CRÔNICAS
DE NUESTRA AMÉRICA
(SAUDADE DO BOAL.)
Há
os que, como eu, apenas lamentam o nefasto prejuízo, pelo qual pagamos até
hoje, que nos foi “legado” pelo golpe militar de 1964. Outros, além disso, sofreram, na pele, em
todo o corpo e na alma, as dores impostas por quem perseguia aqueles que eles
julgavam “comedores de criancinhas”, no sentido antropofágico.
AUGUSTO BOAL foi um desses
“subversivos”, que teve de procurar, no exílio, condições para sobreviver à
grande perseguição que lhe era imposta pelos ditadores, os quais se sucediam no
poder, apenas pelo “crime” de ser um gênio e não se calar aos desmandos e
arbitrariedades dos (des)governos militares.
Chegou a ser preso e torturado.
BOAL não foi; é, e sempre será, um
grande gênio, que nos legou, este sim, obras primorosas. Ficar aqui, falando sobre sua vastíssima
produção artística, ocuparia um grande espaço.
Ele, que faleceu em 2009, aos 78 anos, “foi um grande dramaturgo,
ensaísta, diretor e teórico do TEATRO,
uma das principais lideranças, na década de 60, do Teatro de Arena, além de ter sido criador do Teatro do Oprimido, metodologia internacionalmente conhecida, que
alia teatro a ação social, e que é um método teatral e modelo de prática cênico-pedagógica, sistematizados
e desenvolvidos, por ele, nos anos 70, com características de militância e que
se destinava à mobilização do público, vinculando-se ao teatro de resistência.” O Teatro
do Oprimido bebeu nas fontes das teses do grande educador Paulo Freire. Sobre o TO,
dizia BOAL: “O Teatro
do Oprimido é o teatro no sentido mais arcaico do termo. Todos os seres humanos são atores - porque
atuam - e espectadores - porque observam. Somos todos 'espectadores'”.
Dentre seus
principais trabalhos, destacam-se:
PEÇAS: Arena Conta Zumbi, Arena
Canta Bahia, Arena Conta Tiradentes,
Arena Conta Bolívar, Revolução na América do Sul, Primeira Feira Paulista de Opinião
(idealizada por ele e também com textos de outros autores), Murro em Ponta de Faca, O Corsário do Rei, dentre outras, como
autor, além de dezenas de direções, inclusive no emblemático Teatro Oficina. É dele, também, a direção de um dos marcos da
resistência à ditadura, o show Opinião,
com Zé Kéti, João do Vale e Nara Leão,
posteriormente substituída por Maria
Bethânia.
LIVROS: Mais de 20 livros, publicados e traduzidos em mais de vinte línguas, como
inglês, francês, alemão, espanhol, dinamarquês, norueguês e sueco, por exemplo.
MÚSICAS: Muitas de
suas peças eram musicais e nos revelaram canções que, até hoje, são cantadas e
relembradas com sucesso, quase todas em parceria. E já que estamos falando de músicas, a canção
Meu Caro Amigo, de Chico Buarque, em forma de uma carta,
foi composta em homenagem a BOAL,
quando de seu exílio em Portugal (“A Marieta manda um beijo para os
seus / Um beijo na família, na Cecília e nas crianças / O Francis aproveita pra
também mandar lembranças / A todo o pessoal / Adeus.”).
PRÊMIOS: De 1962 a 2008, colecionou
cerca de 30 prêmios, em todas as atividades que exerceu, inclusive tendo sido
indicado ao Prêmio Nobel da Paz, em
2008, por seu trabalho com o Teatro do
Oprimido. Em março de 2009, foi
nomeado, pela Unesco,
Embaixador Mundial do Teatro.
Falemos,
agora, de CRÔNICAS DE NUESTRA AMÉRICA:
Sem a menor
sombra de dúvidas, trata-se de um dos melhores espetáculos em cartaz, no
momento, um dos melhores que já vi nos últimos anos e, certamente, será
inesquecível. Entrará para a galeria de
honra dos grandes espetáculos de TEATRO
do Brasil, de todos os tempos. Está em
cartaz no Teatro Oi Futuro Flamengo,
e lá ficará até o dia 28 de setembro. Penso que deveria fazer um carreira muito
longa – e para isso torço bastante - e ser visto por todos aqueles que sabem
qualificar positivamente um espetáculo teatral.
