quarta-feira, 7 de dezembro de 2016


OS CADERNOS DE KINDZU

 

(A SAGA CONTINUA.)

 

 

 

            Às vezes, demora um pouco, para surgir um novo espetáculo da AMOK TEATRO, mas sempre vale a pena esperar. Valeu o hiato entre o magnífico “Salina (A Última Vértebra)”, que ganhou vários prêmios e foi indicada a tantos outros, e este sensacional “OS CADERNOS DE KINDZU”, ora em cartaz, até o dia 18 de dezembro (2016), no Teatro III, do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro.

            A mais recente produção do grupo, com a brilhante direção da dupla ANA TEIXEIRA e STÉPHANE BRODT, é baseada na obra “Terra Sonâmbula”, escrito em 1992, e no universo do grande escritor moçambicano, MIA COUTO.

 

 
Vanessa Dias.
 


 
SINOPSE:
 
O espetáculo conta a trajetória do jovem KINDZU (THIAGO CATARINO), que, para fugir das atrocidades de uma devastadora guerra civil, deixa sua vila e parte para uma viagem iniciática.
 
Nela, encontra outros fugitivos, refugiados e personagens repletos de humanidade, que lhe farão viver experiências, ancoradas tanto na cultura tradicional do sudeste da África quanto na vivência de um conflito devastador.
 
Após ter perdido o pai, KINDZU nota a tristeza da mãe, vê pessoas mortas à sua volta e toma a decisão de ir embora, em busca dos naparamas, os guerreiros tradicionais, abençoados pelos feiticeiros, que são, aos olhos do rapaz, a única esperança contra os senhores da guerra, nos quais ele deposita sua fé e aos quais pretende se juntar.
 
A trajetória do herói se desvia do objetivo, à medida que ele vai conhecendo outras pessoas e suas histórias.
 
Uma dessas pessoas, especialíssima, para ele, é FARIDA, uma jovem, que crê ser amaldiçoada, por quem o protagonista se apaixona.
 

 
 

Thiago Catarino.
 

            Já inicio esta modesta análise, dizendo que não se deve tentar estabelecer nenhuma comparação entre as duas peças, “Salina...” e “...KINDZU”, ainda que ambas sejam, igualmente, fascinantes.

            Para ser escrita, foi levado em consideração o diário de KINDZU, formado por doze cadernos, nos quais se desenvolvem narrativas, que revelam a dimensão onírica e mítica da existência, como formas de resistir à violência, como declara a diretora ANA TEIXEIRA, no lindo e bem cuidado programa da peça.

Com este espetáculo, a companhia dá continuidade a uma pesquisa, iniciada com “Salina (A Última Vértebra”), visando a uma investigação das formas narrativas, inspiradas em tradições de matriz africana, tão ricas e encantadoras e, ao mesmo tempo, de pouco conhecimento para os brasileiros. São, porém, duas diferentes propostas de linguagem cênica, uma vez que, enquanto “Salina...” faz um mergulho numa África ancestral, “...KINDZU” se volta para uma África pós-colonial.
 

 
Sérgio  Loureiro e Thiago Catarino.
 

Segundo STÉPHANE BRODT, um dos criadores do espetáculo, “O texto de ‘OS CADERNOS DE KINDZU’ foi abordado com a abertura de quem busca um diálogo criativo e não uma tradução cênica de uma obra literária. Ao longo desse processo, uma nova narrativa foi-se construindo. A trajetória de KINDZU e seus companheiros encontraram uma identidade própria na cena, porém não se afastaram da escrita de MIA COUTO, da sua riqueza poética e suas imagens, ancoradas na cultura oral africana”. O texto é uma reinvenção, uma reconstrução de uma saga de um herói sonhador e de uma história de amor. Pode-se dizer que a oralidade, a marca da tradição do ato de contar histórias, que vai passando, de geração a geração, perpetuando-se no universo cultural, está presente em toda a peça.

