CHICA
DA
SILVA
– O
MUSICAL
(A NEGRA...)
Uma
das mais conhecidas personagens da História
do Brasil, passando a ser “de domínio público”, depois da canção composta
por Jorge Bem Jor (“Xica da Silva”),
que serviu de tema para um filme de Cacá
Diegues, em 1976, com o mesmo título, para sempre, eternizada, na brilhante
interpretação de Zezé Mota, Xica da Silva (a negra), volta aos
braços do povo, agora no TEATRO, sob
a forma de um musical muito interessante e bem construído, no palco do Centro Cultural Correios.
Só
que a Xica do século XXI sofreu uma mudança ortográfica e virou CHICA, e nada tem a ver com a
personagem da História, que viveu no
século XVIII. Ou melhor, até tem,
graças à genialidade de RENATA MIZRAHI,
dramaturga que criou o texto, a partir de uma pesquisa de DANIEL PORTO.
RENATA quis contar a história de outra CHICA e decidiu fazer uso da intertextualidade, que nada mais é do
que a criação de um texto a partir
de outro pré-existente e pode apresentar funções diferentes, as quais dependem
muito dos textos/contextos em que ela é inserida, ou seja, dependendo da
situação. Por meio de um hipertexto,
apresentação de informações, organizadas de tal maneira, que o leitor
tem liberdade de escolher vários caminhos, a partir de sequências associativas
possíveis entre blocos vinculados por remissões, sem estar preso a um
encadeamento linear único, contou, paralelamente,
duas histórias, com ênfase na CHICA
de hoje, ambas, porém, ligadas por fatos e situações afins.
Vilma Melo.
Na
verdade, a escrava, que conseguiu sua alforria e se casou com o poderoso
contratador de diamantes João Fernandes
de Oliveira, viveu no século XVIII,
de início, no Rio de Janeiro, mas se notabilizou no Arraial do Tejuco, hoje, a cidade de Diamantina, em Minas Gerais.
Chamava-se Francisca da Silva de
Oliveira, advindo-lhe, daí, o apelido de Chica. A grafia foi alterada, apenas, para o filme, talvez, ou com
quase certeza, por uma questão de “marketing”.
Xica com “X” é diferente e chama mais a atenção do público.
As
histórias das duas, que invadem uma o espaço da outra, são bem diferentes, mas
são marcadas por um ponto em comum, que é de entristecer e revoltar qualquer
pessoa sensata: ambas foram vítimas da segregação racial e social; mais aquela
que esta, que acabam interligadas, já que esta, geralmente, é decorrência
daquela.
Vamos
diferençá-las, para efeito de melhor compreensão do texto, pelas duas grafias. Xica, a personagem histórica; CHICA, a ficcional, saída da imaginação
de RENATA MIZRAHI.
Xica manteve, durante mais de quinze
anos, uma união consensual estável com o rico contratador dos diamantes João Fernandes de Oliveira, tendo, com ele, treze filhos, embora
já tivesse um, quando a ele se juntou. O
fato de uma escrava alforriada ter atingido posição de destaque na sociedade
local, durante o apogeu da exploração de diamantes, deu origem a diversos mitos. Reza a lenda que,
amparada pela "proteção" do rico “marido”, homem poderoso (o poder do dinheiro), Xica tratava mal seus escravos e, mais
ainda, os brancos com quem lidava. Muito cheia de caprichos, exigiu que João lhe construísse uma galera, para que pudesse passear num lago, de
propriedade da família, além de viver empoada de branco, para “esconder sua etnia”. Era um tipo
exótico de mulher, equivalente a uma “noveau
riche” de hoje, trajando-se exuberante e ridiculamente, abusando de joias e
perucas.
Em 1770, João Fernandes teve de voltar a
Portugal, para tratar da herança que lhe deixara o pai, e levou consigo os quatro
filhos homens do casal, deixando Xica,
no Brasil, com as nove filhas, mulheres. Na peça, ela implora ao marido que a
levasse consigo, creio que, por medo de sofrer discriminação e/ou retaliações,
longe do seu “protetor”. Xica
faleceu em 1796.
