
genial Antônio Abujamra, reunindo
cerca de 30 atores, inicialmente,
sediada no Teatro Dulcina, com bastantes
atores jovens. Eles carregam, em sua linguagem, o espírito debochado, o
rigor formal e a racionalidade de seu fundador.
Muitos
elementos da antiga formação da COMPANHIA
estão, até hoje, inseridos nela ou fazendo trabalhos por fora. Um dos grandes
esteios dos FODIDOS é JOÃO FONSECA, que passou a liderar o
grupo, com o gradual afastamento de Abujamra.
JOÃO dirige, desde então, todos os
espetáculos do grupo, inclusive este “PRESSA”,
ao lado do consagrado cenógrafo NELLO MARREZE, que se revela um excelente
diretor, como debutante na função.
Desde
1995, OS FODIDOS PRIVILEGIADOS vêm desenvolvendo a prática de oficinas, seminários, grupos de
estudos e pesquisa, leituras dramáticas, tributos e montagens de textos
clássicos e contemporâneos, de autores nacionais e estrangeiros, tudo agregado
a um trabalho cênico, de investigação de linguagem e ampliação de plateias no TEATRO, horizontes que pautam sua linha
de atuação no mercado cultural brasileiro.
SINOPSE:
“PRESSA” é uma peça tem uma dramaturgia moderna, provocadora, não
linear, fragmentada e bastante dinâmica, com cenas curtas e entrecortadas, as
quais focam personagens marcados pela brutalidade e achatamento, o que
determina suas ações, mantendo-os aprisionados na lógica absurda do imediatismo
alienante que encobre a amoralidade, a corrupção e a falta de escrúpulos nas
relações e nos discursos da vida cotidiana.
A peça aborda relações pessoais, afetadas
pela urgência. Quem não tem pressa
na concretização de um aborto, por exemplo? Ou na procura de um tratamento para
um paciente soropositivo?
São quatro histórias, com onze personagens, que têm suas trajetórias
cruzadas, por questões que demandam uma solução de curto prazo.
Por trás da lógica absurda do imediatismo alienante, estão a
amoralidade, a corrupção, a falta de escrúpulos, a brutalidade e a perversão,
nas palavras e nos atos.
Pela curta sinopse, conseguimos sentir, no ar, mesmo antes de assistir à peça,
um “cheirinho” de Nelson Rodrigues
no pedaço. Não é só impressão olfativa. Para escrever este texto (Ele tem
outros, tão excelentes quanto; “Caros
Ouvintes” é um deles.), OCTÁVIO
demonstra ter bebido naquela fonte e ter assimilado o que de melhor possa ser
extraído da vasta obra rodriguiana, da qual, nunca fiz segredo, não sou fã,
gostando apenas de poucas de suas peças.
O fato é que o universo de Nelson está vivo, em “PRESSA”. Seus personagens parecem ter
ressuscitado e lá estão, misturando características pessoais de vários deles,
comuns a tantos de sua galeria de bizarrices.
O que mais marcante se faz, no excelente texto, é o caráter amoral de cada um, até mesmo daqueles que fingem
lutar contra as tentações.
Considero perfeita a carpintaria
teatral empregada por OCTÁVIO,
que consegue entrelaçar histórias, situações díspares, que acabam convergindo
numa só, praticamente. Todos estão presos a uma teia, à mesma teia,
inteligentemente construída pelo dramaturgo,
da qual não conseguem se livrar, se é que tal desejo possa ter passado,
verdadeiramente, em algum momento, pela cabeça de algum dos personagens, todos
muito “doentes” ou “doentios”, do ponto de vista psicológico e moral.
A insanidade perversa permeia todos e gera situações absurdas, verdadeiros
atentados ao que seria de se esperar do comportamento e das relações entre
seres “ditos” humanos.
O texto mexe muito com a
sensibilidade do espectador e, apesar de ser um drama, provoca risos, até gargalhadas, para o que, na verdade, não
há motivos. Rimos de nervoso, tensos, com o desenvolvimento gradual da trama.
Rimos do patético, do inusitado e, até mesmo, do ridículo.
Segundo
o “release”, que me foi enviado por FILOMENA MANCUZO, a qual também atua na
peça, “o texto trata
de um universo caótico e em transformação, de como as pessoas são capazes de se
alienar e se corromper, num mundo cada vez mais ‘selfie-ish’ e ‘globalizado’”.