O que se vê, em cena, não é uma mera transposição, adaptada, de uma obra literária, para a linguagem teatral. A dramaturgia é livre, misturando narrativas e diálogos, e, ao mesmo tempo, não se permite afastar, por uma desconstrução, do estilo do consagrado e premiado escritor MIA COUTO, porém agrega, à obra, valores, aparentemente, incompatíveis com o TEATRO, no Brasil, mas cujo resultado, no entanto, é fantástico. É muito inspirador ver a sintaxe lusa, já que, como ex-colônia de Portugal, os moçambicanos falam sob influência dos portugueses, com destaque para as belíssimas colocações pronominais e diferentes regências, nominais e verbais, sem falar, obviamente, nas variações semânticas.   

“Passando do conto à ação e da palavra ao canto, o espetáculo propõe uma incursão na guerra de independência do Moçambique, para explorar a natureza humana e a necessidade de reconstruir a vida e a memória. Com ‘OS CADERNOS KINDZU’, o AMOK TEATRO aborda o fantástico e explora a língua portuguesa, em diferentes sonoridades”, diz o “release” da peça.


 
Stéphane Brodt e Thiago Catarino.


E prossegue o “release”: “O espetáculo aprofunda a pesquisa cênica, iniciada com o projeto ‘Salina (A Última Vértebra)’, onde o AMOK investiga diferentes formas da narrativa, no contexto de culturas africanas, afro-brasileiras e, agora, afro-lusitanas. Com ‘...KINDZU’, a música, a literatura e o teatro se fundem numa expressão única e indissociável”. Trata-se, portanto, de um belo exemplo de espetáculo multimídia.

            Se alguém tentar encontrar um ponto fraco no espetáculo, perderá seu tempo e deixará de usufruir momentos mágicos, poucas vezes vistos em TEATRO. Do texto à interpretação dos atores, passando pelos elementos técnicos, por assim dizer, e pela direção da peça, tudo é digno de destaque e elogios, fruto de um profundo e demorado trabalho de pesquisa, visando ao belo, estética e poeticamente falando.

            O trabalho dos atores, que se revezam em mais de um papel, com exceção de THIAGO CATARINO (KINDZU), o protagonista, e de GRACIANA VALLADARES (FARIDA), é irretocável. Os dois estiveram em “Salina...”, além de JULIANA LOPES e SÉRGIO LOUREIRO, mas ainda marcam presença, nesta montagem, de forma inquestionável, GUSTAVO DAMASCENO e VANESSA DIAS, além de STÉPHANE BRODT, em luxuosa participação especial. Todos, sem exceção, executam, com a maior dignidade, a função de atuar, além de cantar e tocar vários instrumentos, ocupando-se da bela trilha sonora, criação coletiva do GRUPO AMOK, e permanecem em cena, quer participem, quer não dela, entretanto muito me impressionou e comoveu, merecendo um destaque especial, a atuação de THIAGO. É tão bom ver um ator, ainda jovem, se entregar, de corpo e alma, a um personagem, mergulhar de cabeça e conseguir transportar o espectador para outro plano. Nem o desconforto das cadeiras do Teatro III, do CCBB, foi capaz de me desviar do foco desse ator, que não sai de cena, salvo engano, em momento algum, durante os 120 minutos de duração do espetáculo, que passam sem que se perceba.

 

 
Thiago Catarino.


            THIAGO atingiu um tom de voz e de pronúncia suave e melodioso, que faz bem aos ouvidos. O personagem é cativante; forte e frágil, ao mesmo tempo. Forte, nos seus objetivos, e frágil, diante de tantas adversidades e possibilidades de não conseguir atingir o seu ideal. Dá vontade de invadir o espaço cênico e acarinhá-lo, a cada derrocada, que ele não permite que o derrube. É uma fênix, em cena.

GRACIANA VALLADARES é uma atriz de grandes recursos, que também consegue emocionar a plateia, com sua interpretação da sofrida FARIDA, capaz de angariar a simpatia e a cumplicidade de todos; mais que isso, o público sofre com ela, não fisicamente, mas a dor da alma, que dói mais. Mais um excelente trabalho dessa grande atriz.



 
Graciana Valladares.
 