ESTA PEÇA É DA MELHOR QUALIDADE.
Creio que os comentários acima já são suficientes para despertar, em
que me lê, neste momento, o desejo de ir logo conferir, entretanto falarei
ainda muito mais sobre a peça.
O espetáculo
que motivou esta resenha, CRÔNICAS DE
NUESTRA AMÉRICA, é uma genial adaptação,
além da dramaturgia, que THEOTÔNIO DE PAIVA fez de algumas
crônicas escritas por BOAL, entre
1971 e 1976, quando de seu exílio na Argentina.
São narrativas que traçam, com muita fidelidade, um quadro da vida
cotidiana na América Latina dos anos 70.
Para isso, BOAL, não
economiza talento e utiliza uma ótica de exilado, buscando elementos comuns aos
habitantes do sul do linha do equador, o seu cotidiano, as suas mazelas, as
diferentes formas de “cair, levantar a poeira e dar a volta por cima”, o que
ele próprio praticou. Cada uma delas, à
sua maneira, aborda, de forma bem-humorada, a capacidade do povo latino-americano
de superar as dificuldades e de encarar a vida de maneira sempre otimista,
apesar dos regimes de exceção que, durante muitos anos, devastaram alguns
países, como Brasil, Argentina e Chile, por exemplo, e cercearam a liberdade de
expressão dos povos da América do Sul.
Algumas
dessas crônicas foram publicadas no inesquecível O Pasquim, um dos símbolos de resistência, durante os anos de
chumbo, os quais mancharam, e mancharão, para sempre, a história de “nuestro”
país. “Em 1977, essas histórias foram
publicadas em conjunto, num livro, sob o título de Crônicas de Nuestra América. Todas elas trazem o olhar crítico, irônico – e,
muitas vezes, engraçado – do escritor AUGUSTO
BOAL, em uma faceta ainda pouco conhecida de sua obra: a do cronista mordaz
e bem-humorado dos tempos obscuros da ditadura militar.”
Segundo
a psicanalista argentina Cecília Boal,
sua viúva e presidente do Instituto
Augusto Boal, seu marido era leitor assíduo do jornal La Razón, de Buenos Aires, em cujas notícias encontrava inspiração
para seus escritos: histórias baseadas em fatos reais, engraçadas ou tristes,
bizarras e mirabolantes, por vezes, as quais, lapidadas pelo esmeril da privilegiada
imaginação e criatividade de BOAL,
eram transformadas em crônicas deliciosas, irônicas e safadas, algumas com
pitadas de um estilo que se aproxima das doces loucuras de Gabriel García Marques.
Pitadas de um realismo quase fantástico. O próprio dramaturgo afirmava que muitos
personagens de suas crônicas, ele os conheceu, manteve contato direto com eles,
que outros lhe chegaram por narrativas do povo e alguns são fruto de sua cabeça.
“A
adaptação de THEOTONIO DE PAIVA é
centrada no conto “O ‘Gato’, a mulher de
Johnny e a bicicleta a motor” (Delícia de título!), que se passa nas Ilhas
Falklands (Ou seriam Malvinas?), um território inglês, “terra de ninguém”.
Algumas das outras histórias aparecem contadas por personagens da Ilha, como se
fossem “impressões sobre o continente”.
Ao ouvi-las, ou vê-las encenadas, o espectador fica à vontade, para
tentar entender até que ponto pode haver verossimilhança naqueles fatos ou o que
possa ser considerado “normal” ou dentro dos padrões de normalidade impostos
pela sociedade.
O
adaptador e responsável pela dramaturgia foi muito feliz no trabalho de costurar
as histórias, resultando numa colcha de retalhos, em que cada um deles nunca
está isolado, sempre se relacionando com os que o circundam, formando um todo indecomponível. É fascinante como um fato puxa outro, que
gera mais um, que leva a outro mais, que volta ao que já foi referido, num
incrível encadeamento. Nada se perdeu do
“padrão BOAL de qualidade”; ao
contrário, o trabalho de THEOTÔNIO DE
PAIVA, mesclando narrativas e ricos diálogos, serviu para enriquecer, ainda
mais, a obra.