O espetáculo fez uma boa carreira,
durante sua primeira temporada, e promete repetir a dose, na atual, em função
de sua qualidade, como entretenimento e fonte de reflexão para uma análise dos
tipos humanos com os quais nos deparamos, no dia a dia. Todos nós somos, em
parte ou por inteiro, um daqueles personagens; ou temos alguém, na família,
parecido com algum deles; ou conhecemos ou já ouvimos falar de alguém, pelo
menos, que nos lembre um dos que estão em cena.
O
humor ácido e cruel do texto é um
convite a que não pisquemos durante a montagem, bastante dinâmica e fruto de
uma inteligente e criativa direção, como
uma história em quadrinhos ao vivo, que conta com um elenco bastante entrosado, com excelentes
atores, daqueles que estão sempre levantando a bola, para um outro matar no
peito e estufar a rede. Tudo partindo de jogadas muito bem ensaiadas, nos
treinos. O resultado é uma goleada.
Não
sei, nem tenho interesse em saber, proporcionalmente, o quanto há do dedo de JOÃO ou de NELLO neste trabalho, a quatro mãos, de direção. Aquele, um consagrado diretor;
este, um iniciante na função, como já dito. O que importa é o grande
entrosamento que há entre os dois, na condução do trabalho, não fossem eles
companheiros de palco de longos anos, JOÃO
como excelente diretor e NELLO como grande cenógrafo. A dobradinha sempre deu certo. Agora, os dois se
renovam: JOÃO também volta a atuar,
o que faz bissextamente, e NELLO
aposta no grande desafio de dirigir. O
resultado é ótimo!
Os
palcos do Teatro Sesc Tijuca e o do Teatro Gláucio Gill, salvo engano, têm
quase as mesmas dimensões (Espero não estar cometendo um grave erro de
percepção visual.) e um dos pontos fortes da direção é saber valorizar e ocupar a dimensão dos dois espaços, o
conhecimento da realidade espacial, entrecortando as cenas e fazendo os
personagens se deslocarem, sem interferir no que está acontecendo sob os focos;
ou seja, o que está em segundo plano também importa, sem atrapalhar o que é,
num determinado momento, eleito para chamar a atenção do público.
Como
em tantos outros espetáculos encenados pelos FODIDOS, o cenário (leia-se NELLO MARREZE) é um elemento que é
mais funcional que estético, econômico, nos elementos, mas sempre funcionando
muito bem. Em “PRESSA”, só há uma
cortina, ao fundo, feita com grandes lenços, ou algo parecido, emendados, em
tons predominantemente escuros, pendendo do teto, lado a lado, como se fosse
uma enorme persiana vertical. No mais, algumas cadeiras, utilizadas quando o
palco não está totalmente nu. A “dança de cadeiras”, a utilização, à farta, desse
tipo de móvel, é uma constante, nas direções de JOÃO FONSECA, sempre com excelentes resultados. Servem, também,
para que os atores que não estejam em cena aguardem suas deixas, sentados, nas
duas coxias aparentes.
Os figurinos, de VICTOR GUEDES, são meios atemporais, difíceis de serem catalogados
como pertencentes a uma determinada época ou estilo. Poderíamos dizer que são
vestes do dia a dia, adequadas aos personagens, mais para a contemporaneidade,
sem exageros nem grandes destaques.
A iluminação, a cargo de LUIZ PAULO NENEN E TIAGO MANTOVANI, é
um elemento muito explorado e importante, neste espetáculo, uma vez que, como
há vários atores ocupando o espaço cênico, com cenas rápidas, curtas e alternadas,
o desenho de luz tem de ser muito
dinâmico, com focos alternantes, exigindo muita atenção do operador da mesa, o que pode gerar algum
ligeiro problema, como um, pontual, ocorrido na sessão que estou analisando.
Nada que comprometesse o espetáculo, mas que me serve de motivação para elogiar
a sagacidade das duas atrizes em cena, naquele momento, RAFAELA AMADO e MARIAH
VIAMONTE, que, percebendo a pane, correram para um único foco de luz,
que ficou à frente do palco, num dos cantos, quando a cena se dava no meio deste.
Corrigido, quase instantaneamente, o problema, ambas voltaram para as suas
marcas, com a maior naturalidade, sem deixar a cena “cair”, “e la nave va”.
JOÃO
FONSECA assina a agradável trilha sonora, adaptável às cenas.