JULIANA LOPES (MÃE KINDZU, TIA EUZINHA e JULIANA - a prostituta cega), extrapola toda e qualquer expectativa de um espectador que não conheça, ainda, seu potencial interpretativo. Não me surpreendeu, porém. Nas três personagens, tem um rendimento acima do normal, com destaque para a personagem da prostituta cega, para a qual reserva um humor triste e faz com que achemos graça de sua desgraça. A caracterização física da personagem, por si, já desperta o interesse de quem assiste ao espetáculo, mas isso, associado à interpretação da atriz, é responsável por uma excelente composição de uma personagem.

SÉRGIO LOUREIRO também é um ator que marca presença em qualquer trabalho de que participa, e não é diferente aqui. Quer como o PAI KINDZU, quer como QUINTINHO, suas participações são irretocáveis.

GUSTAVO DAMASCENO, para nossa alegria, volta a trabalhar com o AMOK TEATRO, depois de um período, atuando em outras companhias. Sua volta deve ser comemorada em grande estilo, pois se trata de um dos melhores atores de TEATRO, da sua geração e, neste espetáculo, ratifica seu talento, interpretando ROMÃO PINTO, que representa o português dominador, colonizador, um grande vilão, e o ANÃO XIPOCO, um elemento da cultura de Moçambique, um regionalismo, que significa “alma penada, que vagueia sem destino, um fantasma”.

 
 

Gustavo Damasceno.
 

Não tinha, ainda, tido o prazer e a oportunidade de conhecer o trabalho de VANESSA DIAS, que se desdobra em três personagens, ASSMA, ANÃO XIPOCO e VIRGÍNIA, saindo-se muito bem em todos eles. Ela começou a trabalhar no AMOK, substituindo uma atriz, em “Histórias de Família” e “Kabul”, nas turnês internacionais do grupo (Edimburgo e China), além de ter feito a assistência de direção de “Salina...”.

“Last, but not least”, temos STÉPHANE BRODT, numa fantástica interpretação do comerciante indiano SURENDRA, rejeitado e que não ama pretos, nem brancos; ama seres humanos.   


 
Stéphane Brodt.


Em todas as montagens do AMOK TEATRO, o cenário, os figurinos e a iluminação são três elementos que formam um tripé de sustentação para o espetáculo, dando suporte a que o trabalho dos atores seja valorizado. Não é diferente aqui.

No centro do palco, sempre poucos elementos cênicos, fixamente, ou quase nenhum. Eles ficam no perímetro do espaço cênico, prontos a serem utilizados nas cenas em que se fizerem necessários, assim como todos os instrumentos musicais utilizados, alguns bem exóticos. É sempre muito criativo o cenário nas peças do AMOK, assinados por ANA TEIXEIRA e STÉPHANE BRODT, responsáveis, também, pelos figurinos, muito próprios e igualmente criativos, servindo totalmente aos personagens.

A terceira perna do tripé, a iluminação, a cargo de um mestre, RENATO MACHADO, é mais intimista, menos intensa, na maior parte do tempo, com alguns detalhes localizados, que valorizam as cenas, como os focos azuis, projetados sobre instrumentos que simulam o barulho das ondas do mar. Isso é de suma importância, para a criação de um clima, tão necessário às cenas.  
 
            E, como os Três Mosqueteiros, na verdade, eram quatro, eu diria que, mais que um tripé de sustentação, o que funciona, aqui, é um quadripé, do qual também faz parte outro importante elementos no trabalho do AMOK que é a música. Ela nos conduz na viagem com KINDZU e é um elemento que nos provoca uma surpresa após a outra. As canções, com letras em línguas ou dialetos africanos, além de lindas, são de uma sonoridade que deleita e nos faz flutuar , de leveza e prazer. Tudo sob a direção musical de STÉPHANE BRODT.

 

Thiago Catarino e Luciana Lopes.


            Dentre os tantos detalhes que merecem atenção, nesta montagem, destaco a excelente ideia de o público, ao adentrar o auditório do Teatro, já encontrar os atores dispostos à volta do espaço cênico, ouvindo VANESSA DIAS a interpretar uma canção portuguesa, acompanhando-se ao acordeão. Isso vai iniciando a plateia no universo dos fatos a serem contados. A primeira canção, interpretada coletivamente, chama a atenção, por sua beleza melódica e pela interpretação do elenco.