O
que, primeiro, chama a atenção, logo que se adentra o teatro, é o cenário, de DANI VIDAL e NEY MADEIRA, um dos mais interessantes que já vi até hoje. É impactante e desafia o espectador a
entender o que está à sua frente, no palco, e o que pode ali acontecer. Parece ser um navio estilizado; uma
embarcação, pelo menos. Mas há,
agregados a uma grande e compacta estrutura, diversos elementos, no mínimo,
curiosos, responsáveis por fazer com que o espectador experimente outras
“adivinhações”. Até então, não se sabe
que a principal locação da trama será uma ilha.
Com o início do espetáculo, a grande surpresa: os atores vão entrando e
movendo peças daquele “quebra-cabeças”.
Há uma desconstrução, para se dar uma construção do “verdadeiro”
cenário. Uma das sacadas mais geniais da
direção (leia-se GUSTAVO GUENZBURGER, que também colaborou na adaptação), em trabalho conjunto, é óbvio, com a dupla
de cenógrafos. E essa prática de “tira
daqui e põe ali, junta isto àquilo, façam-se os encaixes” prossegue até o final
da peça, constituindo-se num elemento de destaque do espetáculo, para o que
concorrem os deslocamentos de três torres, as quais se desdobram em vários
cenários. É de um efeito plástico
belíssimo o bar cenográfico, com seu conjunto de garrafas, com “bebidas”
multicoloridas, que vão sendo consumidas ao longo da peça. Simplesmente, genial!
A
dupla DANI e NEY também assinam os figurinos
da peça, muito bons, criativos, com a predominância de tons pastéis, assim como
os do cenário, talvez – pode ser uma “viagem” minha - para evidenciar mais o
trabalho dos atores, que é digno de todos os elogios.
Não
me sinto à vontade para destacar nenhum dos seis (dois atores e quatro atrizes),
que se revezam e se multiplicam em vários personagens, inclusive com as
mulheres fazendo papéis masculinos. ADRIANA
SCHNEIDER, CLARA DE ANDRADE, CARMEN LUZ, HENRIQUE MANOEL PINHO, LARISSA
SIQUEIRA e LUCAS ORADOVSCHI realizam um trabalho digno de aplausos de pé e gritos de “BRAVO!”N. Todos são protagonistas. O elenco está de parabéns, por ter
mergulhado fundo numa pesquisa e assimilado, com a maior profundidade de sua
competência profissional, a proposta da direção e o texto, a ponto de encantar
tanto a plateia.
Um detalhe, por simples
que possa parecer, mas que já me fez, desde a primeira cena, gostar do espetáculo,
é a interpretação, a capela, por uma das atrizes, de uma canção que me toca
fundo e que vivo a ouvir a a cantar: MEIA-NOITE, extraída do musical O
Corsário do Rei. Mal entrei no
carro, depois de ter saído do teatro, em total estado de graça, pus-me a
ouvi-la e a chorar. Aconselho-os a
conhecê-la. Ela volta à cena no final do
espetáculo. E não poderia ter sido
melhor escolhida nessa adaptação. A
letra tem tudo a ver com o somatório das CRÔNICAS.
MEIA-NOITE
Se a noite não tem fundo,
O mar perde o valor.
Opaco é o fim do mundo
Pra qualquer navegador,
Que perde o oriente
E entra em espirais,
E topa, pela frente,
Um contingente
Que ele já deixou pra trás.
O mar perde o valor.
Opaco é o fim do mundo
Pra qualquer navegador,
Que perde o oriente
E entra em espirais,
E topa, pela frente,
Um contingente
Que ele já deixou pra trás.
Os soluços dobram tão iguais,
Seus rivais, seus irmãos.
Seu navio carregado de ideais,
Que foram escorrendo feito grãos.