Quanto
ao elenco, é preciso falar que, da
temporada passada para esta, três substituições ocorreram, sem prejuízo da
qualidade já constatada, por mim, quando vi o espetáculo pela primeira vez. JOÃO FONSECA, corajosamente, substitui um
dos melhores atores de sua geração, André
Dias. E dois jovens atores daquele elenco
estão muito bem representados neste: Saulo
Segreto cedeu lugar a THIAGO MARINHO;
RAFAEL COIMBRA assumiu o papel,
antes, defendido por Daniel Rangel.
Não
seria justo evidenciar trabalhos individuais, uma vez que os onze, em cena,
atuam como onze jogadores, num campo. Futebol é conjunto, é esporte coletivo; TEATRO é equipe, exige empatia.
É
bastante interessante o modo de atuar de todos, certamente seguindo a
orientação dos diretores, quando
interpretam de uma forma bem naturalista,
que, se não exagero, está bem próxima à linha de Stanislavski, “o primeiro mestre do TEATRO a sistematizar
um método de atuação, que não exclui, de suas reflexões, a relação ator-texto.
A voz, no trabalho do ator, ganha uma importância, que ultrapassa aspectos da
boa dicção e capacidade declamatória. Predomina a ideia de dar vida às palavras
do texto, fazendo com que a atuação deixe de valorizar o verossímil e se torne
crível, num grau que não gere dúvidas no espectador”.
A interpretação
naturalista exige uma relação que o diretor
e, também, o ator criam com o texto. Sendo assim, a representação
deixa de ser forçada e o ator conquista uma liberdade de interpretação, que
leva a peça a parecer mais verdadeira. “Como representante do naturalismo nos
palcos, Stanislavski julgava que o público precisava acreditar no que estava
vendo, de tal forma que o que estava sendo encenado devia assemelhar-se a um
acontecimento cotidiano, o que diferia da falsa ilusão de realidade, que era gerada
antes, com o drama romântico”. Isso é perceptível na peça ora
analisada.
Gosto muito das soluções que a direção encontrou para levar o
espectador a enxergar o que não está fisicamente em cena, como uma sala de
estar, um escritório, um bar, uma casa de prostituição...
Creio que falar de determinadas cenas
seria roubar, àqueles que ainda assistirão à peça, o prazer de ver quantas surpresas
desfilarão no palco, mas chamo a atenção para uma, excelente, a da passagem de
uma determinada quantia, de mão em mão, como numa coreografia, que lembra a
progressão da cadeia capitalista, como sistema.
FICHA TÉCNICA:
Autor:
Octávio Martins
Direção:
João Fonseca e Nello Marreze
Personagens / Elenco: Companhia Os Fodidos Privilegiados:
Esposa Aflita - Filomena Mancuzo / Isley Clare
Marido Calmo - Diogo Camargos
Garota
Grávida - Mariah Viamonte
Rapaz
Preocupado - Rafael Coimbra
Marido 1 - Alexandre Pinheiro
Mulher
1 - Paula Sandroni
Marido
2 - Roberto Lobo
Mulher
2 - Rafaela Amado / Rose Abdallah
Rapaz
Feliz - Thiago Marinho
Irmão Doente - João Fonseca
Velha
- Thais Portinho (participação especial)
Cenário:
Nello Marreze
Figurino:
Victor Guedes
Iluminação:
Luiz Paulo Nenen e Tiago Mantovani
Trilha
Sonora: João Fonseca
Programação
Visual: Maurício Tavares
Produção:
Filomena Mancuzo
SERVIÇO:
Temporada:
de 19 de janeiro a 19 de fevereiro
Local:
Teatro Gláucio Gill
Endereço: Praça Cardeal Arcoverde s/nº –
Copacabana – Rio de Janeiro
Dias e Horários – De 6ª a 2ª feira, às 20h
Classificação Etária – 16 anos
Duração – 70 minutos
Valor
dos Ingressos: R$40,00 (inteira) e R$20,00 (meia entrada)
Lotação:
105 lugares
“PRESSA” é uma das melhores opções de
espetáculos em cartaz, no momento, no Rio
de Janeiro, e penso que sua trajetória não vai terminar ao final da atual
temporada; há espaço, público e demanda para novas outras.
Recomendo
o espetáculo com muito empenho, na certeza de que os que seguirem a minha
sugestão não haverão de se arrepender.
E VAMOS AO TEATRO!!!
OCUPEMOS TODAS AS SALAS DE ESPETÁCULO
DO BRASIL!!!
(FOTOS: GUGA MELGAR.)
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