           Na primeira cena, propriamente, já se pode sentir o que fará, de maravilhoso, THIAGO CATARINO, no decorrer da peça. Ele, diante de uma cruz, que facilmente reporta a um túmulo, visivelmente emocionado, reza uma longa oração, uma espécie de Pai-Nosso, na língua “tsonga”, uma etnia majoritária na região da África em que se passa história. 

            Algumas cenas são marcantes e contam, diretamente, com a indispensável colaboração do iluminador. Uma delas é quando KINDZU rema, numa jangada, um excelente trabalho de corpo do ator. 

            Duas outras provam que é possível passar verdade e beleza, em cenas de sexo, sem qualquer tipo de exageros ou apelação. O nu, em cena, tanto pode ser belo e necessário como chocante e sem sentido. Tanto a cena em que FARIDA é estuprada pelo desprezível personagem ROMÃO quanto a noite de amor, entre KINDZUFARIDA são provas cabais disso, de uma beleza e de um lirismo incomensuráveis. Confesso que a cena do estupro é tão fascinantemente construída, sem que os corpos se toquem, que considero uma das coisas mais belas que já vi em TEATRO, assim como me encantei com o sexo entre os dois enamorados, feito por trás de uma tela, por meio de sombras, no qual o máximo a que chegam os atores é despirem-se das vestes que lhes cobrem a parte superior do corpo e quase não se tocarem. Um primor de cena!

 
O estupro I.
                                   

O estupro II.

A noite de amor.



 
FICHA TÉCNICA:
 
OS CADERNOS DE KINDZU é uma criação do AMOK TEATRO, a partir da obra “Terra Sonâmbula” de MIA COUTO.

Direção, Cenário e Figurino: Ana Teixeira e Stéphane Brodt
Assistente de Direção: Sandra Alencar

Atores: Graciana Valladares (Farida), Gustavo Damasceno (Romão Pinto e Anão Xipoco), Luciana Lopes (Mãe Kindzu, Tia Euzinha e Juliana), ​Sérgio Loureiro (Pai Kindzu e Quintinho) Thiago Catarino (Kindzu) e Vanessa Dias (Assma, Anão Xipoco e Virgínia).

Participação especial: Stéphane Brodt (Surendra)

Luz: Renato Machado
Direção Musical: Stéphane Brodt
Música (criação e interpretação): o elenco
Fotos: Daniel Barboza
Designer Gráfico: Paulo Lima
Assessoria de Imprensa: LEAD Comunicação
Produção Executiva: Zana Marques
Coordenação Administrativa: Eureka Ideias / ​Sônia Dantas
 

 
 

Vanessa Dias e Graciana Valladares.
 
 

 
SERVIÇO:
 
Temporada: De 26 de outubro a 18 de dezembro (2016)
Local: Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) – Rio de Janeiro - Teatro III
Endereço: Rua Primeiro de Março, 66 - Centro, Rio de Janeiro – RJ
Telefone para Informações: (21) 2547-0156
Dias e Horários: De 4ª feira a domingo, às 19h30min
Valor dos Ingressos: R$20,00 (inteira) e R$10,00 (meia-entrada)
Telefone da Bilheteria: (21) 3808-2020
Duração: 120 minutos
Classificação Etária: 14 anos
Gênero: Drama
 

 
            O tom onírico e o realismo mágico que pontuam todo o espetáculo, a ponto de permitir que o herói converse com o fantasma de seu pai e sonhe com a liberdade para seu povo, além da plasticidade do espetáculo e o peso da beleza que contém sua sonoridade fazem com que eu o classifique como um dos grandes espetáculos do ano, certamente fazendo jus a indicações a prêmios.

            Não é um espetáculo voltado ao lazer; é para mexer com a emoção do espectador, tirando-o de sua zona de conforto e provocando-lhe reflexões acerca do preço que se paga pela liberdade e pelo desejo de conquistas, mormente as que não são físicas.

 

(FOTOS: DANIEL BARBOZA.)
 
 
 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
 

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