A
CHICA de hoje, a da peça, é uma
bem-sucedida comerciante, negra, que se apaixona por um homem que, como João Fernandes, também é branco, cuja
mãe é profundamente preconceituosa e não admitia o relacionamento entre os
dois, até descobrir que a negra não pertencia à classe pobre e que era a mesma
pessoa a quem ela destratara, insultara, severamente, quando esteve, uma vez,
em sua loja, para tentar trocar um par de sapatos.
Segundo
o “release” da peça, “O espetáculo
celebra a força da mulher negra brasileira, com inspiração na história da
escrava alforriada, que virou mito nacional”.
Ainda
nos diz o referido “release”: “A
força da mulher negra brasileira foi construída a partir de séculos de
batalhas, conquistas, decepções e sonhos. O desejo de levar à cena essa
impactante trajetória, que inclui discussões sobre gênero, raça e cultura afro,
motivou a montagem de “CHICA DA SILVA – O MUSICAL”.
ALEXANDRE LINO, idealizador e produtor da
peça, também justifica esta montagem
com as seguintes palavras: “Apesar dos
inúmeros avanços que conquistamos, desde o século XVIII, essas mulheres
(negras) ainda encontram muita opressão, tanto nos ambientes profissionais
quanto em suas relações afetivas”.
SINOPSE:
RENATA MIZRAHI criou três planos diferentes.
No passado, o musical resgata
momentos da biografia da personagem histórica Chica da Silva, escrava alforriada que viveu, durante quinze anos,
uma relação estável com o rico contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, com quem teve treze filhos e conquistou
uma posição de destaque na conservadora sociedade do século XVIII.
No presente, a história de
Chica da Silva é representada pela
mulher negra, que ocupa espaços relevantes na sociedade, vive um momento
especialmente importante de conquistas femininas e sororidade (união de mulheres que compartilham os mesmos ideais
e propósitos), mas ainda enfrenta uma série de preconceitos nos âmbitos
pessoal e profissional.
O terceiro plano é o da
imaginação, mostrando a vida como a personagem gostaria que ela fosse, com
cenas de uma mulher amada, que jamais sofreu preconceito. Um belo mergulho no
universo onírico.
Para a dramaturga, RENATA MIZRAHI, “a peça distancia CHICA DA SILVA
daquela mulher devoradora de homens, a qual, muitas vezes, é associada, e a
aproxima da mulher negra do século XXI, que ainda tem que lidar com injúrias
raciais em sua vida cotidiana e, muitas vezes, precisa se ‘embranquecer’ para
ser aceita”.
A excelente atriz VILMA MELO,
que interpreta a protagonista diz que “Por um lado, é muito prazeroso interpretar
uma personagem que já está no imaginário dos brasileiros, que é um ícone, em
termos de atitude feminina; por outro, é um desafio desconstruir este mito e
criar esse paralelo com essas questões das mulheres contemporâneas, que ainda
sofrem muito no dia a dia”.
Não
há como não recomendar o espetáculo, por vários motivos. E o principal deles é
a pertinência do tema, muito bem explorado pelo texto de REANATA. É
preciso que não se pare de abordá-lo, na esperança de que possamos, um dia,
viver numa sociedade igualitária, em todos os sentidos, com as pessoas se amando
e se respeitando, como deve ser, longe de qualquer tipo de preconceito,
principalmente o racial.
O elenco
do musical não é formado por atores/cantores,
à exceção de VILMA MELO e ANA PAULA BLACK, que têm belas vozes, técnica
vocal e interpretam as canções de dentro para fora, além de serem donas de um
potente registro vocal. Os demais, entretanto, não fazem feio, atuando mais
como um coro, afinado e de resultado satisfatório. Quanto ao aspecto da interpretação, todos se saem muito bem,
fazendo mais de um personagem, com algumas cenas de destaque.