As estrelas, que não voltam nunca mais...
E um oceano pra lavar as mãos.
Seus rivais, seus irmãos.
Seu navio carregado de ideais,
Que foram escorrendo feito grãos.
As estrelas, que não voltam nunca mais...
E um oceano pra lavar as mãos.
Gostei muito das cenas em que
ocorrem mímicas e, em particular, à participação do personagem EL GATO.
Um espetáculo como este, além de um
excelente texto e de intérpretes de primeira linha, não atingiria o nível de
qualidade de que se reveste, se não contasse com uma competente direção, a cargo de GUSTAVO
GUENZBURGER, um jovem e talentoso
profissional, cuja qualidade do trabalho deve ser exaltada. São visíveis, em cena, toques da
sensibilidade do diretor, que engrandecem a encenação.
O
responsável por uma iluminação irretocável é PAULO CÉSAR MEDEIROS,
em mais um de seus primorosos trabalhos.
Boa parte da beleza estética da peça deve ser creditada a esse nome.
Todos
os demais profissionais que fazem parte da ficha técnica também têm uma boa
parcela de colaboração para a grandeza do projeto.
FICHA TÉCNICA:
Texto: AUGUSTO BOAL
Direção: GUSTAVO
GUENZBURGER
Adaptação: THEOTÔNIO
DE PAIVA
Elenco: ADRIANA
SCHNEIDER, CLARA DE ANDRADE, CARMEN LUZ, HENRIQUE MANOEL PINHO, LARISSA
SIQUEIRA e LUCAS ORADOVSCHI.
Iluminação: PAULO
CÉSAR MEDEIROS
Cenário e Figurinos:
DANI VIDAL E NEY MADEIRA
Trilha Sonora : JOÃO GABRIEL
SOUTO
Direção de
Movimento: CARMEN LUZ
Programação Visual: RUTH
LIMA
Fotografia: MARINA ANDRADE
Assistente de Direção: DIEYMES PECHINCHA
Assistente de
Produção: REGINA
MASCARENHAS
Produção Executiva: MARIANA
BORGERTH
Diretor de Produção:
LUIZ BOAL
Concepção do
Projeto: CLARA DE ANDRADE, GUSTAVO GUENZBURGER e LUIZ BOAL
Idealização: INSTITUTO
AUGUSTO BOAL
Realização: OLHAR
BRASILEIRO PRODUÇÕES ARTÍSTICAS
Assessoria de
Imprensa: NEY MOTTA
SERVIÇO:
Local: Oi Futuro
Flamengo – Rua Dois de Dezembro 63, Flamengo – RJ.
Bilheteria: De terça a domingo, das 14h às
20h. Aceita cartão de débito e crédito.
Capacidade
de Público: 84 pessoas
Temporada: 21 de
agosto a 28 de setembro. De 5ª a domingo,
às 20h.
(Não haverá
apresentações nos dias 28/8 e 18/9)
Não
recomendado para menores de 14 anos.
Duração:
70 minutos
Ao final do
espetáculo, totalmente vencido pela emoção de ter assistido a uma obra-prima do
TEATRO BRASILEIRO, ainda tive a
grata surpresa de saber, por um dos atores, ao agradecer a presença do público,
que o espetáculo daquela noite fora dedicado a CECÍLIA BOAL, viúva de AUGUSTO,
que estava presente, sentada a duas cadeiras do meu lado.
Uma certeza
fica, depois de ter assistido a este espetáculo: a “nuestra” América sente
muita saudade de um gênio, chamado AUGUSTO
BOAL, e precisava de que existissem muitos outros como ele.
AUGUSTO BOAL – Saudade eterna!
(FOTOS: MARIANA ANDRADE)
A melhor peça da minha vida♥ A luz é um personagem distinto, estou encantada!
ResponderExcluirGilberto,
ResponderExcluirÉ um prazer ler seu texto, de acurada observação e delicada escrita!
Para nós, já com o teatro no sangue, é recompensador saber que nossa obra é apreendida em todos os aspectos de sua criação.
Viva Boal e o teatro brasileiro!
Fica meu abraço,
Ney Madeira