Se VILMA temia o desafio de vestir a “chica-que-manda”, deve ficar sabendo que o seu trabalho é
magnífico. Nota-as com o quanto de garra e paixão ela se apega à personagem, falando,
pela boca desta, o que, certamente, gostaria de dizer como cidadã. Sua
sensualidade, em cenas em que tal recurso deve aflorar, também evidencia sua
bela presença cênica.
Trata-se de um espetáculo modesto,
para a categoria “musical”,
entretanto isso não lhe diminui a qualidade, porque é feito com muito amor e
esmero, que podem ser comprovados pelo lindo e delicado cenário, de KARLLA DE LUCA, confeccionado com
material barato, mas que provoca um deleite estético, pela criatividade da
artista, ao criá-lo.
O mesmo também pode ser dito com
relação aos figurinos, também de KARLLA.
Na direção musical, a presença de ALEXANDRE
ELIAS é garantia de sucesso e bom gosto, com composições especialmente
escritas para a peça e o acréscimo de canções conhecidas, como a já referida “Xica da Silva”, de Jorge Bem Jor, e trechos de pontos de
umbanda, tudo regado a muita percussão, que faz pessoas (eu, pelo menos) se
sacudirem nas poltronas.
Sem muitas novidades, porque o
espetáculo não as comportaria, RENATO
MACHADO preparou uma luz muito
bonita, que valoriza todas as cenas.
A direção,
de GILBERTO GAWRONSKI, é criativa e
minimalista. Como o palco do CC Correios
é muito pequeno, não propriamente projetado para TEATRO, a me ver, o diretor,
com sua vasta experiência, além de ótimo ator, que é, soube aproveitar esse
pequeno espaço cênico, mantendo os cinco atores, quase que o tempo inteiro, no
palco, participando, direta ou indiretamente, de todas as cenas, com gestos e
movimentos parcimoniosos. Como todos interpretam mais de um personagem (TOM PIRES, por exemplo, é FERNANDES, o “marido” de XICA, e FERNANDO, o namorado de
CHICA, um belo paralelismo criado por
RENATA MIZRAHI), uma simples virada para o outro lado pode transformar um
personagem em outro. Um breve deslocamento, de um ponto do palco a outro, também.
O final do espetáculo é bastante
emocionante e o espectador sai do teatro leve e muito feliz pelo que viu. No
dia em que assisti a ele (e deve ocorrer em todas as sessões) só se ouviam
comentários elogiosos, de pessoas emocionadas com o espetáculo.
Recomendo-o, pois, na certeza de que os
que seguirem a minha indicação não terão motivos para arrependimento.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Renata Mizrahi
Pesquisa: Daniel Porto
Direção: Gilberto Gawronski
Elenco: Vilma Melo, Ana Paula Black, Antônio Carlos Feio, Luciana
Victor e Tom
Pires.
Cenário e Figurino: Karlla de Luca
Direção Musical: Alexandre Elias
Iluminação: Renato Machado
Fotos: Janderson Pires
Direção de Produção: Alexandre Lino
Realização: Cineteatro
SERVIÇO:
Temporada: De 8 de setembro a 30 de outubro de 2016
Local: Centro Cultural Correios: Rua Visconde de Itaboraí, 20, Centro –
Rio de Janeiro
Telefone: (21) 2253-1580
Dias e Horários: De 5ª feira a domingo, às
19h
Valor dos Ingressos: R$20,00 (inteira) e
R$10,00 (meia-entrada)
Lotação do Teatro: 200 lugares
Duração: 80 minutos
Classificação
Etária: 16 anos
Funcionamento
da Bilheteria: Diariamente, das 10h
às 19h.
(FOTOS: JANDERSON PIRES.)
Com Vilma Melo (Foto: Marisa Sá.)
Com Tom Pires (Foto Marisa Sá.)
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